Em 2020, diante da crise econômica que começou a se desenrolar, o Fórum Econômico Mundial, em sua 50ᵃ reunião, de maneira bem oportunista propôs um utópico plano de reconstrução econômica chamado Great Reset. Fez até uma campanha publicitária com o curioso slogan "você não terá nada e será feliz".
Convenhamos, este tipo de mensagem não soa muito convidativo, a não ser talvez para uma minoria bem específica de pessoas adeptas do minimalismo extremo. Possuir bens ou o que quer que seja faz parte da própria natureza da evolução humana.
Nós começamos neste mundo como uma espécie miserável, tendo que viver em busca de água e alimento, até que desenvolvemos ferramentas e roupas rudimentares. Estas primeiras posses proporcionaram um aumento considerável da qualidade de vida e uma redução dos esforços para sobreviver. Ganhamos mais tempo ocioso, tempo que poderia ser usado para a criatividade, o lazer, a vida social, etc. A civilização teve início graças às primeiras posses.
É, portanto, um ideal já estabelecido há eras que devemos buscar aumentar nossas posses ao longo da vida a fim de termos uma vida melhor e, pensando a longo prazo, a fim de garantirmos um futuro melhor para nossos descendentes. Ora, é melhor ter uma casa do que não ter, é melhor ter algum dinheiro poupado para emergências do que nenhum, é melhor ter uma despensa com alimentos para o mês do que todo dia ter que ir atrás da refeição.
O acúmulo de bens pode se tornar patológico. Há pessoas que até desenvolvem um bizarro hábito de acumular lixo em casa. É uma condição disfuncional, uma incapacidade de distinguir o que vale a pena ser guardado e o que deve ser descartado. Estas exceções, porém, não invalidam a regra de que possuir bens é necessário para ser minimamente feliz.
Como, então, me vem esse tal Great Reset falar que serei feliz não tendo nada? Ao que parece, o plano é estabelecer uma economia baseada em aluguéis e empréstimos. Tudo será alugado ou emprestado. A casa, o carro, a bicicleta, os aparelhos eletrônicos, talvez até as roupas.
Bom, é um tipo de modelo que já existe em certa medida no mundo. O próprio conceito de transporte público é assim. Você não precisa ter um carro se pode pegar um taxi, um ônibus, metrô ou uber. Você aluga o transporte no momento em que precisa e assim não tem de lidar com os gastos e preocupações de ter um carro próprio. Olhando desta forma, realmente é mais feliz ou menos estressante não ter certos bens.
Ter um carro é prático e confortável, mas é caro. O carro requer manutenção, pagamento de impostos e eventuais multas, o carro é um bem caro e que você deixa exposto na rua, correndo o risco de ser roubado, vandalizado, de sofrer um acidente, ter a pintura arranhada por algum babaca. É um bem que gera preocupações. No transporte público todos estes cuidados são terceirizados. A manutenção e os custos com segurança ficam por conta dos responsáveis pelo veículo, enquanto você está ali só como passageiro, literalmente de passagem.
Apesar de exemplos como este, continua inegável que há muitos bens que tornam a vida mais satisfatória e, de fato, feliz. Qualquer pessoa com um mínimo de senso comum concorda que, se tiver opção, vai preferir viver em uma casa própria do que em uma alugada, pois há um sentimento de instabilidade no aluguel. E se um dia, por algum motivo, você for despejado? E se não puder pagar o aluguel?
Um mundo totalmente baseado em aluguel, portanto, pode não transmitir tanta felicidade e segurança assim para as pessoas. A verdade é que dificilmente algo deste tipo se concretizará. Seguiremos em uma sociedade mista, onde certas coisas valem a pena possuir e outras valem a pena alugar.
Por outro lado, posso vislumbrar um mundo onde a profecia do Fórum Econômico poderá se tornar real: o metaverso.
No metaverso vamos construir um segundo mundo, uma segunda vida. Ali você terá sua casinha virtual, o que não vai eliminar a necessidade de ter uma casa real para seu corpo físico. A casa virtual será para sua representação social virtual, ou seja, seu avatar, seu bonequinho. Pode parecer meio bobo e infantil, mas isto vai acontecer e na verdade será algo útil e prático, levando em conta que cada vez mais vamos imergir nosso trabalho, lazer e vida social nesta rede de comunicações que é a internet.
Haverá vida no metaverso, como já existe hoje na internet, e um grandioso mercado se desenvolverá, como já está se desenvolvendo. Assim, avançaremos para um novo estágio na nossa história de acúmulo de bens: além dos bens físicos, teremos bens virtuais.
Este conceito já é uma realidade, como vemos no caso de certas coisas que compramos na internet e que são literalmente objetos digitais, como um e-book, um filme, um game. Inclusive existe na comunidade gamer aquelas pessoas mais tradicionais que fazem questão de ter uma mídia física, um DVD, justamente porque sabem que ter o jogo apenas no formato digital em uma biblioteca online é o mesmo que não ter.
É uma atitude de valor mais simbólico do que concreto, esse negócio de comprar mídia física de games, porque hoje em dia dificilmente um game consegue ser funcional sem acesso à internet. Games são softwares e como tal costumam receber updates. O software que está no DVD com o tempo fica obsoleto. Pior, o DVD com o tempo arranha e fica ilegível. No fim das contas, é realmente melhor ter sua biblioteca online.
Em 2010 eu criei minha conta no Runescape, um jogo do qual já falei várias vezes neste blog. Agora, mais de uma década depois, o meu bonequinho continua lá, o jogo continua lá com seu mundo, com tudo o que acumulei, os progressos que fiz com o personagem.
A rigor, aquele mundo, aquele avatar, não são meus. Eles são da Jagex, a empresa desenvolvedora. Se um dia a Jagex fechar, o Runescape desaparece da internet, bem como meu avatar, e não vou poder fazer nada para impedir isso. Como, porém, trata-se de uma comunidade de milhões de jogadores que mantêm o jogo vivo, as chances disso acontecer, até o momento, são mínimas.
Assim será o metaverso. Vamos acumular muitas coisas ali. Teremos nossas casinhas, com bibliotecas de livros, jogos e tantas outras coisas, tudo virtual, tudo digital e majoritariamente online. Algumas coisas a gente até poderá guardar num drive de armazenamento, mas a maioria existirá apenas no reino da internet.
Assim, se algum dia acontecer um colapso da internet ou alguma empresa do metaverso que hospedava o seu mundo virtual falir, esse mundo vai sumir, seus bens virtuais vão sumir, provando que eles nunca pertenceram a você. No metaverso você será feliz, mas nada ali será no fim das contas seu.
É um cenário improvável que aconteça algo tão apocalíptico com o metaverso, pois a Big Tech não tem este nome à toa. O mundo virtual é protegido com muitas camadas, com muitos backups. Não é tão simples destruir uma massiva biblioteca digital. Quanto maior a imersão da civilização nesse novo mundo online, mais investimento haverá no sentido de evitar que tal mundo deixe de existir.
O metaverso é um caminho sem volta. Provavelmente não será aquela tosqueira apresentada pelo Zuckerberg, com bonequinhos datados. Também não será exatamente um mundo totalmente virtual, já que haverá uma integração com o mundo físico por meio da realidade aumentada (AR).
Creio que, pesando prós e contras, o mundo virtual será algo satisfatório, um mundo onde você será "feliz", por assim dizer, e onde irá acumular bens que serão simbolicamente seus, mas concretamente sequer existem.
Haverá problemas neste mundo virtual? Certamente. O metaverso, de certa forma, será uma espécie de reino feudal cujas terras são emprestadas pelos senhores (a Big Tech) a seus vassalos (os usuários). Haverá algo de sombrio, de cyberpunk, a vigilância, a dependência, mas creio que já escrevi demais e por hora fiquemos só no lado otimista da coisa.
O metaverso será divertido e será prático. Vai facilitar a vida em muitos aspectos. Até igrejas vão fazer missas e cultos no metaverso, ganhando um boost na evangelização (o que será irônico levando em conta que alguns crentes mais extremistas dirão que o metaverso é coisa do Diabo). Afinal, se não for assim, não vai atrair o interesse público. O sucesso do metaverso depende da satisfação que ele irá proporcionar.