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Naturismo e romance idílico em A Lagoa Azul


Brooke Shields, Christopher Atkins; The Blue Lagoon (1980)

Provavelmente assisti este filme algumas vezes ao longo da minha infância e adolescência, já que era um clássico na televisão brasileira, mas confesso que eu só tinha uma vaga lembrança. O único detalhe que mantive em minha memória foi a coisa das frutinhas venenosas. 

Então este ano resolvi assistir novamente, após décadas. Descobri um filme que não envelheceu e que se tornou bem melhor e mais profundo para minha mente adulta do que quando assisti na juventude.

A Lagoa Azul (1980) ganhou a reputação de ser um dos filmes "errados" dos anos 80, com nudez desnecessária e apelação. Basicamente foi considerado um filme erótico da Sessão da Tarde. A verdade, porém, é que o longa vai muito além do erotismo e tem uma história bem interessante de sobrevivencialismo e sobre a vida e seus desafios, sobre os perigos do mundo e mais ainda da vida selvagem.

O filme nem sequer tem algum teor explicitamente sexual. Nada no contexto ou na forma como a história é narrada ou a nudez é apresentada tem uma apelação erótica. A nudez dos personagens é algo necessário à trama, pois eles estão "largados e pelados", são náufragos que cresceram numa ilha longe da civilização.

Antes de se tratar de um romance, trata-se de sobrevivência. Não é muito diferente da história de um Tarzan, abordando a experiência de duas crianças abandonadas em uma ilha e tendo que crescer e aprender por conta própria a respeito da vida, da sobrevivência e da maturidade. 

O filme é baseado em uma novela homônima de 1908, escrita por Henry De Vere Stacpoole. A história ocorre no período vitoriano, quando dois primos, Richard e Emmeline, são vítimas de um naufrágio. Com o navio em chamas, a tripulação e os passageiros o abandonam em botes. O cozinheiro do navio, Paddy, leva as duas crianças em um bote e eles se perdem dos demais, vagando à deriva até que encontram uma ilha.

The Blue Lagoon (1980)
As crianças aprendendo a realidade crua da vida.

Paddy se torna o tutor daquelas crianças por alguns anos, mas ele acaba morrendo, de modo que elas têm uma segunda experiência traumática ainda tão jovens. Os ensinamentos básicos de sobrevivência de Paddy foram bem úteis para guiar aqueles jovens, de modo que seguiram a vida, aprendendo a construir uma cabana, pescar, etc.

Elas não são necessariamente crianças lobo, pois tiveram uma boa parte da infância na civilização, aprenderam a falar, ler, tiveram uma educação primária e até noções religiosas que mantiveram durante a vida na ilha. Entre os objetos do naufrágio que levaram para a ilha, havia fotografias de pessoas e ilustrações, como uma imagem de Jesus.

The Blue Lagoon (1980)
O ídolo da selva.

Coincidentemente, eles encontraram na ilha uma estátua de pedra, um enorme rosto que associaram a Jesus. Uma vez viram sangue escorrer da pedra, o que só confirmou sua ideia de que era mesmo ele. Emmeline se tornou uma devota da estátua e lhe levava flores. Já Richard, que nunca acreditou muito, ficou chocado quando um dia viu uma estranha tribo primitiva matando um homem em sacrifício diante da estátua.

Como o local era um arquipélago, havia várias ilhotas e em uma delas viviam estes perigosos indígenas. Quando ainda estava vivo, Paddy chegou a vê-los e estabeleceu uma rígida regra para que o casal nunca visitasse aquela ilha, de modo que eles viveram seguros isolados em sua própria ilhota.

Outro conselho importante de Paddy foi sobre não comer determinada frutinha. Ele explicou que ela causaria um "sono eterno", de modo que quem comesse nunca mais acordaria. Esta frutinha se tornou a Chekhov's gun da história, pois no final ela teria um papel dramático na vida daqueles dois jovens.

Brooke Shields, Christopher Atkins; The Blue Lagoon (1980)

Quanto ao romance, é realmente o tema central, mas ele se desenvolve de uma forma natural, acompanhando o desenvolvimento dos dois. Entre brigas e cuidado mútuo, eles criam este profundo laço afetivo que é complementado pela atração sexual que começam a sentir na puberdade. Por fim, acabam tendo um filho, que recebe o nome de Paddy.

Brooke Shields; The Blue Lagoon (1980)
A assustadora primeira menstruação.

É interessante como em um filme com cerca de 100 minutos de duração foi possível abordar tantos aspectos na vida dos dois protagonistas: acompanhamos o crescimento deles, o desenvolvimento da relação, a luta pela sobrevivência sem a ajuda de outras pessoas ou da civilização, as complicadas etapas da puberdade, como quando Emmeline começa a menstruar sem ter ideia do que está acontecendo e também quando ela flagra Richard se masturbando (mas calma que a cena não é explícita, pois o vemos de costas).

Brooke Shields, Christopher Atkins; The Blue Lagoon (1980)

Sim, sobre sexo explícito, não há realmente. Até a nudez é retratada de uma forma mais naturista do que erótica. Em certas cenas vemos eles nadando e notam-se apenas silhuetas de seus corpos, de modo que aparecem as formas da "moita" púbica da atriz e o pingulim do ator balançando na água, mas nada mais que isso. E nunca vemos cenas de sexo, pois quando eles começam a se acariciar há um corte, deixando apenas subentendido o que aconteceu.

O caráter naturista e não erótico da nudez fica ainda mais evidente depois que o casal tem um filho, pois há várias cenas em que os três estão nus e simplesmente não tem como ver safadeza nestas cenas, pois trata-se de um casal com um bebê vivendo de maneira natural, semisselvagem. 

Também é curioso acompanhar os aprendizados sobre a vida que eles adquirem de forma puramente empírica, sem livros, sem professores, guiados por instinto e deduções básicas. É assim que aprendem sobre a gravidez e até acidentalmente descobrem que a criança precisa ser amamentada. 

Christopher Atkins; The Blue Lagoon (1980)

Em certo momento, Richard visita a ilha em que o velho Paddy morreu e encontra apenas os ossos. Ele fica observando o esqueleto e comparando as partes com o próprio corpo, de modo que acompanhamos ali Richard tendo uma aula prática e intuitiva de anatomia.

Por anos eles mantiveram uma pira na praia, pronta para ser acesa quando algum navio aparecesse no horizonte. Só que, quando enfim foram premiados com a presença de um navio, decidiram não acender a pira. Na primeira vez, foi Emmeline que não quis dar sinal ao navio, pois ela estava satisfeita com sua vida a sós com Richard. 

The Blue Lagoon (1980)
Mesmo sem muita tecnologia ou ferramentas, eles construíram uma bela casa, convenhamos.

Numa segunda ocasião, quando eles já tinham um filho, o navio retornou e vemos que era uma equipe em busca das crianças naufragadas anos atrás. Richard e Emmeline, porém, já estavam tão acostumados à vida simples que tinham, que novamente não se deram ao trabalho de sinalizar e o navio partiu. 

Por fim, temos um final um tanto shakespeariano. O casal e a criança ficam a deriva em um bote porque perderam os remos durante um ataque de tubarão. Agora eles estão vagando pelo mar, destinados a morrer de sede e insolação, ainda mais com uma frágil criança. 

The Blue Lagoon (1980)
As trágicas frutinhas.

Sem eles perceberem, a criança tinha levado as temidas frutinhas e as comeu. Quando o casal descobre, eles ficam desesperados e chegam à conclusão trágica de que é melhor eles também comerem as frutinhas e assim os três dormirão para sempre. É uma cena realmente tocante e dramática.

William Daniels; The Blue Lagoon (1980)
Arthur Lestrange fazendo cosplay de Einstein.

Numa providencial coincidência, aquele navio de busca encontra o bote e se aproxima para resgatar as três pessoas. No grupo estava o velho Arthur Lestrange, pai de Richard e tio de Emmeline. Mesmo após tantos anos, ele continuava explorando aquele arquipélago em busca dos sobreviventes. Vendo os três corpos no bote, ele pergunta se estão mortos, mas alguém da tripulação diz que estão apenas dormindo. E assim termina o filme.

Ou seja, aquela história de que as frutinhas faziam adormecer não era um eufemismo que Paddy usou para a morte. De fato ela provocava o sono, o que não deixa de ser um perigo para pessoas vivendo na selva. 

Esta última cena, com a informação de que eles estão apenas dormindo, nos traz a catarse final que alivia o choque da cena anterior, quando pensamos que a história terminaria com o suicídio do casal. Se eles estão dormindo, então está tudo bem. Podemos completar a história em nossa imaginação: eles foram resgatados, levados à civilização e viveram felizes para sempre.

The Blue Lagoon (1980)

Brooke Shields, Christopher Atkins; The Blue Lagoon (1980)

Brooke Shields, Christopher Atkins; The Blue Lagoon (1980)

A trilogia original de livros e suas várias adaptações

O autor irlandês Henry De Vere Stacpoole escreveu uma grande quantidade de romances, mas se tornou especialmente conhecido por The Blue Lagoon (1908), que acabou se tornando uma trilogia com The Garden of God (1923) e The Gates of Morning (1925). 

The Blue Lagoon (1923)

The Blue Lagoon (1923)
A morte de Paddy.

Jean Simmons, Donald Houston; The Blue Lagoon (1949)

Jean Simmons, Donald Houston; The Blue Lagoon (1949)

Jean Simmons, Donald Houston; The Blue Lagoon (1949)

A primeira adaptação cinematográfica de The Blue Lagoon surgiu em 1923, ainda no formato de cinema mudo. Foi lançada originalmente nos cinemas da África do Sul, sem muito sucesso. Em 1949 veio uma segunda versão bem melhor produzida e com maior repercussão. 

Nestas duas versões, os protagonistas se apresentam mais vestidos, mesmo porque a nudez no cinema dos anos 20-40 causaria uma forte reação no público conservador daqueles tempos.

O filme de 1949 tem uma história bem condensada. Um detalhe curioso é que há uma cena em que Richard é atacado por um polvo. Nos filmes de 1980 e 1991 o perigo marinho é substituído por um tubarão.

Jean Simmons, Donald Houston; The Blue Lagoon (1949)

No final, o casal parte com a criança em um barco com o sonho de retornar à civilização, mas ambos morrem de insolação. Enfim um navio da marinha¹ encontra o barquinho com o casal morto e a criança ainda viva. 

Então veio a versão de 1980, a melhor de todas. Foi dirigida por Randal Kleiser, que teve seu auge em filmes como Grease (1978) e White Fang (1991).

Milla Jovovich, Brian Krause; Return to the Blue Lagoon (1991)

Em 1991 veio a continuação Return to the Blue Lagoon, agora baseada no segundo livro The Garden of God. A história começa onde acabou a anterior, com Arthur resgatando seu filho e sobrinha, só que há uma trágica revelação. Enquanto no primeiro livro e filme é dito que o casal estava dormindo, agora nesta sequência eles são encontrados mortos, mas o bebê está vivo e é recolhido no navio, enquanto os pais são sepultados no mar.

Acontece um surto de cólera no navio e uma passageira, a viúva Sarah Hargrave, é colocada em um bote para que não se contamine. Ela parte com um marujo, sua filha Lilli e o menino órfão resgatado no mar, Richard. No filme de 1980, ele se chamava Paddy, mas foi renomeado no navio.

Sarah acaba matando o marujo, pois ele ameaçava matar as crianças. Assim, os três finalmente chegam em uma ilha, a mesma em que outrora viveram os pais de Richard. Eles encontram a cabana construída pelo casal anterior e passam a viver ali. 

Sarah fornece às crianças uma educação bem mais rica em comparação ao que Paddy fez no primeiro filme, de modo que elas cresceram melhor preparadas, mais civilizadas e tiveram uma vida menos problemática na selva. Quando Sarah morre, o casal já está pronto para se virar.

Um dia um navio desembarca na ilha, a princípio com o objetivo de reabastecer os suprimentos, mas o capitão fica intrigado em encontrar os náufragos, conhece a sua história e obviamente se oferece para levá-los de volta à civilização. Richard e Lilli recebem roupas e aprendem coisas com a bela e mimada filha do capitão, Sylvia.

Sylvia se torna uma antagonista do casal, pois começa a dar em cima de Richard, ao mesmo tempo em que Quinlan, um marujo grosseiro, tenta estuprar Lilli e roubar sua pérola, sendo interrompido por Richard. 

A vida do casal estava muito bem e eles estavam super satisfeitos com aquela condição idílica, até que apareceram pessoas da civilização com armas e más intenções, de modo que Lilli e Richard ficaram ainda mais convencidos de que estavam melhor ali mesmo, então no final rejeitaram a proposta do capitão, que partiu da ilha, deixando os dois pombinhos em paz. Enfim, eles têm uma criança, uma menina. 

Um pequeno detalhe que está presente nos três filmes (1949, 1980, 1991) e que tem certa importância na historia é a pérola. Richard achou a pérola em uma ostra e a deu de presente a Emmeline. O mesmo evento se repetiu quando seu filho Paddy/Richard também deu uma pérola a Lilli, que a usou como adereço no cabelo. Então a pérola foi cobiçada por um marujo que atacou Lilli tentando roubá-la.

No filme de 1949, um navio chega à ilha, mas há apenas um capitão e um marujo. Não temos a Sylvia que aparece no filme de 1991. O incidente em que o marujo cobiça a pérola acontece, mas é menos dramático e a vítima é Emmeline.

Diferente, porém, do filme de 1980, o de 1949 não tem as frutinhas venenosas. O casal morre simplesmente de insolação ao tentar atravessar o oceano em um barquinho. Também não vemos a tribo bárbara, o rosto de pedra não parece fabricado e sim uma coincidência da erosão natural e nenhum tipo de religiosidade se desenvolve entre a dupla e aquela rocha. 

Milla Jovovich, Brian Krause; Return to the Blue Lagoon (1991)

Milla Jovovich, Brian Krause; Return to the Blue Lagoon (1991)

Milla Jovovich, Brian Krause; Return to the Blue Lagoon (1991)

A Lagoa Azul e De Volta à Lagoa Azul são dois grandes clássicos do primitivismo no cinema, da apreciação de um estilo de vida simples e ligado à natureza. 

A Revolução Industrial exerceu uma forte influência na literatura do século XIX. De um lado, teve os admiradores da tecnologia e que sonhavam com grandes feitos civilizatórios, como foi o caso de Jules Verne. De outro lado, teve quem visse o terror na tecnologia, como Mary Shelley com seu Frankenstein. E teve também os que buscavam um escapismo em busca de um passado primitivo mais simples e natural. É aí evidentemente que se encaixa o livro de Henry Stacpoole e seu sonho primitivista ganhou uma marcante adaptação nos filmes de 1980 e 1991.

Também pode-se dizer que A Lagoa Azul é um ícone anarquista. Quando os náufragos chegam à ilha, Paddy comemora o fato de que ali nunca mais precisará se submeter a ninguém. É uma vida de pura liberdade, sem governos, sem qualquer instituição. Mesmo assim, não é uma anomia, pois o próprio Paddy instituiu umas leis básicas importantes para educar as crianças, como as leis de não comer as frutinhas do sono e evitar a ilha onde havia uma tribo bárbara.

Por fim, em 2012 teve o Blue Lagoon: The Awakening que não tem relação alguma com os filmes anteriores, muito menos com o livro. Apenas pegaram o famoso título para chamar alguma atenção a esta produção pobre.

Indiana Evans, Brenton Thwaites; Blue Lagoon: The Awakening (2012)

É um filme feito para TV, produzido pelo canal Lifetime. A história se passa nos tempos atuais, quando dois estudantes do high school ficam à deriva em um bote e vão parar em uma ilha. Enquanto esperam o resgate, vão se virando como podem e desenvolvem um romancezinho. E é isso, depois de 100 dias aparece um helicóptero e voltam para suas famílias.

Para não dizer que o filme não tem nada a ver com The Blue Lagoon, o nome da protagonista, Emmaline, é claramente uma homenagem à Emmeline da história original.

E para tirar o gosto ruim deste último e sofrível longa, deixo aqui as doces Brooke Shields e Milla Jovovich². 

Brooke Shields; The Blue Lagoon (1980)

Brooke Shields; The Blue Lagoon (1980)

Brooke Shields; The Blue Lagoon (1980)

Brooke Shields; The Blue Lagoon (1980)

Brooke Shields; The Blue Lagoon (1980)

Notas:

1: É interessante que até em um filme como este, um romance com aventura na selva, temos a aparição de um navio da marinha e vemos homens fardados. A marinha teve uma presença abundante nos filmes dos anos 40-50 por motivos óbvios: propaganda militar devido ao clima da Segunda Guerra. Muitos filmes e séries da época visavam incutir a simpatia popular pelas forças armadas e até grandes heróis da cultura pop surgiram por causa deste zeitgeist, como o Capitão América.

2: Pode parecer uma leitura ingênua, mas eu acho que A Lagoa Azul não apresenta o casal de uma forma erótica e sim platônica. Eles são o casal primordial, Adão e Eva. Faz parte desta estética a escolha de atores belos e joviais, principalmente as atrizes. Tanto Brooke Shields quanto Milla Jovovich foram ícones de beleza nos anos 80-90 e estão ali para representar a perfeita Eva. O mesmo vale para o filme de 1946, com Jean Simmons e Donald Houston, dois modelos do padrão de beleza da época.

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