Qaligrafia
Séries, livros, games, filmes e eteceteras 🧙‍♂️

Sobre moderação de conteúdo nas redes sociais

Desde que o Elon Musk comprou o Twitter, ele tem trabalhado em desmontar o sistema de censuras e moderação de conteúdo que havia na plataforma, pois, segundo ele, são um entrave à liberdade de expressão e a um ambiente de discussão pública aberta. 

Aqueles que discordam dessa nova proposta afirmam que a rede social pode se tornar um ambiente tóxico, com pessoas cometendo ofensas e crimes à vontade. Bom, não é bem assim, pois é evidente que, mesmo tendo reduzido a moderação, o Twitter permanece com um código de conduta e também não tolerará postagens claramente criminosas, mas o fato é que antes havia uma censura excessiva e muitas vezes enviesada, realizada arbitrariamente pelos funcionários do site.

Por um lado existem usuários que veem mais importância na liberdade de expressão, pois sentem-se incomodados em ter posts censurados ou até contas banidas como uma punição desproporcional a alguma coisa que tenham dito. Por outro, há pessoas que enfatizam mais a necessidade de se sentirem confortáveis no site, sem serem expostas a conteúdo que desperte algum sentimento negativo.

Como balancear as duas coisas? Bom, certamente não é da maneira que o Twitter vinha fazendo, bem como outras redes sociais, assumindo o papel de juiz supremo do conteúdo. Vejamos o caso do ex-presidente Trump. Em janeiro de 2021 aconteceu a invasão do Capitólio dos Estados Unidos, realizada por apoiadores de Trump insatisfeitos com o resultado da eleição. O próprio Trump se manifestou nas redes sociais, orientando seus seguidores a voltarem para casa. O Twitter, porém, julgou arbitrariamente que Trump foi o responsável por incentivar esse evento, banindo-o para sempre da rede social.

Foi, portanto, claramente uma decisão arbitrária e enviesada. Ora, como culpar Trump de incentivar a invasão ao Capitólio se ele mesmo falou que não invadissem? O que ficou claro que é a galera da moderação no Twitter aproveitou a ocasião para se livrar de alguém que não gostavam por motivos políticos. O resultado é que parte dos usuários ficou feliz com o banimento, aqueles que também não gostavam do Trump, mas aqueles que eram favoráveis a ele ficaram insatisfeitos com a decisão.

Creio que uma solução para este tipo de problema é deixar a moderação nas mãos dos usuários por meio de filtros. Sim, já existem filtros nas redes sociais, mas eles podem ser melhores, oferecer mais opções para o usuário final. Em vez da moderação do site aplicar um banimento sumário, poderia se ater a colocar avisos no perfil ou post, como realmente acontece em alguns casos no Twitter. O post ou perfil fica marcado com um aviso de que violou alguma regra, mas se alguma pessoa quiser ver ela pode, ignorando o aviso.

Por padrão, a rede social pode vir com uma série de filtros: de palavrão, de conteúdo sensível, de conteúdo detectado como fake news ou misinformation e até conteúdo político. Caberá ao usuário, fuçando as configurações, liberar os filtros conforme seu interesse.

Na verdade não há nada de novo nessas ideias e é algo que já funciona em muitos sites, mas pode ser aprimorado e substituir o banimento sumário. Se um conteúdo desagrada a metade dos usuários, mas interessa outra metade, por exemplo, um a cena de um filme de terror, banir o material irá satisfazer apenas metade dos usuários. Mais democrático seria simplesmente tornar este material visível apenas a quem tem interesse.

Com a evolução dos algoritmos, provavelmente será assim. Uma vez que a IA conhecerá seus gostos melhor até que seus amigos e parentes, ela intuitivamente vai saber filtrar conteúdos, então a moderação será totalmente voltada aos indivíduos. Isto pode trazer outros problemas, como a consolidação das bolhas de pensamento, já que cada pessoa permanecerá em sua zona de interesses, jamais avançando para a diversidade de pensamento. Mas isto é tema para outro post.

Elon Musk e o retorno do amplo debate

Elon Musk

Geralmente associamos as atitudes e políticas de uma rede social à figura do CEO ou fundador, como se realmente uma pessoa fosse a responsável direta pelas decisões deste site. Por exemplo, quando o Facebook bane determinada pessoa ou página, as reclamações são direcionadas ao Mark Zuckerberg, mas a coisa é mais complexa.

Logo no começo das grandes empresas do Vale do Silício, como Google, Facebook e Microsoft, realmente as decisões e até a filosofia da empresa estavam mais diretamente ligadas à vontade de seus fundadores, mas aí com o tempo e o crescimento destas empresas outras influências começaram a tomar espaço.

Como boa parte da receita das empresas de internet vem de anúncios, é natural que evitem qualquer conteúdo que possa desagradar os anunciantes. Há anunciantes que não querem ver suas marcas associadas a temas polêmicos, exigindo do site uma política mais rigorosa de restrição de conteúdo. 

Além disso, todas essas grandes empresas em algum momento de sua ascensão foram abordadas por políticos e militares a fim de estabelecer parcerias, de ceder dados para vigiar criminosos e sabe-se lá quantas informações compartilham com governos acerca da população. O governo pode exercer pressões no sentido de cobrar que a rede social seja mais rigorosa no tratamento de determinados assuntos, pessoas ou grupos.

Por exemplo, todos sabem que as redes sociais chinesas, como Weibo, precisam seguir direitinho as "orientações" do Partido, censurar certos temas e banir quem o governo indicar como subversivo. Nos países democráticos, também o governo dá seu pitaco nas redes sociais, embora de forma mais sutil.

Este estado das coisas já há tempos se tornou o padrão no reino da internet, de modo que as redes sociais são bem mais restritivas e rigorosas em banir, punir, silenciar ou dar um shadowban por questões políticas, ideológicas, etc. Já houve algumas tentativas modestas de criar redes sociais independentes de toda essa vigilância de discurso, mas nenhuma conseguiu até agora ter a popularidade de um Facebook, Twitter ou Instagram.

Eis que veio o Elon Musk e pegou todos de surpresa, comprando o Twitter e propondo um modelo bem à moda antiga, bem internet raiz, de interferir o mínimo possível na liberdade de expressão dos usuários, evitando uma arbitragem enviesada e promovendo o amplo debate.

Esta proposta despertou a fúria de muita gente e a desconfiança de quem estava acostumado a manter as redes sociais na rédea curta, como governos e acionistas com interesses ideológicos. Elon Musk agora virou persona non grata em parte da opinião pública, principalmente por influência da mídia mainstream. 

Ora, pergunte a alguns haters do Elon Musk qual o motivo por que o odeiam, e darão respostas bem vagas. Aparentemente, muitos haters simplesmente não gostam da personalidade dele, de seu humor sarcástico no Twitter, o que é um motivo bem besta para considerar alguém um inimigo público.

O fato é que ele está trazendo essa proposta de como uma rede social deve funcionar e de fato está chamando atenção até de quem já é veterano nesse negócio como o Mark Zuckerberg. Segundo a Reuters¹, Zuckerberg demonstrou respeito pelo Elon Musk e está observando o seu modelo de gestão do Twitter, acreditando que ele pode funcionar. Acrescenta: "I'm 100% convinced he's trying to help the world with all of his endeavors".

Tenho impressão que com este comentário o Zucka não quis simplesmente ser diplomático, mas ele deve nutrir uma expectativa de que o modelo de "internet livre" do Elon Musk realmente inspire outras empresas e a Big Tech, porque todos saem ganhando. Ganham os usuários, que podem se comunicar nas redes sociais sem ficar pisando em ovos com medo de restrições, ganham as redes sociais, que se tornam um ambiente acolhedor e que atrai público em vez de espantá-lo. 

Olhando o big picture, o modelo do Elon Musk não é apenas para o Twitter ou as redes sociais, mas para o mundo e os governos. Se outras empresas seguirem este caminho e a valorização do amplo debate e da liberdade de expressão se tornarem mais presentes no mainstream, haverá cada vez menos espaço para governos totalitários, que silenciam sua população, governos onde é proibido criticar o próprio governo.

Em uma verdadeira democracia, é possível criticar o governo e a própria democracia; em uma ditadura, é proibido criticar a ditadura e seus governantes.

Se nas redes sociais as pessoas sentirem a liberdade para expor suas opiniões e críticas, elas se tornarão menos tolerantes com imposições totalitárias de seus governos. Foi assim que aconteceu a famosa Primavera Árabe, quando o Twitter foi usado pela população como uma ferramenta de comunicação e para espalhar o fogo da insatisfação contra a corrupção do governo. 

As redes sociais, quando permitem a livre comunicação, quebram a espiral do silêncio na sociedade, pois uma pessoa, vendo que outras pessoas estão se manifestando acerca de algo que não concordam, passa a ter coragem de expor também a sua voz.

A verdade é que, pensando de forma maquiavélica, é muito melhor para qualquer governo, a longo prazo, que seu povo seja feliz e livre para falar, pois isto reduz a tensão social, reduz o risco do sistema quebrar. 

A ficção nos deixou dois grandes modelos de mundo com uma forte ordem social: 1984 e Brave New World. O modelo 1984 opta pela tirania explícita, reprimindo a população sem dó. Este tipo de ordem social acaba semeando a própria queda, alimentando na alma da população o desejo de mudança, de revolução, de ruptura. Algum dia haverá uma rachadura nessa represa e o caos se instalará.

Já o modelo Brave New World é baseado na satisfação de seus cidadãos, inebriados pelo entretenimento, a pílula da felicidade (Soma) e uma vida relativamente livre. É difícil este sistema quebrar, pois ninguém tem motivação para fazê-lo, já que está tudo bem.

De certa forma, o modelo apresentado pelo Elon Musk tem esta feição de Brave New World. O bizarro é que tem pessoas que preferem o modelo 1984, pessoas talvez tomadas por algum tipo de síndrome de Estocolmo, amantes da sensação de temor. 

Notas:


Palavras-chave:

Universo e consciência

O universo é uma fábrica que funciona com o propósito final de produzir consciência. Em seu passado primordial, o universo era basicamente uma pilha de matéria-prima, os primeiros átomos. Esta matéria então foi processada, gerando as estrelas e galáxias. Cada galáxia em si é uma gigantesca máquina, um caldeirão onde as estrelas dançam num redemoinho e em meio a esta dança os planetas vão surgindo como produto das nebulosas. As nebulosas são o resultado de um longo processo de transformações químicas no que outrora fora uma estrela, de modo que o hidrogênio é o ingrediente para a formação de todos os demais elementos, elementos estes que serão essenciais nos planetas para produzir uma complexidade de estruturas e substâncias, rochas, gases atmosféricos, água, as proteínas primordiais que serão os tijolos na composição da estrutura das células e assim tem início a vida. A vida dependerá de uma série de condições cósmicas, do perfeito posicionamento dos planetas, do tamanho ideal de seu sol e tantos outros fatores. Cada galáxia, com bilhões ou trilhões de estrelas, experimenta diversas condições, de modo que, por tentativa e erro, em alguns casos haverá a condição ideal para a vida. A vida então pode se desenvolver, se diversificar, evoluir, a ponto de produzir seres com aquilo que se pode chamar inteligência e esta pode se tornar ainda mais complexa a ponto de constituir uma verdadeira consciência. A consciência é o estágio definitivo da evolução dos seres vivos, o produto mais fino da fábrica do universo. Uma vez que haja seres conscientes, ao longo das eras eles se empenharão em uma busca para compreender o universo e para transcender os limites da vida planetária. Seres conscientes eventualmente aprendem a viajar entre as estrelas e também procuram desvendar os segredos da própria consciência. Neste processo, continuam evoluindo a ponto de alcançar uma supraconsciência, superando até mesmo os limites da matéria. Para nós, humanos, esta consciência cósmica parece invisível, inalcançável, pois no estágio atual somos como formigas diante de montanhas. Sequer somos capazes de enxergar o topo da montanha. É formidável, porém, perceber que já somos o produto final da máquina do universo. Somos consciência. Somos uma joia bruta e que o tempo, milhões, bilhões de anos, cuidará de refinar.

(30,11,2022)

Lembranças do telefone de rodinha

Telefone antigo de rodinha

Um abismo tecnológico separa a infância de quem nasceu na era da internet e todos os que viveram antes disso. A chamada geração millenial, da qual faço parte, vivenciou na infância ou adolescência a grande transição entre estes dois mundos. Logo, temos uma curiosa mistura de lembranças de coisas que antes eram comuns e agora são obsoletas. Uma delas é o "telefone de rodinha".

O telefone fixo já era a forma mais rápida de comunicação há meio século nas casas dos boomers e continuou sendo na infância dos millenials. Esse aparelhinho era item obrigatório na maioria das casas. Nos ano 80 era item de luxo aqui no Brasil, custava caro mesmo, mas nos anos 90 já estava bastante popular e presente também nas casas de baixa renda.

Ele costumava ficar na sala de estar, mas algumas famílias se davam ao luxo de ter uma extensão, que ficava em algum quarto. O curioso é que, se alguém estivesse usando um dos aparelhos, era possível ouvir a conversa no outro aparelho, um hábito relativamente comum e desrespeitoso dos parentes que ficavam xeretando as conversas uns dos outros.

Também existia o fenômeno da linha cruzada, que era um problema no gerenciamento da própria operadora de telefonia. Às vezes acontecia de você fazer uma ligação e caia no meio de uma conversa aleatória de outras pessoas, criando situações embaraçosas ou engraçadas.

Era relativamente comum acontecerem ligações erradas, pois discar um número era uma tarefa complicada. O termo "discar" vem justamente do telefone de disco. Você tinha que girar o disco várias vezes para compor o número do telefone, como se estivesse acertando a combinação de um cofre, e nessa processo podia facilmente errar um dos números. Hoje em dia os celulares têm as agendas de contatos e até atendem a comandos de voz.

É curioso então que o telefone fixo analógico fez com que acidentalmente falássemos com vários estranhos por causa das linhas cruzadas e ligações erradas. Também havia o trote, um costume de crianças e brincalhões que consistia em ligar para algum número aleatório e fazer alguma pegadinha, alguma piada besta tipo: 

- Alô, aí vocês trabalham com roupa?
- Não, garoto, aqui é uma livraria.
- Então vocês trabalham pelados?

Telefone antigo de rodinha

Pois é, trotes eram bem bestas mesmo, mas era o que tinha na época. O humor pré-internet era bem bobinho e repetitivo, pois obviamente a comunicação por telefone, mesmo sendo veloz, não tinha a riqueza e pluralidade da internet. 

A internet é um grande brainstorm mundial. Piadas correm o mundo, ideias passam de pessoa para pessoa e se modificam, se multiplicam. Hoje todo dia surgem memes novos e rapidamente ficamos entediados com as mesmas piadas. Naqueles velhos tempos, as pessoas levavam anos contando as mesmas piadas de novo e de novo, e rindo sempre com elas, o que hoje ficou conhecido como "piadas de pavê".

Hoje em dia há muitas maneiras de se comunicar com pessoas conhecidas e desconhecidas, tem redes sociais, salas de bate-papo, chats nos canais de streamers, fóruns, etc. E a maioria destes recursos pode ser acessada de graça. Na era do telefone tudo era pago, tudo vinha cobrado na conta telefônica, o que gerava surpresas desagradáveis, pois as crianças descobriam estes serviços "disque alguma coisa" e ficavam brincando sem se dar conta do custo.

Havia números que você discava e ouvia piadas. Imagine isso, pagar pra ouvir piadas por telefone, e piadas bestas, piadas de pavê. Tinha números para uma espécie de sala de bate-papo por telefone. Pois é, isso já existia antes da internet. Imagine várias pessoas ao mesmo tempo falando no telefone. Tinha, claro, o disque sexo, com atendentes que ficavam falando sacanagem e gemendo. Isso era um big deal nos anos 90 e já teve até filmes sobre isso.

Lista telefônica

Ao lado do aparelho de telefone vivia outro item sagrado, o catálogo ou lista telefônica. Era um calhamaço feito com papel de baixa qualidade e que continha todos os números telefônicos de pessoas, empresas, instituições, enfim, quem quer que tivesse um telefone, teria seu número listado ali. Geralmente o catálogo era estadual, pois um catálogo nacional, convenhamos, seria gigantesco.

Veja só como éramos relaxados com questões de privacidade. Nestes catálogos constava não só o seu número de telefone, mas seu nome completo e endereço. Isso mesmo, facilmente se podia encontrar a casa de alguém por meio do número. Mesmo assim, não era comum acontecerem incidentes desagradáveis ou crimes por meio desta exposição de dados pessoais. Eram tempos mais simples.

De fato este catálogo era extremamente útil, principalmente para encontrar serviços, hotéis, hospitais, restaurantes, procurar empregos e profissionais diversos, inclusive do sexo. As famosas "páginas amarelas" é onde ficavam os anúncios, tanto de serviços e produtos quanto de empregos. Estava tudo lá para o bom pesquisador. Hoje basta dar um Google.

A transição para a era da internet se deu por meio do próprio telefone fixo, pois antes da popularização da internet banda larga via fibra ótica, havia a internet discada, que era feita conectando o cabo da linha telefônica à placa de modem do computador. Mas isso já é outra história.

O futuro do streaming

Streaming services

A Netflix revolucionou o mercado de entretenimento, criando um império de streaming de filmes e séries. Foi ela quem consagrou o streaming como um novo hábito que se tornou tão comum quanto ver TV. Em muitas famílias ela substituiu totalmente a TV, tanto aberta quanto por assinatura. Netflix se tornou tão mainstream que muitos aparelhos de TV já vêm de fábrica com um botão Netflix no controle remoto.

Foi como a era do Império Romano dos streamings. Seguiu-se depois a era dos estados nacionais, pois os sites de streaming começaram a se multiplicar e alguns players fortes se destacaram, como Prime Video, Disney+, Apple TV e HBO Max. E há muitos outros serviços mais modestos e nichados, como Paramount+, Lionsgate+, Discovery+ (que deverá se fundir à HBO), Telecine, Crunchyroll, Mubi, etc. Pasmem, até a brasileira Multilaser, empresa de produtos eletrônicos, está começando seu serviço de assinaturas, o Multi+.

Muito provavelmente, após essa multiplicação de sites, a explosão cambriana dos streamings, deve vir a era do canibalismo, com os peixes grandes devorando os pequenos, como aqueles jogos de bactérias fagocitando umas às outras até que sobram só as maiores.

No começo da internet, havia muitos serviços de e-mail disputando espaço. Com o tempo apenas dois se estabeleceram como os grandes dominantes neste negócio, Hotmail/Outlook e Gmail. Ainda hoje existem diversos outros serviços, até mesmo um provedor de hospedagem de site pode fornecer um e-mail personalizado para o cliente, mas nenhum destes serviços alternativos chega aos pés da gigantesca dominância de Gmail e Outlook. Algo semelhante deve acontecer com o streaming.

Arrisco aqui a previsão de que, no fim de toda a disputa por espaço, vão se estabelecer dois gigantes, Apple e Amazon. Talvez também a Microsoft, se ela resolver expandir o XBox para um serviço que vá além de games e envolva também o streaming audiovisual.

A Apple tem hoje um market cap de 2,40 trilhões de dólares. Isso mesmo, é uma das poucas empresas trilionárias do mundo. Ela tem seu próprio streaming, a Apple TV, que ainda ocupa uma fatia pequena desse mercado, com cerca de 6% (Disney+ tem cerca de 18%, Amazon Prime 24% e Netflix 27%). Abaixo dela vem a Microsoft, com um valor de 1,83 trilhão. A Alphabet/Google vale 1,26 trilhão e a Amazon 950 bilhões.

O market cap da Netflix é de 127 bilhões e o da Disney é de 175 bilhões (lembrando que a Disney é muito mais que streaming, sendo um grande conglomerado de diversos serviços de entretenimento). A Warner Bros. Discovery é bem menor, com um market cap de 26 bilhões.

Os peixes grandes da internet, portanto, são Apple, Microsoft, Google e Amazon. São estes os players que devem entrar na jogada de comprar outros serviços de streaming, absorvendo tudo pelo caminho e abocanhando o mercado consumidor.

Não é improvável pensar, por exemplo, que a Apple um dia possa comprar a Disney e quem sabe até a Warner junto, finalmente fundindo Marvel e DC, abrindo possibilidades para todo um novo universo de crossovers no cinema. 

A Amazon já começou comendo pelas beiradas, comprando o studio MGM por 8,5 bilhões. No Prime Video, inclusive, existe a opção de fazer assinaturas extras de outros streamings menores, como Paramount+ e Looke. Não duvido que no futuro a Amazon resolva comprar de vez estes parceiros.

Em algum momento deve haver um interesse dos gigantes para comprar a Netflix. Talvez estejam só esperando ela perder sua liderança e ficar mais barata para a aquisição.

Arrisco ainda acrescentar outro gigante que está começando a se destacar, o império crescente do Elon Musk. A Tesla tem agora um market cap de 530 bilhões, sendo que ela já chegou a valer 1,2 trilhão. Pois é, o último ano foi uma maré de azar para a Tesla, mas mesmo assim continua sendo uma empresa de meio trilhão. A SpaceX está valendo 127 bilhões e subindo.

Agora Musk está investindo no Twitter, que lhe custou 44 bilhões, mas tem potencial para se tornar um gigante de mídia, superando o Facebook que está em decadência. O Twitter deve sair de seu estado engessado em que existia há anos e lançar mais e mais funcionalidades e serviços, provavelmente também um serviço de vídeos para concorrer com Youtube e Tiktok.

O plano a longo prazo do Elon Musk é criar o tal X.com, um grande conglomerado de internet que pode ficar à altura da Apple, Google e Microsoft. Se ele conseguir esta proeza, provavelmente também vai querer a sua fatia do mercado de streaming. Será o Elon Musk o futuro comprador da Netflix?

Palavras-chave:


A brisa e a cortina

A cortina na janela
dá forma e vida à brisa.
Não vemos o ar da brisa,
mas eis que ela existe
no farfalhar da cortina.
É como corpo e alma,
consciência e vida.

(26,11,2022)

Paradoxo de Fermi e o shadowban alienígena

Levando em conta o tamanho e a idade do universo, há muitas chances de haver civilizações avançadas na galáxia, algumas até capazes de colonizar várias regiões da galáxia. Mais ainda, pode haver civilizações intergalácticas, o que tornaria a Via-Láctea ainda mais movimentada, frequentada por seres avançadíssimos.

Por que então não os encontramos? Entre muitas possíveis explicações, uma delas seria: eles não querem contato conosco, não se interessam ou não nos consideram prontos para ter um contato. Estamos em um estágio da civilização em que nosso planeta foi colocado em uma blacklist, está levando um vácuo cósmico, um shadowban da comunidade interestelar. 

Somos como o player que recém criou uma conta em um jogo multiplayer e ainda não desbloqueou o acesso ao chat e à possibilidade de se engajar em grupo com outros players. Estamos no tutorial das civilizações.

Musashi, o macho sigma

Musashi and Otsu

Musashi foi uma das melhores histórias que já li na vida, tanto o livro de Eiji Yoshikawa, quanto o mangá (Vagabond) de Takehiko Inoue. Há uma bela combinação de arte marcial, filosofia budista e personagens interessantes.

Estes dias estive pensando sobre o livro e percebi que Musashi poderia ser classificado como um macho sigma. Esse negócio de macho alfa, beta e sigma tem sido popularizado ultimamente pelo movimento masculinista e há quem use estes termos até como uma forma de definir os tipos de personalidade.

Teorias sobre tipos de personalidade existem literalmente há séculos. Na Grécia antiga havia a classificação de 4 tipos: melancólico, sanguíneo, fleumático e colérico. Até mesmo os sistemas de zodíaco, como o chinês, o europeu e o cigano, são uma forma de classificar tipos de personalidade. Mais recentemente surgiu o sistema MBTI que virou uma verdadeira moda na internet (sou INTJ, by the way).

Quanto ao sistema masculinista, acho que não é suficiente para descrever a personalidade humana e de fato seu propósito não é este, mas sim descrever relações sociais e a hierarquia que se forma entre as pessoas.

Neste sentido, eu diria que alfa é a pessoa que assume uma posição de liderança, beta é o que se submete como liderado e sigma é o que rejeita ambos os papéis e segue por um caminho independente. 

Um possível exemplo de macho alfa nessa história foi o Yagyu Munenori, que era um daimyo, um senhor de terras. Yagyu tinha uma forte aura de autoridade. Musashi, por sua vez, era claramente um sigma, pois desde criança ele sempre foi rebelde e independente e a sua jornada de samurai era solitária, insubmisso a escolas ou quem quer que seja.

Quem sofreu com isto foi a doce Otsu, uma garota órfã e amiga de infância de Musashi que acabou se apaixonando por ele e viveu à sua procura, mas ele, em sua jornada de sigma, estava sempre além, peregrinando em uma jornada de aperfeiçoamento. Ele tinha sentimentos por Otsu, mas que eram reprimidos para que não o convencessem a se estabelecer e encerrar sua carreira. Amar um sigma é um exercício de paciência.

Musashi and Otsu

Uma breve história do politicamente correto

Comics Code Authority

Hoje em dia o politicamente correto costuma ser associado ao progressismo e à chamada ideologia woke ou, como se diz por aqui, à lacração. Ironicamente, o politicamente correto nasceu no conservadorismo.

O politicamente correto pode ser descrito como basicamente uma ética social que visa reprimir a liberdade de expressão a fim de alcançar um "bem maior" que é evitar ofender as pessoas. Pois bem, podemos rastrear isto até tempos remotos, quando as sociedades desenvolveram seus tabus e sistema de crenças e valores morais, de modo a se formar um clima de repressão tácita a qualquer comportamento indecente que viole tais princípios.

Avançando para a era vitoriana, dominada pela ética do puritanismo protestante, temos uma sociedade cheia destas regrinhas de etiqueta, comportamento, vestuário, linguajar. Algumas destas regras tácitas (ou seja, aquelas regrinhas da vida em sociedade que não estão escritas em lugar algum, mas as pessoas sabem que existem) acabaram se tornando mais concretas na forma de leis. Foi assim que Oscar Wilde acabou na prisão pelo simples fato de ser homossexual.

Na década de 1950, os EUA abraçaram fortemente a moral conservadora, o que tem um interessante exemplo no Comics Code Authority. Este código exibia um selinho nas capas das revistas em quadrinhos, indicando que aquela publicação era family friendly. 

O código foi criado como uma resposta ao bafafá que surgiu após a publicação do livro Seduction of the Innocent, que acusava as revistas em quadrinhos de perverter a juventude. Para convencer os pais das crianças a continuar comprando os gibis, o código foi criado, satisfazendo a moral popular.

Era, portanto, um instrumento do politicamente correto. Pelas orientações deste código, as revistas evitavam palavrões, sexo ou violência explícita. Por um lado foi uma forma de evitar a exposição de crianças a conteúdo adulto, por outro houve uma repressão da criatividade artística e da liberdade de expressão.

A caretice dos quadrinhos começou a ser combatida no final da década de 60, quando nos EUA houve a revolução cultural que desafiou a dominância conservadora. A ironia da história é que, com o passar das décadas, o progressismo (filho ou neto deformado do liberalismo clássico) foi se tornando dominante no mundo do entretenimento e passou a adotar novos tabus e a moral politicamente correta, agora adaptada para as pautas da esquerda.

Que plot twist! A esquerda americana, que no século passado lutava pela liberdade de expressão e combatia o politicamente correto, passou a imitar o conservadorismo, adotando o politicamente correto para combater o que considera ofensivo.

Esta nova versão do PC (Political Correctness) parece até mais condescendente que a sua predecessora, além de mais exagerada e dada a terminologias e rótulos, tentando classificar a tudo e todos. No esforço de recriar o mundo à imagem de seu ideal ético, chega a banir palavras e criar uma novilíngua. Acabam convencendo as pessoas de que certas palavras são ofensivas, mesmo que não sejam, e que precisam ser substituídas pela nova versão politicamente correta.

Assim, "anão" virou "pessoa com nanismo", "mendigo" virou "pessoa em situação de rua". A palavra "homossexualismo" foi problematizada, interpretada como se ela fosse uma referência a doença, pelo simples fato de usar o sufixo "ismo" (ora, há inúmeras palavras com "ismo" que nada têm a ver com doença, tipo capitalismo, comunismo, budismo, cristianismo...). Não é que realmente houvesse um problema na palavra, mas o problema foi criado porque o PC progressista tem esta paranoia problematizadora e de recriação do mundo. Assim substituíram por "homossexualidade".

A mania problematizadora nunca fica satisfeita, de modo que mesmo as palavras que ela adota acabam sendo problematizadas e substituídas de novo e de novo. Aqui no Brasil, as palavras "moreno" ou "mulato", por exemplo, foram substituídas por "negro", mas com o tempo o progressismo brasileiro não ficou satisfeito e operou outra substituição, trocando "negro" por "preto", talvez porque "negro" lembre vagamente a palavra tabu americana "nigger". Imagino que no futuro também "preto" será problematizado e substituído por alguma outra coisa. Talvez cheguem a imitar os americanos com a expressão "pessoa de cor", que aliás já vem sendo questionada pelos progressistas lá da gringa.

Um caso que mostra como essa recriação de nomes pode ficar complicada e impossível de ser aplicada em uma conversação normal é a busca por uma maneira politicamente correta de definir os gêneros. "Homem" e "mulher" ou "macho" e "fêmea" são considerados termos não inclusivos, devido ao fato de haver pessoas com identidade de gênero que não condiz com a condição biológica. Então há quem sugira os termos "pessoas com pênis" e "pessoas com vagina". 


Imagina ter que ficar usando esta linguagem no dia a dia: "Hoje fui pegar o metrô e tinha vagões só para pessoas com pênis e outro para pessoas com vagina, aí uma pessoa com pênis entrou num vagão com pessoas com vagina e elas não gostaram e expulsaram a pessoa com pênis". 

Outra sugestão ainda mais prolixa é "pessoas que engravidam" ou "pessoas que têm risco de câncer de testículo". Sim, este tipo de sugestão já foi feito para substituir a palavra "homem". A intenção em ser politicamente correto acaba ignorando os aspectos práticos da conversação humana. É simplesmente impossível conversar casualmente usando toda esta prolixidade.

A condescendência deste movimento chega ao nível caricato da Senhorita Morello (de Todo Mundo Odeia o Chris), pois querem proteger diversos grupos ou pessoas de ofensas, sem sequer saber se de fato eles se ofendem com este ou aquele termo.

Ora, sou nordestino, cearense, e não me importo em ser chamado de Ceará por pessoas de outras regiões, mas no dicionário politicamente correto, esse apelido é um crime. Tem outro pior: "cabeça chata". Pois guess what, quem mais faz piada sobre cabeça chata ou cabeção somos nós cearenses. O Ceará é famoso por ter grandes humoristas (vide o saudoso Chico Anysio e tantos outros) e praticamente todos eles fazem piadas sobre cearenses e cabeças chatas. Relaxa, galera do PC, não nos ofendemos com isto. E também não é uma questão de "lugar de fala". Rimos com piadas sobre cabeça chata, quer sejam feitas por cearenses ou por pessoas de qualquer outra região.

Enfim, hoje em dia o PC é propagado tanto por conservadores quanto por progressistas, cada qual adaptando-o às suas próprias pautas. Por exemplo, o conservadorismo irá reagir negativamente a piadas sobre Jesus ou crentes, enquanto o progressismo reagirá a piadas sobre gays.

O que vemos na prática é que o PC progressista tem se mostrado mais intenso e militante do que o conservador, talvez devido ao fato dele agora contar com todo um aparato da mídia, a indústria do entretenimento, a Big Tech e políticos de esquerda.

Naturalmente, conservadores e progressistas se digladiam em torno destas pautas, pois o progressista quer fazer piadas sobre crentes, mas ofende-se com as piadas sobre gays, enquanto o conservador quer fazer piadas sobre gays, mas ofende-se com as piadas sobre crentes. Como diz, o ditado, na briga entre o mar e a rocha, quem apanha é o caranguejo. No caso, o caranguejo é a liberdade de expressão.

Habemus Bob Iger

Bob Iger

Sai Bob e entra Bob. De novo.

Bob Iger foi o CEO da Disney por 15 anos, acumulando muitos feitos que tornaram a empresa uma gigante do entretenimento. Foi em seu reinado que a Disney comprou a Pixar, Lucasfilm, Marvel e Fox. Em 2020 ele passou o bastão para Bob Chapek, dez anos mais novo, mas parece que o substituto não deu conta do negócio.

Na gestão de Bob Chapek, a Disney lançou seu serviço de streaming e a fase 4 da Marvel, mas o desempenho da empresa só tem piorado, tanto em termos de qualidade, quanto no cumprimento das metas financeiras.

Chapek teve o azar de pegar a empresa logo em fevereiro de 2020, às vésperas do desastre econômico que viria sobre todo o mundo por causa dos lockdowns. Além disso ele se envolveu em politicagem, tentando agradar o governo da Flórida quanto a leis que proibiam ensino de ideologia de gênero nas escolas (visto que a Flórida é um estado majoritariamente conservador) e também tentou se desculpar com a comunidade gay. Resultado: não agradou a ninguém.

Curiosamente, nestes últimos três anos a Disney tem se tornado bastante militante em questões ideológicas progressistas, o que fica explícito até nos filmes e séries. Não dá pra dizer que isto se deve à gestão de Chapek, já que o mesmo fenômeno também ocorreu em outras empresas, como a Warner.

Há quem diga que toda esta onda de filmes, séries e até animações "lacradoras" se intensificou em Hollywood depois do movimento MeeToo e especialmente da denúncia, em 2017, de casos de assédio sexual cometidos pelo produtor Harvey Weinstein.

Isto desencadeou o chamado Weinstein effect, uma bola de neve de denúncias envolvendo outras figuras da indústria de mídia. Sabemos muito bem que este mundo da mídia e das celebridades sempre foi cheio de pobres, mas foi no caso Weinstein que a bolha estourou de vez.

Após isto, a indústria desmoralizada resolveu fazer um mea culpa e, como o cafajeste que volta pra casa com um buquê de flores após uma noite na farra, passou a promover conteúdos cada vez mais militantes do feminismo e causas gay, como que tentando agradar o público progressista e instituições como a GLAAD (Gay & Lesbian Alliance Against Defamation), que passaram a pegar no pé de Hollywood com mais intensidade após 2017.

Acontece que os studios se esforçaram tanto em fazer esta sinalização de virtude, que esqueceram de priorizar a qualidade de seus produtos, pois a verdade é que a grande massa do público, incluindo progressistas, está à procura de entretenimento, de boas histórias, bons personagens, e não algum tipo de lição de moral ou mensagem educativa. Esta fase do cinema focada na lacração foi um desastre de público e bilheteria.


Quem falou abertamente sobre isto foi ninguém menos que Tarantino, em uma entrevista a Bill Maher. Ele disse: "There has become a thing that's gone on it seems like, especially in this last year, where ideology is more important than art. Ideology trumps art. Ideology trumps individual effort. Ideology trumps good. Ideology trumps entertaining".

Bom notar que ambos não são conservadores ou republicanos. Politicamente se localizam mais na centro-esquerda, como a maioria dos profissionais da indústria do cinema e TV americana. Dito isto, percebemos aí como a percepção de que Hollywood se tornou excessivamente paranoica em tentar lacrar é algo que até artistas consagrados da área reconhecem.

O resultado é que muitos destes filmes e séries flopam ou não dão o lucro esperado. Não tem como uma empresa sobreviver por muito tempo acumulando fracassos e em algum momento estes grandes conglomerados iriam começar a admitir isto. Um dos primeiros a repensar esta questão foi a Warner, a partir da entrada do David Zaslav¹. Agora a Disney parece estar também recuando, resetando seu negócio ao trocar o Bob Chapek pelo Bob Iger, uma correção de curso.

Tem ainda outro detalhe: já se mostra no horizonte a crise financeira que deve vir em 2023 e as grandes empresas estão se preparando. Amazon, Facebook, o Twitter do Elon Musk, todos fizeram demissões em massa, pois sabem que ano que vem será preciso cortar custos. É o que o Zaslav tem feito na Warner e provavelmente o Bob Iger fará na Disney, no sentido de otimizar os gastos em material que seja realmente atraente para o grande público. 

É improvável que Bob Iger seja tão radical quanto Zaslav ou que a Disney renuncie à sua agenda ideológica, mas no mínimo eles devem recuar alguns passos, pois na gestão Chapek foram longe demais, longe a ponto de perder público.

Notas:


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A era cyberpunk se aproxima?

Blade Runner (1982)

Já vivemos a era das tribos, dos reinos e impérios e estamos agora nos estados nacionais, governos, estes enormes mastodontes comedores de impostos. Há quem alimente o sonho utópico de que isto algum dia mude, que a ordem mundial seja substituída por alguma revolucionária sociedade comunista, ou quem sabe uma anarquia, um mundo sem países, como no ingênuo Imagine de John Lennon.

Acontece que o poder sempre ocupa o vácuo. Se os governos caírem ou quebrarem, com tantas crises e uma possível grande guerra, quem vai tomar o lugar não é o comunismo, nem anarquismo, nem qualquer outra utopia, mas as megacorporações. O futuro cyberpunk vai deixar de ser ficção.

Em vez de reis, presidentes ou primeiros-ministros, o mundo terá gestores, como um Joh Fredersen, de Metropolis, no alto de suas torres comandando as máquinas. Talvez até cheguemos a um ponto em que a própria máquina será a nossa governante.

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A anistia da pandemia e o poder do pânico

Pandemic amnesty

Recentemente foi publicado um curioso artigo da economista Emily Oster, intitulado "Let's declare a pandemic amnesty" (o URL da página usa o termo "covid response forgiveness")¹. O texto é bastante revelador por ser uma confissão de como a sociedade cometeu erros motivada pelo pânico.

No auge do pavor da pandemia, em 2020, o mundo entrou num estado de alerta que há muito tempo não se via. Os políticos reagiram tomando medidas severas e sem calcular os custos sociais, tratando a sociedade como uma máquina, como se as pessoas fossem robôs que podem ser programados para este ou aquele comportamento. 

Os policiais cometeram excessos. Para quem já esqueceu, na internet há inúmeros registros de policiais tratando pessoas nas ruas com truculência pelo simples fato de estarem na rua ou não usarem máscaras. Houve casos em certos países, como a Inglaterra, em que policiais visitavam casas onde havia uma família reunida, e arrastavam para fora as pessoas porque, diziam, elas estavam se aglomerando. Em vez de adotarem uma abordagem educativa, trataram os civis como terroristas. Teve casos ridículos em que pessoas que estavam praticando hiking solitário no alto de uma montanha foram abordadas por um helicóptero e intimadas a voltar pra casa. Foi a histeria do "fique em casa".

Depois veio a fase da vacina. Ótimo, os governos e laboratórios investiram em pesquisa, tentaram o quanto antes desenvolver uma resposta ao vírus, mas a maneira como foi feita a campanha de divulgação... quão vergonhosa. Recorreu-se ao terror psicológico para convencer as pessoas. Afinal, os fins justificam os meios, não é mesmo? E aqueles que não se vacinaram ou hesitaram ou simplesmente tiveram dúvidas, foram estigmatizados, chamados de genocidas. Falou-se em "pandemia dos não vacinados".

Acontece que a ciência é feita de contínua coleta, análise e reanálise de dados. Com o tempo, as estatísticas foram deixando claro que boa parte da contaminação acontecia ou em ambiente doméstico ou locais públicos com muita aglomeração e pouca ventilação. Ou seja, o cara do hiking tinha mais chances de contaminar ou ser contaminado em casa do que lá no alto da montanha. Duh. O mesmo vale pra um ciclista na rua ou um banhista na praia. E vimos como ciclistas e banhistas foram tratados, perseguidos como terroristas em potencial.

Os dados também mostraram que as vacinas não impediam a transmissão. Não havia isto de "pandemia dos não vacinados". O vírus não dava a mínima para este apartheid, esta divisão da sociedade em duas castas. Chegou-se a acreditar e propagandear que a campanha de vacinação conseguiria o utópico milagre da Covid Zero, de eliminar o vírus do planeta. Entenda algo sobre a mãe natureza: uma vez que um vírus vem ao mundo, é praticamente impossível eliminá-lo. O melhor que a humanidade pode fazer é adaptar-se a ele. Eis que agora, dois anos depois, o vírus continua e se transforma, desenvolve variantes. Ele veio pra ficar.

Pode parecer assustador pensar nisto, mas estamos neste planeta há centenas de milhares de anos e não é à toa. O formidável sistema imunológico se adaptou a muita coisa e continuará se adaptando, ainda mais agora com o auxílio da tecnologia.

O fato é que houve uma nociva estigmatização das pessoas que por quaisquer motivos não seguiram à risca todas as medidas que foram adotadas. Nas redes sociais, pessoas furiosas xingavam e desejavam as mais desumanas punições àquelas que não seguiam as regras. Se pensar bem, foi quase uma histeria fascista, pois ela levou pessoas a enxergarem outras como inimigas da sociedade e que deveriam ser tratadas como párias, denunciadas às autoridades para que fossem levadas à cadeia ou a campos de concentração.

O nível de agressividade da reação das autoridades e da população em geral variou de região para região. Alguns países adotaram uma política de tolerância zero extremamente brutal, como a China, em outros, como a Suécia, houve menos stress. Em cada país, as medidas tiveram mais ou menos rigor, melhor ou pior resultado. O mundo foi um grande laboratório onde várias estratégias foram testadas.

A quantidade de dados gerados nestes anos foi formidável. Há bastante material para análise, algo que pode nos deixar mais preparados para futuras pandemias. Inegavelmente, foi um período de aprendizado.

As diversas medidas adotadas podem ser questionadas. Os estudos podem revelar o que foi mais eficiente, o que foi inútil, o que foi mais prejudicial do que benéfico. O que, porém, não se pode jamais repetir é a reação de ódio e discriminação que houve contra aqueles que não se encaixaram no sistema. Os abusos, a truculência, a estigmatização não podem acontecer de novo. 

Outro grande erro cometido foi a restrição do debate público, algo promovido pela mídia e a Big Tech. Ora, hoje parece ridículo pensar que youtubers evitam falar palavras como "covid", "vacina" ou "pandemia" por medo de que o algoritmo os coloque numa blacklist. A que ponto a coisa chegou. 

O pior é que, no caso da Big Tech, ela assumiu uma postura de detentora do saber que sequer tinha. Em 2020 e 2021, as redes sociais bloqueavam, baniam ou davam um shadowban em pessoas que falavam que as vacinas poderiam não ser eficientes para impedir a transmissão. Era o tipo de informação que ainda estava sendo testada, de modo que ninguém podia afirmar com certeza isto ou aquilo. O tempo passou e os dados mostraram que aquelas pessoas, outrora banidas, estavam certas. E aí? 

Um exemplo que expõe o problema da censura baseada no fact-checking das redes sociais é o caso das reações adversas à vacina baseada em RNA. Logo quando começou a aplicação desta nova tecnologia, já havia estudos apontando possíveis reações adversas e ao longo do tempo novos dados foram aparecendo. Uma das possíveis reações é o desenvolvimento de miocardite e pericardite.

Ora, os primeiros médicos e cientistas que alertaram sobre isto nas redes sociais foram sumariamente silenciados, tiveram as contas banidas. A Big Tech simplesmente assumiu o papel de dona da verdade, julgando quem estava certo ou não sobre o assunto e impedindo o debate público. O problema da miocardite foi taxado como teoria da conspiração e quem quer que tocasse no assunto era ostracizado, estigmatizado como "antivax" ou inimigo da ciência.

Eis que o tempo é o senhor da razão e agora a própria agência reguladora dos EUA, a FDA, já abertamente admite este risco. No Brasil, também a Anvisa já publicou um comunicado² advertindo sobre o risco de miocardite, inclusive esta mesma advertência já está presente na própria bula da vacina produzida pela Pfizer³.

Miocardite

Miocardite

O que antes era taxado como teoria da conspiração, agora já é abertamente reconhecido por agências reguladoras e pelo próprio laboratório da vacina. E como ficam os primeiros médicos e cientistas que alertaram sobre isto e foram acusados de fake news, taxados de anticientíficos e caçados como hereges?

Esse é o problema de grupos como a mídia ou a Big Tech tentarem monopolizar o debate público, dizendo o que é e o que não é verídico. Foi patético o fenômeno em que médicos e pesquisadores acadêmicos, sim, cientistas de verdade, foram silenciados nas redes sociais por algoritmos ou moderadores humanos que não tinham nenhuma expertise na área. 

No caso do Twitter, o novo modelo proposto pelo Elon Musk parece promissor. A checagem de fatos ficará nas mãos da comunidade, por meio do Birdwatch, que permite um debate mais rico e diversificado, menos enviesado. Uma de nossas conquistas civilizatórias foi a possibilidade do debate público, sem censuras, sem imposição de uma autoridade dogmática. Não podemos retroceder neste aspecto. 

Se agora a sociedade está pedindo anistia pelos excessos que cometeu, significa que está confessando, admitindo que cometeu estes excessos. O verdadeiro arrependimento vem de reconhecer o erro cometido e assumir uma disposição em não repeti-lo.

Que o mundo aprenda a não se deixar cegar pelo pânico. O pânico animaliza, é uma reação reptiliana, adversária da razão, da justiça e civilidade do córtex cerebral. 

Angry mob

Notas:



Sobre discutir com idiotas

Se você tentar jogar xadrez com um louco, que não entende as regras do jogo, ele vai fazer lances errados achando que são jogadas geniais, vai atravessar todo o tabuleiro com um peão, pulando por cima das peças e dando um bizarro xeque-mate. E, por mais que você tente explicar que aquela jogada não é possível nas regras do xadrez, o louco não irá entender, irá dizer que você está apenas se queixando porque perdeu e sairá saltitando e comemorando, julgando ser o próximo Kasparov.

Assim é discutir com um idiota. Ele não percebe as falácias de argumentação que comete, não entende que seu raciocínio é incoerente e não admite que seu conhecimento acerca daquilo que discute é deficiente. Ele pode até nunca ter lido nada a respeito do assunto que debate, nunca parou para pensar a fundo a respeito, mas segue opinando como um enxadrista louco que faz jogadas inusitadas com seu peão. No fim, o idiota sempre vai pensar que está com a razão.

Trocadilhinhos

Algumas pessoas
me dão alegria.
Outras, alergia.

Há quem me detesta.
Há quem me dê
festa.

(17,11,2022)

A beleza do curling

Curling

Conheci o curling há muitos anos, vendo alguma transmissão pela TV, e foi encanto à primeira vista. É um esporte relativamente simples, mas que tem uma elegância única.

Basicamente, um lançador arremessa uma pedra em uma pista de gelo e dois varredores ficam friccionando o gelo para controlar a velocidade e direção da pedra. O trabalho dos varredores é importante, mas esteticamente o que mais chama atenção é o arremessador, pois há toda uma técnica na postura e deslizamento do corpo que faz com que o arremessador assuma uma pose muito estilosa, algo que parece até uma cena de personagem de anime performando algum golpe especial.

Curling

As pedras são fabricadas em um caro processo usando granito, que é cuidadosamente polido e envernizado. Costumam pesar cerca de 17 quilos e requerem uma mão treinada para que possam ser arremessadas com o devido controle de sua inércia.

Bola de gude

Há quem chame o curling de "xadrez no gelo", mas acho que ele se parece com uma versão adulta de outro jogo mais infantil, o das bolas de gude. Se pensar bem, os fundamentos são bem parecidos, já que você deve manipular uma pedra para bater em outras pedras e ocupar certo espaço no fim do trajeto.

É um jogo de precisão, que requer concentração e calma dos atletas. Não é para quem prefere esportes frenéticos. Cada lance tem um ritmo quase em câmera lenta o que, somado à postura corporal dos arremessadores, dá a este esporte um ar bem fotogênico.

Curling

Curling

Curling

O terror furry em The Farm

The Farm (2018)

O canibalismo é um tema bastante comum no terror e um dos personagens mais memoráveis do gênero é um canibal, o Hannibal¹. Algumas das criaturas mais populares da ficção de horror são canibais, como os vampiros e zumbis. Apesar da aparente saturação deste tema, histórias envolvendo canibalismo nunca cansam de nos impressionar.

Há algo de fortemente simbólico no ato de um ser humano devorar outro. Ser devorado por animais, por leões, corvos, criaturas marinhas, é um temor frequente no folclore, mitologia e ficção, mas um humano devorando outro... isto é outro nível de horror.

Além disso, o canibalismo resulta em um efeito que é um dos mais temidos na consciência coletiva: a desumanização. O canibal torna-se um monstro, um pós-humano. Dependendo da maneira com que é representado, pode até parecer um humano superior, uma espécie evoluída, como o Drácula. Já a pessoa canibalizada se torna um ser inferior, uma presa do predador sobre-humano, um mero objeto, uma pilha de carne a ser retalhada. O gado humano.

The Farm (2018)

The Farm (2018), do novato e desconhecido Hans Stjernswärd, segue nesta linha. A história é bem clichê, sem grandes ambições e o roteiro tem alguns furos. Em uma cena, por exemplo, os "fazendeiros" distribuem uma lavagem para alimentar os humanos, mas eles estão dentro de gaiolas e simplesmente não conseguem pegar a comida. Um dos figurantes até tenta pegar a comida, atravessando os dedos na grade, mas claramente é impossível, tornando todo este ritual de alimentação do gado sem sentido.

Um dos erros mais notáveis é no final, quando duas mulheres são servidas à mesa como se fossem porcos assados inteiros. Nota-se que não houve um esforço em maquiar as atrizes de modo a realmente parecer que foram assadas vivas, pois elas continuam com os cabelos intactos, algo impossível se elas fossem submetidas ao calor intenso de um forno.

Mas ok, como é um filme indie e barato, a gente deixa passar e aceita a ideia, o valor simbólico. Na verdade há umas cenas gore bem feitas e convincentes, mas a questão é que a maneira como os humanos, tanto as vítimas como os vilões, são representados, dá a este filme um ar assustador.

A trama envolve mais um clichê do terror, a ideia de uma cidade pequena onde existe uma espécie de culto macabro com pessoas aparentemente comuns que secretamente compartilham de um estilo de vida grotesco e demoníaco. Vemos uma pequena comunidade com umas pessoas andando pra lá e pra cá usando máscaras de animais, de vacas, porcos e coelhos. São como furries do mal.

The Farm (2018)

Vemos que aquele lugar funciona mesmo como uma fazenda, o líder é um empresário. Ele fala ao telefone com clientes para os quais fornece seus banquetes. Um dos clientes até reclama que encontrou um dente na comida. Isso deixa uma dúvida se estas pessoas sabem que estão comendo carne humana ou se é como a história do churrasquinho de gato, em que a gente come uma carne de procedência duvidosa.

Como no final, porém, tem a cena das mulheres defumadas, podemos entender que sim, existem clientes que sabem que estão comendo humanos, provavelmente ricaços excêntricos e pervertidos. A verdade é que o filme não se importa em explicar todos estes detalhes.

The Farm (2018)

Curiosamente, o líder não usa máscara, bem como um de seus capangas, sabe-se lá por quê. Todos os outros vivem mascarados e se comportam como robôs, dedicados a cuidar da fazenda humana. Quanto ao líder, se destaca pela aparência do ator, um total desconhecido (nem no IMDb consegui achar o nome dele nos créditos) e que parece ter uma deformidade natural, com o rosto meio torto e uma das orelhas bastante fora do lugar. Rostos deformados na ficção costumam ser vilanescos. 

As vítimas são mantidas em jaulas, esperando pelo dia em que serão abatidas para virar comida. Os homens parecem ser mortos mais rápido, enquanto as mulheres têm um destino ainda mais desesperador, mantidas vivas e engravidadas artificialmente como vacas. O leite delas é ordenhado por sondas e seus filhos são abatidos como vitela. 

Há uma cena em que vemos uma mãe abraçada a seu bebê em uma gaiola. Vivendo naquela condição subumana e enlouquecedora, o bebê é o único resquício de humanidade ao qual ela pode se apegar, até que friamente um dos capangas toma dela o bebê e o mata na frente dela, batendo a cabeça dele contra o chão como se fosse um bicho qualquer. É com certeza a cena mais chocante do filme.

Não há muito o que falar do casal de protagonistas. São dois idiotas, algo típico de filmes de terror. Chegamos até a desprezar personagens assim, pois eles se tornam vítimas pela burrice, pelas decisões erradas, mas ok, é normal neste gênero.

The Farm (2018)

A última cena tenta fazer um charme com a equipe da fazenda reunida diante de uma mesa retangular, simulando a famosa pintura da Última Ceia, uma ceia com furries canibais.

Pela semelhança do tema, The Farm lembra o The Bad Batch (2016), sobre o qual já falei em outro post².

Notas:



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Brendan Fraser virá gigante em A Baleia

The Whale (2022)

Darren Aronofsky é conhecido por filmes com um teor surreal e muito drama, mas sempre investindo bastante nos protagonistas, concentrando a atenção nos dramas que eles vivem. Assim também deve ser com The Whale (2022).

Pois é, o longa se chama A Baleia e é sobre um cara que, após uma crise no casamento, desenvolve obesidade mórbida, chegando a 270 quilos (obviamente o corpo do ator foi modificado artificialmente). Será mais uma oportunidade para o Brendan Fraser brilhar.

Fraser teve uma carreira de altos e baixos, andou meio sumido, mas voltou muito bem na série Doom Patrol¹. No Festival de Veneza, ele foi aplaudido de pé pelos críticos, após a prévia deste novo filme. Pelo visto, ele virá gigante, tanto no corpo quanto na atuação.

Chego a suspeitar que este longa vai chamar atenção de uma galera estranha, você sabe, aqueles militantes de sofá que ficam procurando coisas para criticar nas redes sociais. Na certa vão enxergar um problema na abordagem da compulsão alimentar e no próprio título, pois está chamando o cara de baleia. 

De toda forma, Aronofski e Fraser estão acima destas picuinhas e só posso esperar mais um grande drama psicológico, algo, aliás, que está cada vez mais em falta no cinema. 

Notas:


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Você não terá nada e será feliz... no metaverso

The Great Reset

Em 2020, diante da crise econômica que começou a se desenrolar, o Fórum Econômico Mundial, em sua 50ᵃ reunião, de maneira bem oportunista propôs um utópico plano de reconstrução econômica chamado Great Reset. Fez até uma campanha publicitária com o curioso slogan "você não terá nada e será feliz".

Convenhamos, este tipo de mensagem não soa muito convidativo, a não ser talvez para uma minoria bem específica de pessoas adeptas do minimalismo extremo. Possuir bens ou o que quer que seja faz parte da própria natureza da evolução humana. 

Nós começamos neste mundo como uma espécie miserável, tendo que viver em busca de água e alimento, até que desenvolvemos ferramentas e roupas rudimentares. Estas primeiras posses proporcionaram um aumento considerável da qualidade de vida e uma redução dos esforços para sobreviver. Ganhamos mais tempo ocioso, tempo que poderia ser usado para a criatividade, o lazer, a vida social, etc. A civilização teve início graças às primeiras posses.

É, portanto, um ideal já estabelecido há eras que devemos buscar aumentar nossas posses ao longo da vida a fim de termos uma vida melhor e, pensando a longo prazo, a fim de garantirmos um futuro melhor para nossos descendentes. Ora, é melhor ter uma casa do que não ter, é melhor ter algum dinheiro poupado para emergências do que nenhum, é melhor ter uma despensa com alimentos para o mês do que todo dia ter que ir atrás da refeição.

O acúmulo de bens pode se tornar patológico. Há pessoas que até desenvolvem um bizarro hábito de acumular lixo em casa. É uma condição disfuncional, uma incapacidade de distinguir o que vale a pena ser guardado e o que deve ser descartado. Estas exceções, porém, não invalidam a regra de que possuir bens é necessário para ser minimamente feliz.

Como, então, me vem esse tal Great Reset falar que serei feliz não tendo nada? Ao que parece, o plano é estabelecer uma economia baseada em aluguéis e empréstimos. Tudo será alugado ou emprestado. A casa, o carro, a bicicleta, os aparelhos eletrônicos, talvez até as roupas. 

Bom, é um tipo de modelo que já existe em certa medida no mundo. O próprio conceito de transporte público é assim. Você não precisa ter um carro se pode pegar um taxi, um ônibus, metrô ou uber. Você aluga o transporte no momento em que precisa e assim não tem de lidar com os gastos e preocupações de ter um carro próprio. Olhando desta forma, realmente é mais feliz ou menos estressante não ter certos bens.

Ter um carro é prático e confortável, mas é caro. O carro requer manutenção, pagamento de impostos e eventuais multas, o carro é um bem caro e que você deixa exposto na rua, correndo o risco de ser roubado, vandalizado, de sofrer um acidente, ter a pintura arranhada por algum babaca. É um bem que gera preocupações. No transporte público todos estes cuidados são terceirizados. A manutenção e os custos com segurança ficam por conta dos responsáveis pelo veículo, enquanto você está ali só como passageiro, literalmente de passagem.

Apesar de exemplos como este, continua inegável que há muitos bens que tornam a vida mais satisfatória e, de fato, feliz. Qualquer pessoa com um mínimo de senso comum concorda que, se tiver opção, vai preferir viver em uma casa própria do que em uma alugada, pois há um sentimento de instabilidade no aluguel. E se um dia, por algum motivo, você for despejado? E se não puder pagar o aluguel?

Um mundo totalmente baseado em aluguel, portanto, pode não transmitir tanta felicidade e segurança assim para as pessoas. A verdade é que dificilmente algo deste tipo se concretizará. Seguiremos em uma sociedade mista, onde certas coisas valem a pena possuir e outras valem a pena alugar.

Por outro lado, posso vislumbrar um mundo onde a profecia do Fórum Econômico poderá se tornar real: o metaverso.

No metaverso vamos construir um segundo mundo, uma segunda vida. Ali você terá sua casinha virtual, o que não vai eliminar a necessidade de ter uma casa real para seu corpo físico. A casa virtual será para sua representação social virtual, ou seja, seu avatar, seu bonequinho. Pode parecer meio bobo e infantil, mas isto vai acontecer e na verdade será algo útil e prático, levando em conta que cada vez mais vamos imergir nosso trabalho, lazer e vida social nesta rede de comunicações que é a internet.

Haverá vida no metaverso, como já existe hoje na internet, e um grandioso mercado se desenvolverá, como já está se desenvolvendo. Assim, avançaremos para um novo estágio na nossa história de acúmulo de bens: além dos bens físicos, teremos bens virtuais.

Este conceito já é uma realidade, como vemos no caso de certas coisas que compramos na internet e que são literalmente objetos digitais, como um e-book, um filme, um game. Inclusive existe na comunidade gamer aquelas pessoas mais tradicionais que fazem questão de ter uma mídia física, um DVD, justamente porque sabem que ter o jogo apenas no formato digital em uma biblioteca online é o mesmo que não ter.

É uma atitude de valor mais simbólico do que concreto, esse negócio de comprar mídia física de games, porque hoje em dia dificilmente um game consegue ser funcional sem acesso à internet. Games são softwares e como tal costumam receber updates. O software que está no DVD com o tempo fica obsoleto. Pior, o DVD com o tempo arranha e fica ilegível. No fim das contas, é realmente melhor ter sua biblioteca online.

Em 2010 eu criei minha conta no Runescape, um jogo do qual já falei várias vezes neste blog. Agora, mais de uma década depois, o meu bonequinho continua lá, o jogo continua lá com seu mundo, com tudo o que acumulei, os progressos que fiz com o personagem. 

A rigor, aquele mundo, aquele avatar, não são meus. Eles são da Jagex, a empresa desenvolvedora. Se um dia a Jagex fechar, o Runescape desaparece da internet, bem como meu avatar, e não vou poder fazer nada para impedir isso. Como, porém, trata-se de uma comunidade de milhões de jogadores que mantêm o jogo vivo, as chances disso acontecer, até o momento, são mínimas.

Assim será o metaverso. Vamos acumular muitas coisas ali. Teremos nossas casinhas, com bibliotecas de livros, jogos e tantas outras coisas, tudo virtual, tudo digital e majoritariamente online. Algumas coisas a gente até poderá guardar num drive de armazenamento, mas a maioria existirá apenas no reino da internet. 

Assim, se algum dia acontecer um colapso da internet ou alguma empresa do metaverso que hospedava o seu mundo virtual falir, esse mundo vai sumir, seus bens virtuais vão sumir, provando que eles nunca pertenceram a você. No metaverso você será feliz, mas nada ali será no fim das contas seu.

É um cenário improvável que aconteça algo tão apocalíptico com o metaverso, pois a Big Tech não tem este nome à toa. O mundo virtual é protegido com muitas camadas, com muitos backups. Não é tão simples destruir uma massiva biblioteca digital. Quanto maior a imersão da civilização nesse novo mundo online, mais investimento haverá no sentido de evitar que tal mundo deixe de existir.

O metaverso é um caminho sem volta. Provavelmente não será aquela tosqueira apresentada pelo Zuckerberg, com bonequinhos datados. Também não será exatamente um mundo totalmente virtual, já que haverá uma integração com o mundo físico por meio da realidade aumentada (AR).

Creio que, pesando prós e contras, o mundo virtual será algo satisfatório, um mundo onde você será "feliz", por assim dizer, e onde irá acumular bens que serão simbolicamente seus, mas concretamente sequer existem.

Haverá problemas neste mundo virtual? Certamente. O metaverso, de certa forma, será uma espécie de reino feudal cujas terras são emprestadas pelos senhores (a Big Tech) a seus vassalos (os usuários). Haverá algo de sombrio, de cyberpunk, a vigilância, a dependência, mas creio que já escrevi demais e por hora fiquemos só no lado otimista da coisa.

O metaverso será divertido e será prático. Vai facilitar a vida em muitos aspectos. Até igrejas vão fazer missas e cultos no metaverso, ganhando um boost na evangelização (o que será irônico levando em conta que alguns crentes mais extremistas dirão que o metaverso é coisa do Diabo). Afinal, se não for assim, não vai atrair o interesse público. O sucesso do metaverso depende da satisfação que ele irá proporcionar.