Hoje em dia o politicamente correto costuma ser associado ao progressismo e à chamada ideologia woke ou, como se diz por aqui, à lacração. Ironicamente, o politicamente correto nasceu no conservadorismo.
O politicamente correto pode ser descrito como basicamente uma ética social que visa reprimir a liberdade de expressão a fim de alcançar um "bem maior" que é evitar ofender as pessoas. Pois bem, podemos rastrear isto até tempos remotos, quando as sociedades desenvolveram seus tabus e sistema de crenças e valores morais, de modo a se formar um clima de repressão tácita a qualquer comportamento indecente que viole tais princípios.
Avançando para a era vitoriana, dominada pela ética do puritanismo protestante, temos uma sociedade cheia destas regrinhas de etiqueta, comportamento, vestuário, linguajar. Algumas destas regras tácitas (ou seja, aquelas regrinhas da vida em sociedade que não estão escritas em lugar algum, mas as pessoas sabem que existem) acabaram se tornando mais concretas na forma de leis. Foi assim que Oscar Wilde acabou na prisão pelo simples fato de ser homossexual.
Na década de 1950, os EUA abraçaram fortemente a moral conservadora, o que tem um interessante exemplo no Comics Code Authority. Este código exibia um selinho nas capas das revistas em quadrinhos, indicando que aquela publicação era family friendly.
O código foi criado como uma resposta ao bafafá que surgiu após a publicação do livro Seduction of the Innocent, que acusava as revistas em quadrinhos de perverter a juventude. Para convencer os pais das crianças a continuar comprando os gibis, o código foi criado, satisfazendo a moral popular.
Era, portanto, um instrumento do politicamente correto. Pelas orientações deste código, as revistas evitavam palavrões, sexo ou violência explícita. Por um lado foi uma forma de evitar a exposição de crianças a conteúdo adulto, por outro houve uma repressão da criatividade artística e da liberdade de expressão.
A caretice dos quadrinhos começou a ser combatida no final da década de 60, quando nos EUA houve a revolução cultural que desafiou a dominância conservadora. A ironia da história é que, com o passar das décadas, o progressismo (filho ou neto deformado do liberalismo clássico) foi se tornando dominante no mundo do entretenimento e passou a adotar novos tabus e a moral politicamente correta, agora adaptada para as pautas da esquerda.
Que plot twist! A esquerda americana, que no século passado lutava pela liberdade de expressão e combatia o politicamente correto, passou a imitar o conservadorismo, adotando o politicamente correto para combater o que considera ofensivo.
Esta nova versão do PC (Political Correctness) parece até mais condescendente que a sua predecessora, além de mais exagerada e dada a terminologias e rótulos, tentando classificar a tudo e todos. No esforço de recriar o mundo à imagem de seu ideal ético, chega a banir palavras e criar uma novilíngua. Acabam convencendo as pessoas de que certas palavras são ofensivas, mesmo que não sejam, e que precisam ser substituídas pela nova versão politicamente correta.
Assim, "anão" virou "pessoa com nanismo", "mendigo" virou "pessoa em situação de rua". A palavra "homossexualismo" foi problematizada, interpretada como se ela fosse uma referência a doença, pelo simples fato de usar o sufixo "ismo" (ora, há inúmeras palavras com "ismo" que nada têm a ver com doença, tipo capitalismo, comunismo, budismo, cristianismo...). Não é que realmente houvesse um problema na palavra, mas o problema foi criado porque o PC progressista tem esta paranoia problematizadora e de recriação do mundo. Assim substituíram por "homossexualidade".
A mania problematizadora nunca fica satisfeita, de modo que mesmo as palavras que ela adota acabam sendo problematizadas e substituídas de novo e de novo. Aqui no Brasil, as palavras "moreno" ou "mulato", por exemplo, foram substituídas por "negro", mas com o tempo o progressismo brasileiro não ficou satisfeito e operou outra substituição, trocando "negro" por "preto", talvez porque "negro" lembre vagamente a palavra tabu americana "nigger". Imagino que no futuro também "preto" será problematizado e substituído por alguma outra coisa. Talvez cheguem a imitar os americanos com a expressão "pessoa de cor", que aliás já vem sendo questionada pelos progressistas lá da gringa.
Um caso que mostra como essa recriação de nomes pode ficar complicada e impossível de ser aplicada em uma conversação normal é a busca por uma maneira politicamente correta de definir os gêneros. "Homem" e "mulher" ou "macho" e "fêmea" são considerados termos não inclusivos, devido ao fato de haver pessoas com identidade de gênero que não condiz com a condição biológica. Então há quem sugira os termos "pessoas com pênis" e "pessoas com vagina".
Imagina ter que ficar usando esta linguagem no dia a dia: "Hoje fui pegar o metrô e tinha vagões só para pessoas com pênis e outro para pessoas com vagina, aí uma pessoa com pênis entrou num vagão com pessoas com vagina e elas não gostaram e expulsaram a pessoa com pênis".
Outra sugestão ainda mais prolixa é "pessoas que engravidam" ou "pessoas que têm risco de câncer de testículo". Sim, este tipo de sugestão já foi feito para substituir a palavra "homem". A intenção em ser politicamente correto acaba ignorando os aspectos práticos da conversação humana. É simplesmente impossível conversar casualmente usando toda esta prolixidade.
A condescendência deste movimento chega ao nível caricato da Senhorita Morello (de Todo Mundo Odeia o Chris), pois querem proteger diversos grupos ou pessoas de ofensas, sem sequer saber se de fato eles se ofendem com este ou aquele termo.
Ora, sou nordestino, cearense, e não me importo em ser chamado de Ceará por pessoas de outras regiões, mas no dicionário politicamente correto, esse apelido é um crime. Tem outro pior: "cabeça chata". Pois guess what, quem mais faz piada sobre cabeça chata ou cabeção somos nós cearenses. O Ceará é famoso por ter grandes humoristas (vide o saudoso Chico Anysio e tantos outros) e praticamente todos eles fazem piadas sobre cearenses e cabeças chatas. Relaxa, galera do PC, não nos ofendemos com isto. E também não é uma questão de "lugar de fala". Rimos com piadas sobre cabeça chata, quer sejam feitas por cearenses ou por pessoas de qualquer outra região.
Enfim, hoje em dia o PC é propagado tanto por conservadores quanto por progressistas, cada qual adaptando-o às suas próprias pautas. Por exemplo, o conservadorismo irá reagir negativamente a piadas sobre Jesus ou crentes, enquanto o progressismo reagirá a piadas sobre gays.
O que vemos na prática é que o PC progressista tem se mostrado mais intenso e militante do que o conservador, talvez devido ao fato dele agora contar com todo um aparato da mídia, a indústria do entretenimento, a Big Tech e políticos de esquerda.
Naturalmente, conservadores e progressistas se digladiam em torno destas pautas, pois o progressista quer fazer piadas sobre crentes, mas ofende-se com as piadas sobre gays, enquanto o conservador quer fazer piadas sobre gays, mas ofende-se com as piadas sobre crentes. Como diz, o ditado, na briga entre o mar e a rocha, quem apanha é o caranguejo. No caso, o caranguejo é a liberdade de expressão.
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