Qaligrafia
Séries, livros, games, filmes e eteceteras 🧙‍♂️

Sobre aborto e o que é a vida

Desenvolvimento embrionário

Não pretendo aqui discutir a ética do aborto, se é certo ou não. Há, porém, um detalhe que observei na discussão pública sobre o assunto que me chamou atenção pela estupidez: o argumento de que o feto não é um ser vivo.

Este tipo de argumento, creio, não é utilizado por defensores mais instruídos do aborto, mas já vi pessoas mais leigas falarem isto, o que é uma ofensa à biologia básica. Ora, mesmo uma célula é um ser vivo. Como um feto não seria?

Nas discussões mais acaloradas entre militantes de ambos os lados da questão, parece comum pessoas argumentando que o feto é apenas um amontoado de células ou que ele é parte do corpo da mulher, como um órgão e, portanto, o aborto seria como a remoção de um órgão o que, feito com o consentimento da pessoa, não resulta em nenhum problema ético.

É uma forma bem simplista de ver a coisa. É certo que, nas primeiras fases após a fecundação, temos literalmente um amontoado de células que vão se multiplicando até o blastocisto. Até aí, trata-se de um monte de cópias de uma mesma célula que contém em si a combinação do DNA paterno e materno.

Então começa o processo de diferenciação, quando as células, além de se multiplicarem, também vão assumindo funções diferentes, começando a formar o protótipo de órgãos e sistemas, moldando um corpo. Isto começa a acontecer por volta de um mês, quando temos o que já pode ser chamado de feto.

Fisicamente, o feto não se parece um amontoado de células, mas uma minúscula criatura, um homúnculo. Após dois meses, inclusive, ele já tem braços, cabeça e olhos. A esta altura já é bem evidente que tal criatura não é um "órgão" que faz parte do corpo da mulher. É um ser em formação, como um girino. A prova definitiva de que ele não é um apêndice da mãe é o fato de possuir em suas células um DNA diferente. O código genético do feto não é o mesmo da mãe. Isto por si só já esclarece o assunto.

Enfim, no debate sobre o aborto, recorrer ao argumento de que o feto não é um ser vivo ou que não é um ser distinto da mãe é uma grande infantilidade e uma ofensa aos conhecimentos modernos de biologia básica. Creio que este tipo de argumentação só exista mesmo no debate mais leigo, em discussões de Twitter, pois não acho que pessoas com mais autoridade no assunto (profissionais de saúde) realmente levem a sério tal pensamento.

Negar que o aborto envolve a destruição de um ser vivo é uma forma preguiçosa de argumentação. Abortar é matar, isto é um fato que transcende opiniões. Se feito nos primeiros dias após a fecundação, está-se matando um amontoado de células. Se feito após um mês, mata-se um corpo em formação. Se feito após cinco meses, mata-se um corpo já formado e visivelmente humanoide.

Constatar isto, obviamente, não encerra a discussão. A ética de matar um ser vivo passa por uma longa gradação de tons de cinza. Todos nós estamos a todo momento matando seres vivos. Nosso sistema imunológico devora implacavelmente células estranhas. Ninguém em sã consciência sente culpa ao matar um mosquito ou uma barata. Poucos são os que se sentem culpados ao matar um rato, e olha que um rato é uma criatura fisiologicamente bem mais complexa que um feto humano de um mês. Aí chegamos à questão da morte de animais para alimentação, para confecção de produtos, para pesquisas científicas...

A nossa existência neste planeta envolve a morte de várias criaturas. A existência de qualquer criatura envolve a morte de outras. O tigre come a lebre. O verme da mosca come o tigre. Para a natureza, a morte nada mais é do que reciclagem. A natureza não julga a morte.

Todavia, nós desenvolvemos uma consciência avançada. A consciência é a parte pensante da natureza, a parte capaz de fazer julgamentos. É neste nível que deve girar a discussão sobre temas como aborto. Deve-se discutir até que ponto a consciência identifica a área cinza da ética na morte de um óvulo fecundado.

Não é, portanto, um assunto simples. Não à toa até hoje a questão não tem uma resposta definitiva e unânime, mesmo entre profissionais de saúde e juristas. Há, obviamente, outros aspectos a se levar em conta, como o problema envolvendo mulheres que buscam clínicas clandestinas, pondo em risco a própria vida. De toda forma, como disse antes, não é um tema que pretendo elaborar.

Meu alvo foi apenas um argumento específico e que me chamou atenção pela imaturidade, pra não dizer a ofensa à ciência estabelecida: dizer que o feto não é um ser vivo. Isto é algo que nem deveria ser discutido, pois é tão evidente que é uma verdade axiomática do senso comum. 

O único caso em que ainda há dúvidas científicas sobre a vida é o vírus, por se tratar de uma estrutura molecular muito simples. A partir da célula, um organismo feito de várias microestruturas, que interage com o ambiente, que possui um metabolismo e até pode se multiplicar, não há mais dúvidas de que podemos chamar isto de ser vivo. Negar que um feto é um ser vivo em nada ajuda na discussão, ao contrário, só irá expor a inabilidade intelectual de quem recorrer a tal argumento.

Nenhum comentário:

Postar um comentário