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A anistia da pandemia e o poder do pânico

Pandemic amnesty

Recentemente foi publicado um curioso artigo da economista Emily Oster, intitulado "Let's declare a pandemic amnesty" (o URL da página usa o termo "covid response forgiveness")¹. O texto é bastante revelador por ser uma confissão de como a sociedade cometeu erros motivada pelo pânico.

No auge do pavor da pandemia, em 2020, o mundo entrou num estado de alerta que há muito tempo não se via. Os políticos reagiram tomando medidas severas e sem calcular os custos sociais, tratando a sociedade como uma máquina, como se as pessoas fossem robôs que podem ser programados para este ou aquele comportamento. 

Os policiais cometeram excessos. Para quem já esqueceu, na internet há inúmeros registros de policiais tratando pessoas nas ruas com truculência pelo simples fato de estarem na rua ou não usarem máscaras. Houve casos em certos países, como a Inglaterra, em que policiais visitavam casas onde havia uma família reunida, e arrastavam para fora as pessoas porque, diziam, elas estavam se aglomerando. Em vez de adotarem uma abordagem educativa, trataram os civis como terroristas. Teve casos ridículos em que pessoas que estavam praticando hiking solitário no alto de uma montanha foram abordadas por um helicóptero e intimadas a voltar pra casa. Foi a histeria do "fique em casa".

Depois veio a fase da vacina. Ótimo, os governos e laboratórios investiram em pesquisa, tentaram o quanto antes desenvolver uma resposta ao vírus, mas a maneira como foi feita a campanha de divulgação... quão vergonhosa. Recorreu-se ao terror psicológico para convencer as pessoas. Afinal, os fins justificam os meios, não é mesmo? E aqueles que não se vacinaram ou hesitaram ou simplesmente tiveram dúvidas, foram estigmatizados, chamados de genocidas. Falou-se em "pandemia dos não vacinados".

Acontece que a ciência é feita de contínua coleta, análise e reanálise de dados. Com o tempo, as estatísticas foram deixando claro que boa parte da contaminação acontecia ou em ambiente doméstico ou locais públicos com muita aglomeração e pouca ventilação. Ou seja, o cara do hiking tinha mais chances de contaminar ou ser contaminado em casa do que lá no alto da montanha. Duh. O mesmo vale pra um ciclista na rua ou um banhista na praia. E vimos como ciclistas e banhistas foram tratados, perseguidos como terroristas em potencial.

Os dados também mostraram que as vacinas não impediam a transmissão. Não havia isto de "pandemia dos não vacinados". O vírus não dava a mínima para este apartheid, esta divisão da sociedade em duas castas. Chegou-se a acreditar e propagandear que a campanha de vacinação conseguiria o utópico milagre da Covid Zero, de eliminar o vírus do planeta. Entenda algo sobre a mãe natureza: uma vez que um vírus vem ao mundo, é praticamente impossível eliminá-lo. O melhor que a humanidade pode fazer é adaptar-se a ele. Eis que agora, dois anos depois, o vírus continua e se transforma, desenvolve variantes. Ele veio pra ficar.

Pode parecer assustador pensar nisto, mas estamos neste planeta há centenas de milhares de anos e não é à toa. O formidável sistema imunológico se adaptou a muita coisa e continuará se adaptando, ainda mais agora com o auxílio da tecnologia.

O fato é que houve uma nociva estigmatização das pessoas que por quaisquer motivos não seguiram à risca todas as medidas que foram adotadas. Nas redes sociais, pessoas furiosas xingavam e desejavam as mais desumanas punições àquelas que não seguiam as regras. Se pensar bem, foi quase uma histeria fascista, pois ela levou pessoas a enxergarem outras como inimigas da sociedade e que deveriam ser tratadas como párias, denunciadas às autoridades para que fossem levadas à cadeia ou a campos de concentração.

O nível de agressividade da reação das autoridades e da população em geral variou de região para região. Alguns países adotaram uma política de tolerância zero extremamente brutal, como a China, em outros, como a Suécia, houve menos stress. Em cada país, as medidas tiveram mais ou menos rigor, melhor ou pior resultado. O mundo foi um grande laboratório onde várias estratégias foram testadas.

A quantidade de dados gerados nestes anos foi formidável. Há bastante material para análise, algo que pode nos deixar mais preparados para futuras pandemias. Inegavelmente, foi um período de aprendizado.

As diversas medidas adotadas podem ser questionadas. Os estudos podem revelar o que foi mais eficiente, o que foi inútil, o que foi mais prejudicial do que benéfico. O que, porém, não se pode jamais repetir é a reação de ódio e discriminação que houve contra aqueles que não se encaixaram no sistema. Os abusos, a truculência, a estigmatização não podem acontecer de novo. 

Outro grande erro cometido foi a restrição do debate público, algo promovido pela mídia e a Big Tech. Ora, hoje parece ridículo pensar que youtubers evitam falar palavras como "covid", "vacina" ou "pandemia" por medo de que o algoritmo os coloque numa blacklist. A que ponto a coisa chegou. 

O pior é que, no caso da Big Tech, ela assumiu uma postura de detentora do saber que sequer tinha. Em 2020 e 2021, as redes sociais bloqueavam, baniam ou davam um shadowban em pessoas que falavam que as vacinas poderiam não ser eficientes para impedir a transmissão. Era o tipo de informação que ainda estava sendo testada, de modo que ninguém podia afirmar com certeza isto ou aquilo. O tempo passou e os dados mostraram que aquelas pessoas, outrora banidas, estavam certas. E aí? 

Um exemplo que expõe o problema da censura baseada no fact-checking das redes sociais é o caso das reações adversas à vacina baseada em RNA. Logo quando começou a aplicação desta nova tecnologia, já havia estudos apontando possíveis reações adversas e ao longo do tempo novos dados foram aparecendo. Uma das possíveis reações é o desenvolvimento de miocardite e pericardite.

Ora, os primeiros médicos e cientistas que alertaram sobre isto nas redes sociais foram sumariamente silenciados, tiveram as contas banidas. A Big Tech simplesmente assumiu o papel de dona da verdade, julgando quem estava certo ou não sobre o assunto e impedindo o debate público. O problema da miocardite foi taxado como teoria da conspiração e quem quer que tocasse no assunto era ostracizado, estigmatizado como "antivax" ou inimigo da ciência.

Eis que o tempo é o senhor da razão e agora a própria agência reguladora dos EUA, a FDA, já abertamente admite este risco. No Brasil, também a Anvisa já publicou um comunicado² advertindo sobre o risco de miocardite, inclusive esta mesma advertência já está presente na própria bula da vacina produzida pela Pfizer³.

Miocardite

Miocardite

O que antes era taxado como teoria da conspiração, agora já é abertamente reconhecido por agências reguladoras e pelo próprio laboratório da vacina. E como ficam os primeiros médicos e cientistas que alertaram sobre isto e foram acusados de fake news, taxados de anticientíficos e caçados como hereges?

Esse é o problema de grupos como a mídia ou a Big Tech tentarem monopolizar o debate público, dizendo o que é e o que não é verídico. Foi patético o fenômeno em que médicos e pesquisadores acadêmicos, sim, cientistas de verdade, foram silenciados nas redes sociais por algoritmos ou moderadores humanos que não tinham nenhuma expertise na área. 

No caso do Twitter, o novo modelo proposto pelo Elon Musk parece promissor. A checagem de fatos ficará nas mãos da comunidade, por meio do Birdwatch, que permite um debate mais rico e diversificado, menos enviesado. Uma de nossas conquistas civilizatórias foi a possibilidade do debate público, sem censuras, sem imposição de uma autoridade dogmática. Não podemos retroceder neste aspecto. 

Se agora a sociedade está pedindo anistia pelos excessos que cometeu, significa que está confessando, admitindo que cometeu estes excessos. O verdadeiro arrependimento vem de reconhecer o erro cometido e assumir uma disposição em não repeti-lo.

Que o mundo aprenda a não se deixar cegar pelo pânico. O pânico animaliza, é uma reação reptiliana, adversária da razão, da justiça e civilidade do córtex cerebral. 

Angry mob

Notas:



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