Todos nós temos algumas lembranças pitorescas da infância, algumas delas merecem o título de "biografema", como falei em outro post¹. Eis que me recordo de outro momento.
Como uma criança introvertida, eu vivia imerso no meu mundo imaginário, no meu Fantástico Mundo de Bob (obviamente me identificava bastante com este desenho) e as palavras que saíam pela boca eram apenas a versão condensada e filtrada daquilo que se passava na mente.
Houve um período em que eu tinha a mania de falar demais. Eu não costumava falar sozinho, quando estava sozinho mesmo, mas quando havia pessoas por perto eu virava uma metralhadora de comentários, inclusive durante as aulas na escola, a ponto de me tornar irritante para alunos e professores, pois eu simplesmente não parava de falar. De certa forma, eu estava falando sozinho mesmo, já que ninguém queria ouvir aquela tagarelice.
Certa vez eu havia lido um cartoon num jornal. Era um diálogo entre a Terra e a Lua, se bem me lembro, e a Lua perguntava: "É verdade que a Terra é azul?", ao que a Terra respondia: "Só no primeiro mundo". Achei a tirinha divertida e, mesmo sendo criança, tinha entendido que era uma "crítica social foda", falando sobre riqueza e qualidade de vida das pessoas.
Então no dia seguinte, durante uma aula, eu quis compartilhar a piada com algum coleguinha e do nada falei com o garoto que estava sentado na minha frente: "É verdade que a Terra é azul?". Ele nem me deu tempo de completar a piada, pois reclamou com a professora: "Professora, ele aqui tá dizendo que a Terra é azul". Toda a turma caiu no riso, pois meu comentário pareceu bem aleatório e coisa de alguém que vivia no mundo da Lua. Por algumas semanas, alguns alunos me chamavam de "A Terra é azul".
Isto me lembra outra ocasião que aconteceu anos antes, ainda no pré-escolar. Estávamos de volta das férias e a professora perguntou as novidades, o que os alunos fizeram nas férias, etc. Levantei a mão e soltei um miado. Sim, falei "miau". A professora naturalmente entendeu que eu ganhei um gatinho. "Ah, ganhou um gatinho. Que legal!". Na verdade, eu havia aprendido a miar e estava mostrando meu miado. Eu devia ter uns 5-6 anos.
Pois é, eu não era uma criança muito eloquente. Aquilo que saía pela boca era só uma short version do que eu estava pensando. Curiosamente, desde muito cedo eu era dado à escrita e neste quesito superava os coleguinhas com muitas redações bem elaboradas. Sempre me senti mais à vontade escrevendo do que falando, justamente porque o texto escrito permite um detalhamento maior das ideias. Ele é mais preciso. A fala é muito subjetiva e concisa e sujeita a um número maior de desentendimentos.
É possível que no futuro tecnologias como o Neuralink tornem possível uma comunicação literalmente telepática, pois os cérebros, comunicando-se com a internet por meio de um chip, vão transmitir seus pensamentos sem o intermediário da língua ou dos dedos. Tenho pena daqueles que se comunicarem comigo, pois sem filtros a minha tagarelice mental vai alcançar níveis insuportáveis.
Notas:
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