Nos últimos anos o mundo tem passado por diversas crises e consequentemente mudanças, mas me parece que uma mudança em particular vai ser a mais impactante de todas no curso da nossa história: o estabelecimento do dinheiro digital.
Dinheiro digital (ou virtual, ou eletrônico) é algo que já existe há algumas décadas. Tornou-se popular com os cartões de crédito, quando as pessoas começaram a se habituar à ideia de pagar coisas sem usar cédulas de papel. Da mesma forma, a transferência eletrônica e o acesso remoto à sua conta bancária são bons exemplos de como o dinheiro já circula em sua forma virtual desde o final do século passado. Não é, portanto, nenhuma ideia nova.
Todavia, este formato de moeda sempre foi visto como um complemento ao dinheiro de papel. As pessoas mantêm uma conta no banco e fazem pagamentos com cartões de crédito/débito, acessam o banco pela internet e fazem transferências eletrônicas, mas a confiança delas no sistema financeiro se baseia na expectativa de que, caso precisem, elas podem sacar o dinheiro que têm no banco na forma de cédulas cuspidas pelo caixa eletrônico. A confiança no dinheiro virtual existe porque este está ancorado no dinheiro material, a cédula.
Óbvio que a cédula já é em si uma virtualização da riqueza. O pedaço de papel sempre foi um símbolo. Ele por si só não vale mais que um papel, mas ao objeto é atribuído um valor e, num acordo social, as pessoas aceitam este valor atribuído por boa-fé, daí o nome "moeda fiduciária" (do latim fides: "fé").
O surgimento da moeda fiduciária foi a última grande revolução do sistema financeiro, pois antes disto o pedaço de papel chamado dinheiro era um documento atrelado ao ouro. O valor daquele papel era correspondente ao do ouro que ele representava. Ou seja, se eu tinha determinada nota, significa que em algum lugar, em algum banco, existia uma certa quantidade de ouro equivalente ao valor desta nota.
Quando o dinheiro deixou de estar desta forma atrelado ao ouro e passou a ter um valor estabelecido pelo governo e aceito pela população, aí surgiu a moeda fiduciária que temos usado até então. Este tipo de dinheiro, por não depender da existência física de ouro nem de nada, pode ser multiplicado pelo governo, o que de maneira simplista nós chamamos de "imprimir dinheiro". O governo pode criar mais dinheiro virtualmente caso ache necessário, o que deve ser feito com parcimônia, pois a criação infinita de dinheiro teria como consequência uma inflação monstruosa.
Enfim, nós já estamos usando dinheiro virtual há um bom tempo, mas ele ainda tem esta relação simbiótica com as cédulas de papel, tanto que bancos quebram quando acontece alguma crise que leva os clientes a correr em massa para o banco a fim de sacar cédulas e aí acontece de o banco não ter cédulas o bastante para representar os números virtuais das contas dos clientes. As cédulas portanto são uma grande vulnerabilidade do sistema fiduciário.
Além disso, as cédulas sempre foram alvo de falsificações, o que exige do sistema toda uma tecnologia para produzir notas cada vez mais difíceis de serem falsificadas. Para a prática de crimes, também as cédulas são uma dor de cabeça para o estado, pois máfias e criminosos em geral preferem realizar suas transações ilícitas com o papel, uma vez que é quase impossível rastrear tais transações.
Criminosos mais desleixados, que movimentam dinheiro pela via eletrônica (com cartões de crédito ou por transferências eletrônicas), são mais facilmente rastreados, já que toda esta atividade fica registrada e deixa rastros digitais. Eis, portanto, mais um motivo porque seria bastante conveniente para os governos o estabelecimento de uma moeda totalmente digital.
Logo, esta será a próxima grande revolução do sistema financeiro, desde o surgimento da moeda fiduciária: a total digitalização do dinheiro. Será uma mudança bem conveniente para o sistema, para os governos e instituições bancárias, pois terão mais controle sobre toda a riqueza circulante na sociedade.
Atualmente existe uma forma de transação eletrônica que protege a privacidade dos usuários, as criptomoedas, de modo que a mão fiscal do estado ainda não conseguiu chegar neste terreno, mas pretende chegar. Provavelmente haverá uma grande unificação que mesclará o mercado de criptomoedas ao sistema financeiro digital que será estabelecido.
É algo para qualquer fiscal da receita lamber os beiços, pois será possível até mesmo a criação de um sistema automático de cobrança de impostos, incluindo o imposto de renda, sem a necessidade de contadores ou qualquer interação humana. A Inteligência Artificial vai mexer diretamente com as contas das pessoas, o que vai resolver os problemas de evasão fiscal e igualmente vai irritar muita gente, mas é algo que as pessoas vão ter que se acostumar, pois parece ser um caminho sem volta.
O dinheiro digital não consiste apenas de números, mas de pacotes de dados. Em cada transação digital, diversos registros são gravados: quem comprou, quem vendeu, o que comprou, quanto custou, de onde veio, para onde foi, etc. Estes registros tendem a se tornar cada vez mais detalhistas e complexos, de modo que cada transação se torne um evento extremamente específico e, portanto, precisamente rastreável pela Inteligência Artificial.
Olhando de maneira otimista, tal sistema tem suas vantagens para a evolução política e social. Por exemplo, propinas, dinheiro na cueca de políticos e desvios de verba serão problemas resolvidos, pois dificilmente um político vai conseguir enriquecer ilicitamente sem deixar seus rastros no sistema digital. Não que tais crimes vão acabar, mas será bem mais difícil para corruptos esconderem suas práticas e, uma vez que tudo estará registrado, será mais fácil submeter políticos a investigação criminal e julgamento. A redução dos prejuízos financeiros da corrupção vai aliviar os cofres públicos, deixando mais dinheiro para aquilo que ele deve ser usado.
Por outro lado, há um possível cenário distópico neste mundo de dinheiro totalmente virtual, pois as pessoas estarão completamente à mercê do sistema, podendo ser alvo de injustiças e abusos totalitários de poder. Por exemplo, um governo tirano pode bloquear o acesso de uma pessoa ao sistema eletrônico, pode capturar seus créditos virtuais e desligar a pessoa de tal modo que ela não vai conseguir comprar nem vender nada, ficando isolada na sociedade, no máximo vivendo de favores e esmolas.
O governo pode fazer isto com opositores políticos, como uma forma de censura, de segregação, de punição desproporcional contra alguém que não se adequa ao sistema. Facilmente um governo pode criar párias sociais, cortados da sociedade, incapazes de sequer comprar um pão pra comer. É um poder assustador dado ao Leviatã estatal. As instituições jurídicas e de defesa dos direitos humanos precisarão manter uma vigilância constante e intensa para evitar tais abusos.
Mas se tem uma coisa que a Lei Seca ensinou é que não adianta impor proibições absurdas sobre uma sociedade, pois ela encontrará um meio de burlar, de modo que a lei acaba se tornando responsável pelo surgimento da clandestinidade e de máfias. Quando as bebidas foram proibidas, pessoas encontraram um jeitinho de manter a circulação de bebidas na sociedade, um jeitinho que acabava recorrendo à violência. A Lei Seca acabou criando um problemão maior do que o problema das bebidas.
Assim, se o sistema financeiro digital for usado para isolar pessoas, para criar párias, ostracizar rebeldes ou críticos do governo, estas pessoas não vão simplesmente se resignar à sua condição de banidos. Um mercado paralelo surgirá para atender os "ilegais". Pode até ser que surjam moedas físicas, papéis impressos e controlados por alguma máfia e que as pessoas usarão informalmente.
A moral da história é: a moeda digital terá de vir como algo desejável pelas pessoas e não uma lei arbitrária imposta à força. As pessoas aderem a um sistema muito mais facilmente quando este se mostra vantajoso, convidativo. Por exemplo, a perseguição policial a sites de pirataria nunca conseguiu quebrar o hábito das pessoas de baixar filmes. Se um site é derrubado, as pessoas procuram outro. Foi a praticidade e o custo-benefício de serviços de streaming como a Netflix que estabeleceu uma "cultura do streaming", de modo que hoje uma quantidade enorme de gente, que antes costumava assistir tudo via pirataria, agora está confortavelmente acostumada a assinar um ou mais serviços de streaming.
O fato é que tal futuro está chegando e as crises dos últimos anos têm todas, coincidentemente e convenientemente, contribuído para acelerar este processo. A pandemia, por exemplo, levou os governos a acelerar seus projetos de criação de documentos digitais. O tal passaporte sanitário foi apenas um protótipo, um experimento, e provavelmente não vai vingar, dada a maneira invasiva e até truculenta com que foi utilizado, mas ele serviu para acelerar o conceito de uma identidade digital, um documento que o cidadão apresenta na tela de seu celular.
O Brasil já é bem adiantado em termos de digitalização. O título de eleitor, por exemplo, já existe na forma de um aplicativo, o e-Título; o sistema eleitoral já é eletrônico há quase três décadas e este ano enfim surgiu o RG/CPF digital, que é um aplicativo de celular, assim como o e-Título. E já tem-se falado na implantação do "Real digital" que de certa forma está na sua forma embrionária com o Pix.
A ampla aceitação do Pix mostra que a população já parece bastante confortável com a ideia de abandonar de vez o dinheiro de papel e adotar a completa digitalização das finanças. É um sistema prático, onipresente e acessível. O Pix conseguiu chegar às camadas mais pobres da população de uma forma que o cartão de crédito nunca conseguiu.
Após a crise da pandemia, eis que veio a crise da guerra Rússia-Ucrânia, que levou o primeiro mundo a reagir com sanções que tiveram uma desastrada consequência de acelerar a degradação do dólar, que já vinha envelhecendo há anos.
O dólar foi a grande moeda mundial desde o fim da Segunda Guerra. Foi a moeda-guia do sistema financeiro mundial durante a chamada Ordem Mundial Liberal ou Globalização. Agora o dólar já dá sinais de envelhecimento e de que será futuramente substituído por algo novo. Pois bem, este algo novo será na certa uma nova moeda digital.
Outros eventos que têm contribuído para a vinda desta nova era são o surgimento do blockchain em 2009, uma tecnologia que cresceu de tal maneira que se tornou uma cultura (para algumas pessoas, o bitcoin é praticamente uma religião). O blockchain é um modelo que já nasceu pronto e perfeito para ser usado neste futuro sistema financeiro digital.
Também as políticas de lockdown e isolamento social apressaram as empresas de tecnologia ligadas ao chamado metaverso. O Facebook se empolgou tanto com a ideia que até mudou de nome para Meta.
O metaverso é um conceito que já existe desde a década de 90, já foi amplamente explorado no sci-fi, especialmente o cyberpunk, tendo um memorável exemplo em The Matrix (1999), mas é uma tecnologia que poderia levar ainda várias décadas para se normalizar na sociedade. As políticas de isolamento forçaram a sociedade a acelerar seu ingresso na virtualização do trabalho, das escolas, do comércio e até da vida social.
Novamente é bom notar: não adianta tentar forçar um hábito por meio da lei. O ensino à distância, por exemplo, foi odiado tanto por professores quanto por alunos e eles ficaram torcendo pelo retorno da aula presencial. Estas coisas só se tornarão hábito quando as pessoas sentirem que são mais confortáveis, mais vantajosas, o que vai depender do aprimoramento da tecnologia envolvida.
O smartphone se normalizou em todo o planeta no curso de dez anos porque esta tecnologia se mostrou bastante atraente. Não foi preciso obrigar ninguém a comprar um smartphone. É assim que deve se normalizar o metaverso, quando houver tecnologia que o torne tão atraente e acessível quanto foi o celular. De toda forma, o experimento do lockdown serviu como um laboratório para um teste preliminar de um primitivo protótipo do metaverso.
O metaverso será o ambiente ideal para o dinheiro digital. No mundo cibernético surgirão novos tipos de comércio, novos produtos totalmente virtuais, um mundo de possibilidades de circulação de dinheiro. Haverá um boom econômico como nunca houve.
Também haverá uma multiplicação nos tipos de moedas. No sistema tradicional, as moedas são em geral associadas aos países ou regiões. Temos o dólar americano, o real brasileiro, o euro europeu, a libra, o iene, o franco, o yuan, etc. Há dezenas de moedas pelo mundo e os colecionadores adoram apreciá-las. No metaverso haverá milhares delas, pois uma empresa como a Amazon ou a Wallmart pode ter sua própria moeda digital, até um influenciador famoso pode criar sua moedinha.
Temos um exemplo embrionário disso nas moedas da Twitch, que você adquire à medida em que assiste às lives de um canal. Cada canal pode inventar um nome para essa moedinha e até criar uma lojinha para trocar as moedas por alguma coisa física ou digital. Também nos games existem moedas próprias. O próprio mundo das criptomoedas, que começou apenas com o bitcoin, hoje já tem diversos tipos.
Esta pluralidade de moedas será uma característica permanente deste sistema financeiro, mas haverá um backbone que permitirá a troca de uma moeda por outra e a integração de todas estas moedas em um único e colossal sistema digital.
E concluímos lembrando de Ready Player One (2018), onde vemos um metaverso em que as pessoas manipulam umas moedinhas virtuais. É uma forma gráfica de representar este futuro cada vez mais próximo.
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