Qaligrafia
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The Sandman, uma adaptação morna e cara do clássico de Neil Gaiman

The Sandman (2022)

Um dos fenômenos dos quadrinhos nos anos 90 foi o selo Vertigo da DC Comics. A proposta era produzir revistas com um teor mais sombrio, mais adulto e profundo. Sandman foi um dos grandes ícones desta safra de quadrinhos diferenciados.

Originalmente, Sandman foi um personagem escrito por Joe Simon e Michael Fleisher e desenhado por Jack Kirby e Ernie Chua lá nos anos 70. Depois de um hiato de duas décadas, ele foi revivido por Neil Gaiman em uma nova revista, com uma nova mitologia toda moldada pela criativa e psicodélica imaginação de Gaiman. De 1989 a 1996, a revista teve 75 edições e se tornou um clássico cult dos quadrinhos, com direito a outras minisséries, graphic novels e encadernados.

Era de se esperar que algum dia uma adaptação live action fosse produzida com base no Rei dos Sonhos e seu universo mítico e místico. Ainda nos anos 90, Roger Avary (que trabalhara com Tarantino em Pulp Fiction), foi cogitado para dirigir um filme do Sandman, mas o projeto não foi pra frente.

Desde o início o Neil Gaiman foi bastante cuidadoso e até ciumento com sua obra, monitorando de perto todos os possíveis projetos envolvendo a produção de um filme. Rejeitou roteiros e disse que "preferia não ver filme algum de Sandman do que ver um filme ruim de Sandman".

Projeto vem, projeto vai e Sandman nunca saiu do papel. Curiosamente, um dos personagens do seu universo, o Lúcifer¹, acabou se adiantando e ganhando uma série própria em 2016, inicialmente produzida pela Fox e que depois passou para as mãos da Netflix. 

Esta série durou bastante e acumulou quase 100 episódios, o que pode ser considerado um sucesso. Na prática, este Lúcifer, embora baseado nos quadrinhos, não tinha muita relação com Sandman e não faz qualquer menção a ele.

The Endless

Eis que agora em 2022, sete anos depois do lançamento de Lúcifer, o Sandman finalmente ganhou sua série, produzida pela Netflix. É uma série cara, diga-se de passagem, com um orçamento de cerca de 15 milhões de dólares por episódio. 

Para se ter uma ideia, a série The Witcher², que conta com Henry Cavill, muito CGI e toda uma ambientação medieval fantástica nos cenários e figurinos, custa em média 10 milhões por episódio. A julgar pela grana investida, The Sandman era pra ser uma série de fantasia triple A, um blockbuster, superprodução. O que vemos, porém, na tela, parece bem aquém do esperado.

Não que a série seja ruim. Em termos de roteiro, ela procura sem bem fiel em recontar as histórias da revista dos anos 90, a começar pela prisão de Sandman, por meio de um ritual desastrado de magia, e sua aventura para se libertar e recuperar suas relíquias, encontrando no caminho seus "parentes", os outros Perpétuos, como a Morte e Desejo.

Ok, está tudo lá. Como só houve uma temporada até agora, pouco foi abordado do vasto universo de Sandman. Ele também já encontrou Lúcifer, que nesta série passou por um gender swap, se tornando fêmea e sendo interpretada pela gigante Gwendoline Christie, a eterna Brienne de Game of Thrones.

Também temos uma breve aparição de Constantine, que também passou por um gender swap. Na verdade, quem aparece na série é uma ancestral dele, Johanna Constantine, pois a Netflix não conseguiu os direitos de produção com o John Constantine em si.

Aliás, este é um dos problemas da série. Sendo um projeto da Netflix, ele acaba esbarrando em limitações legais, pois seria muito melhor que a série fosse produzida em casa, no caso, na Warner/HBO.

Death and Sandman; The Sandman (2022).jpg

Em termos de caracterização, houve de fato muitas mudanças. Além dos casos já citados de Lúcifer e Constantine, a Morte teve um race swap, deixando de ser a garota gótica pálida dos anos 90 e se tornando uma garota negra, com um estilo menos gótico e mais casual. A Desespero, em vez de ser uma idosa acabada e mal encarada, virou uma garota com ar depressivo. 

O próprio Sandman lembra vagamente o personagem dos quadrinhos, mas não tiveram coragem de manter a aparência bizarra, meio grunge, do personagem original, com sua enorme cabeleira assanhada e corpo esquelético. O ator Tom Sturridge ficou apenas parecido com um gótico "padrãozinho".

Talvez o Perpétuo melhor caracterizado foi A Desejo, uma personagem andrógina nos quadrinhos e que foi interpretada pelo ator igualmente andrógeno (segundo ele, não-binário) Mason Alexander Park.

Adaptação, ainda mais em live action, é assim mesmo. Não se pode esperar que os atores sejam idênticos aos personagens. Alguns são parecidos, outros nem tanto e outros são bem diferentes. O que é realmente estranho no caso de The Sandman é que a série não parece ter uma qualidade digna de seu orçamento.

O CGI é pobre. A ambientação do inferno e do mundo do sonho, por exemplo, é bem genérica, pouco imersiva. Me pergunto onde é que gastaram estes 15 milhões por episódio, porque, além do fraco CGI, o elenco também não tem nenhum ator caro, nem mesmo o protagonista.

Enfim, o fato é que a série não conseguiu chegar à altura do Sandman. Tanto que as notícias após a semana de lançamento já deixam em dúvida se haverá uma segunda temporada, pois a Netflix parece hesitar em renovar, considerando a série muito cara. 

Como já falei, realmente o orçamento foi estranhamente caro, levando em conta a qualidade que foi entregue. A série não teve o desempenho e a qualidade dignos do investimento. O próprio Neil Gaiman se manifestou nas redes sociais com ar de preocupação sobre o risco da série não continuar, ao menos não na Netflix.

Neil Gaiman tweet

Notas:



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Aliterasonho

Às vezes o sono some.
Sem sono, insone.
Não sei por que tal sucede.
São talvez os muitos pensamentos
saturando as sinapses.
E assim nessa aliteração
gasto o que resta de meus neurônios,
ansioso pela ascensão
da consciência ao seio do sonho.

(28,08,2022)

Notas:

Sim, sim, o "s" intervocálico tem som de "z" e por isto se usam dois "ss" entre vogais para manter a pronúncia. Logo, em tese "aliterasonho" seria pronunciado como "aliterazonho", mas aqui saco a carta da licença poética. Simplesmente não quero que esta palavra tenha dois "ss", mas quero que mantenha o som de "s". Meu neologismo, minhas regras.

Samaritan, um indie genérico com o Stallone

Samaritan (2022)

Samaritan; Mythos Comics

Samaritan (2022) é um longa de super-herói bem genérico. É tão genérico que o nome do vilão é Nêmesis. É uma produção modesta, feita diretamente para streaming, com pós produção e marketing mais baratos e sem intenção de lançamento no cinema. O orçamento de Samaritan foi de 50 milhões de dólares e destes uns 15-20 milhões foram o cachê do Stallone, a única estrela do filme.

Sylvester Stallone, Everson Zóio
"Eu vou pegar minha marreta!"

Samaritan (2022)
O véio ainda é bom de briga.

Stallone é realmente um cara incansável, fazendo jus à fibra do Rocky. Ele já é um velho de 76 anos, quase um octogenário, e eis que vemos ele trocando socos e chutes, dando marretadas e até correndo. O cara soube envelhecer.

Tirando, porém, a presença sempre marcante do Stallone, tem um detalhe que me chamou atenção neste longa. Na verdade, um monte de detalhes na composição do cenário.

A magia do cinema depende, de maneira geral, da contribuição de atores, diretores, roteiristas, compositores, figurinistas/maquiadores, câmera e a galera dos efeitos especiais. E também não podemos esquecer do cenógrafo, a pessoa ou pessoas responsáveis pelos cenários.

Sylvester Stallone, Compadre Washington

Pois bem, Samaritan mostra um caprichoso trabalho de cenografia. Sendo um filme barato e com pouquíssimo CGI, a ambientação é majoritariamente feita em cenários reais, nas ruas, becos e quitinetes da fictícia cidade de Granite City, baseada em uma graphic novel da Mythos Comics.

Esta cidade decadente tem uma vibe bem parecida com o filme Joker (2019), pois vemos a pobreza e recessão estampados nas ruas, há lixo em toda parte, metais enferrujados, tinturas descascadas, asfalto molhado. Estes detalhes não estão aí ao acaso. 

Mesmo que a produção procure bairros suburbanos para fazer as gravações, o cenógrafo dará um toque especial, o que neste caso significa espalhar sacos de lixo nas ruas, escolher objetos degradados, carros velhos e quinquilharias para "adornar" o ambiente. Foi um trabalho bem detalhista e convincente, ainda mais para um filme de tão baixo orçamento.

Deixo a seguir alguns recortes do cenário para apreciação.

Samaritan (2022)

Samaritan (2022)

Samaritan (2022)

Samaritan (2022)

Samaritan (2022)

Samaritan (2022)

Samaritan (2022)

Samaritan (2022)

Samaritan (2022)
O cenógrafo depois de toda esta trabalheira.

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Exploradores

Humanos são por natureza exploradores. Desde o primeiro ancestral que atravessou as águas em uma canoa, descobrindo novas ilhas, ficou evidente a nossa vocação para buscar outros mundos. Eis que agora nossas canoas rudimentares estão timidamente navegando o oceano cósmico, engatinhando nestes primeiros passos desengonçados rumo a uma nova e grandiosa exploração. Um dia, planetas e luas não serão suficientes para nossa curiosidade, então buscaremos as estrelas. Há ainda outro oceano, outro mundo que desde tempos antigos tem sido alvo de nossas buscas e explorações, um mar profundo e obscuro e que está tão perto, mas também tão longe. O mundo mental é um abismo que nos chama à exploração, um buraco negro em volta do qual orbitamos, contemplando-lhe o horizonte.

(24,08,2022)

Emancipe-se

Tudo o que aconteceu foi um aprendizado, uma transformação. Hoje estamos todos diferentes, marcados para sempre. Alguns experimentaram o medo do desconhecido, um medo supersticioso dos perigos invisíveis. Descobriram que o mundo é cheio de riscos incalculáveis e abraçaram a ilusão da segurança com soluções simplistas. Outros perceberam quão longe pode ir a ganância e a sede de poder, quão fácil é para as pessoas venderem sua liberdade. Estes jamais confiarão novamente. Alguns se aproximaram da espiritualidade, outros abraçaram o desespero. Alguns optaram pelo oportunismo e o autoengano. As crianças perderam a oportunidade de sorrir e ver sorrisos. Perderam, de fato, muito mais que isto. Os loucos se tornaram a normalidade. Os racionais trocaram a lógica pelo fanatismo. O silêncio se tornou regra e a pergunta foi punida... O importante é aprender com tudo isto. Desperte do feitiço. Não se submeta ao rastejar do sistema límbico. Emancipe-se.

(23,08,2022)

Inconciliável

Já houve um tempo em que tentei conciliar as minhas discrepâncias, encontrar um equilíbrio, absorver cada um de meus aspectos, cada eu, cada ele, de modo a montar um só, homogêneo, uma síntese. Então percebi que este sintetismo seria suicídio, seria um massacre. Para que exista apenas um eu, teria de destruir todos os outros, destruir cada pedaço de mim. Seria uma amputação, uma mutilação, uma anulação. Então entendi que deveria rever o percurso, desviar-me desta jornada de autodestruição. E se, em vez de podar cada galho torto, eu deixá-los florescer? Que exista. Que existam. Que eu não me esconda de mim, nem rejeite minhas partes incongruentes. Sou inconciliável. Sou heterogêneo. Minhas discrepâncias não precisam lutar a fim de que uma síntese prevaleça. Eu ignorei um fato importante: minha alma é vasta, é ampla. Cada conflito, cada crise e o peso das contradições apenas esticou o meu mundo, alargou as fronteiras, pois a alma é elástica e se expande sob estresse. Quando olhei para seu horizonte, pude ver quão espaçoso eu havia me tornado. Não há necessidade de disputa por território, pois há bastante espaço para toda minha inconciliável multiplicidade. O eremita, o mago, o louco, o mundo... Todos têm espaço nesta alma. E se um dia as coisas começarem a ficar apertadas, não tem problema. Expandir-me-ei. 

(22,08,2022)

Teclado MK295

Teclado MK295

Tenho uma pequena saga em busca de aparelhos silenciosos. Isso porque tenho certo grau de misofonia, de modo que alguns ruídos me incomodam, até podem me atrapalhar a concentração. A misofonia pode ser um troço bem seletivo, pois em certos momentos eu gosto de escrever ouvindo música, mas o simples som das teclas, o famoso tec tec, me incomoda bastante.

O mesmo se dá com o barulho do clique do mouse. Por anos tentei encontrar um mouse silencioso e até recorri a uma gambiarra, mexendo nas peças do mouse. Até funcionou pra reduzir o ruído, mas é um procedimento delicado e que pode inutilizar o aparelho. Então finalmente encontrei um mouse realmente silencioso, o M110s¹.

Já o teclado foi uma jornada ainda mais longa. Já escrevi sobre alguns modelos que experimentei: o TC142², o TC154³ e o KB M60BK. Me conformei com o TC142 por um tempo, mas ainda não era o ideal. Até então nunca encontrei um teclado que fosse realmente silencioso na barra de espaço e no Enter, por causa de um arame que existe na parte de baixo, e o jeito era aturar esse som.

Aí descobri o MK295, um teclado sem fio. Agora sim, pela primeira vez, encontrei um teclado que é consideravelmente mais silencioso que os demais, inclusive na barra de espaço. Ele é da Logitech, a mesma fabricante do mouse silencioso que mencionei, de modo que esta marca ganhou mais pontinhos no meu conceito.

Ele já veio prontinho para usar, com duas pilhas AA protegidas por uma tira isolante que evita o consumo de bateria enquanto o produto está embalado. Basta remover a tira, ligar botão e, obviamente, conectar a anteninha USB no computador, que o sistema reconhece o dispositivo sem problemas.

Estou satisfeito, usando há quase um mês. Não houve até o momento alteração no ruído (há teclados que são mais silenciosos quando novos e com o tempo vão piorando) e a pilha ainda não esgotou. Aparentemente, nos jogos não sinto nenhum input lag, um problema que pode ocorrer nestes periféricos que não têm conexão por cabo.

Detalhe que ele veio em kit com um mouse, ambos partilhando a mesma antena. O mouse não é tão bom. Ele é menor que o M110s e os botões são um pouco mais ruidosos. A roda de rolagem é a pior, produzindo um som arranhado. Então deixei ele como reserva, pois vou continuar com o bom e velho M110s.

Notas:





Purple Hearts, um romance que desafia a polarização política

Purple Hearts (2022)

As pessoas têm opiniões bem diversificadas com respeito a política e à vida em sociedade, afinal, por mais que existam argumentos para fundamentar esta ou aquela opinião, a verdade é que existem muitos fatores subjetivos, inconscientes. As emoções, as sublimações psíquicas influenciam nossas escolhas e nossas opiniões.

Política, portanto, é um terreno caótico. Cada pessoa tem a sua própria história de desenvolvimento de opiniões. De toda forma, este caos acaba encontrando uma relativa ordem na formação de grupos, partidos, alinhamentos, ideologias. 

Esta organização, esta divisão em grupos tem se tornado cada vez mais simplista, a ponto de, em muitos países, se resumir a três grandes grupos que por questões de conveniência costumam ser classificados em direita, centro e esquerda. E mesmo o chamado centro é forçado a se posicionar para um ou outro lado, restando, no panorama geral, apenas dois grupos.

Nos Estados Unidos já é bem famosa a rivalidade entre direita e esquerda, também conhecida com outros termos como conservadores e progressistas, nacionalistas e liberais, republicanos e democratas, etc. Esta polarização tem se tornado ainda mais intensa na era das redes sociais, a ponto de se formarem bolhas sociais. Cada vez mais, as pessoas parecem desenvolver laços apenas com gente de sua mesma bolha, evitando amizades e relacionamentos amorosos com os "adversários".

Purple Hearts (2022), dirigido por Elizabeth Allen Rosenbaum, tem uma proposta ousada: desenvolver um romance entre um conservador e uma progressista, a união de opostos. Daí o título, pois o purple é o resultado da mistura de azul e vermelho, cores que representam respectivamente os partidos democrata e republicano.

O filme não é nada de mais. É um romance genérico e tal e o casal nem tem um carisma do tipo que nos faça torcer por eles, mas o tema provocativo é um diferencial. 

Hoje em dia, com a ajuda dos algoritmos, a produção cinematográfica está cada vez mais focada em agradar certos nichos. Há filmes mais conservadores e filmes mais progressistas e tem o Purple Hearts com essa incomum proposta de fazer com que os protagonistas, um conservador e uma progressista, resolvam suas diferenças e superem os rótulos que veem um no outro. 

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Mark Wahlberg é um padre debochado em Father Stu

Father Stu (2022)

Rosalind Ross é uma roteirista e diretora iniciante e que já começou bem com seu primeiro filme Father Stu (2022), estrelado por dois grandes dinossauros da indústria, Mel Gibson e Mark Wahlberg. Detalhe: Rosalind e Gibson estão juntos há alguns anos e têm um filho, Lars Gerard Gibson.

Ela começou sua carreira como competidora equestre, até que em 2014 escreveu um roteiro para um episódio da série Matador. Em 2016 atuou no curta A Social Life e agora em 2022 teve seu primeiro grande trabalho, um filme que dirigiu, produziu e roteirizou.

Mel Gibson and Rosalind Ross

Em 2014 ela começou a namorar o Mel Gibson. Duas vidas bem diferentes. Ela, uma jovem de 24 anos, em início de carreira, uma vida tranquila. Ele estava com 58 anos e um histórico problemático de alcoolismo, já teve duas esposas e oito filhos, não mais era o galã dos anos 90 e nem pegava grandes papéis nos filmes.

O fato é que o relacionamento dos dois tem dado certo. Em 2017 tiveram um filho e agora trabalharam juntos em Father Stu.

Father Stu é um filme biográfico modesto para os padrões de Hollywood. Teve um orçamento de 30-40 milhões de dólares e até o momento fez 21 milhões nos cinemas americanos. Não é um grande sucesso, mas já está perto de se pagar e gerar um lucro.

Father Stu (2022)

Enquanto o mundo dos blockbusters está repleto de super-heróis, sci-fi e fantasia, Father Stu é um filme bem mais humano, mais pé no chão. Conta a história real de Stuart Long, um cara problemático, ex-boxeador, que do nada resolve virar seminarista e corrigir seus defeitos. Ele consegue se tornar um padre bem diferentão, que fala palavrão e tem um jeito mais espontâneo de se comunicar com o povo. Ao mesmo tempo tem de enfrentar uma doença degenerativa que só fortalece ainda mais a sua fé.

O verdadeiro padre Stuart, que inspirou o personagem, serviu na igreja por 7 anos, morrendo aos 50 em 2014, coincidentemente o mesmo ano em que Rosalind Ross começou a namorar o Mel Gibson.

Mel Gibson in a trailer
Mel Gibson em Máquina Mortífera, Blood Father e Father Stu, como sempre morando em um trailer.

O Mark Wahlberg interpreta o padre e a princípio faz o seu tipo de sempre, um cara fortão e debochado. É no final da trama que ele muda totalmente, experimentando uma decadência física, ficando frágil e dependente. Seu pai é o velho Mel Gibson, que, como de costume, mora em um trailer e não é uma pessoa fácil de se relacionar.

O ator ativou o modo Christian Bale e se dedicou a uma transformação física para o papel. Wahlberg, que sempre manteve um corpo malhado, resolveu dar uma atrofiada nos músculos e crescer uma barriga de chopp, uma atitude ousada, levando em conta que hoje em dia dá pra mudar o físico dos atores com CGI.

Mark Wahlberg; Father Stu (2022)

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As luzes da noite

Da janela de um apartamento você pode ver as luzes da cidade à noite e sentir a vida que há lá embaixo nos carros em movimento, nas janelas acesas das casas. A cidade pulsa, as pessoas estão levando suas vidas, conversando nos bares, assistindo TV no sofá de suas casas, caminhando na avenida, trabalhando. Há crises, crimes, tédio e tensão, paixões e apatia, algumas estão deprimidas, algumas dormindo tranquilas.

Então olhamos para o céu e as estrelas e vemos que lá em cima também existe uma vizinhança. Daqui não podemos ver as janelas acesas, nem mesmo vemos os planetas que orbitam estas estrelas, mas eles estão ali, em toda parte neste abismo celestial. Há planetas na infância da vida, habitados por meros micróbios; há planetas sublimes e com povos que nos pareceriam deuses; há planetas em guerra; há planetas destruídos e onde só ruínas de antigos templos deixaram algum resquício das mentes que ali viveram.

Nesta imensidão de possibilidades, a vida está acontecendo de diversas maneiras, de certa forma não muito diferente da nossa. Há seres vivendo seus dramas e suas glórias; há seres trabalhando ou descansando, distraindo-se ou destruindo-se. Pode haver até mesmo alguém, ali numa estrela ou galáxia longínqua, que está contemplando as luzes noturnas, assim como você, e tendo estes mesmo pensamentos.

(21,08,2022)

 

O prazer da tristeza

É possível tornar-se imune a um veneno?
Após a exposição contínua e insistente,
o corpo desenvolve a tolerância
e já não sofre com a substância?

Talvez até o paladar se adapte
e prazer sinta em envenenar-se.
Assim aconteceu à minha alma:
o veneno da tristeza não me abala.

Acostumei-me a seu teor amargo.
Eu gosto do sabor do sal da lágrima.
A tristeza me transporta a um estado
de contemplação, de paz até, de calma.

(16,08,2022)


O perfil psicológico na escolha das classes de personagens

RPG classes

Cada player tem seus próprios motivos para preferir determinada classe de personagem, mas de maneira generalizante creio que podemos traçar um certo perfil psicológico que pode determinar a tendência das pessoas a escolherem esta ou aquela classe.

O tank, por exemplo, costuma ser considerado a classe mais padrão e de aprendizado mais fácil para novatos, além disso, por ter mais resistência, é de fato a classe ideal para quem está iniciando, porque correrá menos risco de morrer. 

Só que aqui não levaremos em conta este fator "escolha do iniciante", pois o iniciante ainda não se descobriu e, com o passar do tempo, depois que conhecer melhor todas as classes e ter o feeling delas, ele irá fazer uma escolha mais adequada ao seu perfil psicológico.

Voltando então ao tank. Esta talvez seja a classe que tem usuários com os perfis psicológicos e motivações mais variadas. Devido ao self sustain, à capacidade de permanecer vivo por mais tempo que as outras classes, o tank agrada jogadores mais solitários, o player solo, que quer fazer seu jogo sem contar com a ajuda de outros, sem ter que depender de ninguém. Pessoas, portanto, com um espírito muito independente podem dar predileção ao tank.

Por outro lado, também o inverso pode acontecer. O uso do tank para jogar solo é um desvio de seu real propósito, pois o tank é projetado para ser altamente cooperativo. Ele tanto ajuda os outros quanto depende deles. Em um trabalho cooperativo, o tank é o centro do conflito, a call do jogo deve girar em torno dele, pois é ele quem vai para capturar um ponto, segurar um boss, agrar vários mobs em volta dele... 

Sendo uma esponja de dano, o tank protege os outros. Ele fica apanhando do boss e dos mobs para poupar os outros players do grupo. Ele é, obviamente, o escudo do grupo. Isto também faz dele um personagem bastante dependente do trabalho em equipe, pois o tank, mais que qualquer outra classe, precisa do cuidado do healer, curando-o constantemente. O tank não é capaz de matar o boss, de modo que ele precisa da ajuda do damage. Toda a estratégia de combate, portanto, girará em torno da liderança do tank. 

Logo, o perfil psicológico do tank é o de um líder, alguém que sabe agregar pessoas, que sabe delegar as tarefas e que lidera pelo exemplo, pois ele vai na frente encarar o perigo, contando com a cooperação do grupo.

A classe damage é a mais independente e podemos dizer egoísta, principalmente se for dano à distância, um sniper. O damage não precisa se preocupar muito com cada membro da equipe, como o tank. Ele só precisa fazer o trabalho dele que é matar. O damage não precisa coordenar o grupo, não precisa curar nem proteger ninguém. O foco dele está em acertar os mobs, o boss, os players inimigos. 

Damages, portanto, são por natureza mais egoístas ou individualistas. Assim como o tank, a classe damage é apropriada para quem quer jogar solo, mas ela exige mais habilidade e foco. O mínimo que um damage precisa ter para fazer bem seu trabalho é uma boa mira, pois é um desperdício escolher esta classe se você erra a maioria dos ataques.

Por fim temos o healer. O healer é a mais cooperativa das classes e com um certo espírito subserviente. Ele vive em função de socorrer os outros players, dando suporte com sua cura. É preciso ter um certo espírito messiânico para ser um bom healer. Ele não está no centro das atenções, mas todos dependem dele, de seu trabalho silencioso. Enquanto os outros players estão com as atenções focadas nos inimigos, o healer está nos bastidores com a atenção focada nos players para impedir que morram.

O healer tem algo de masoquista, pois é a classe que mais recebe cobranças do time e que é alvo de constante ingratidão, pois, quando ele não consegue curar bem o time, é cobrado, mas poucos o agradecem quando ele salva os players da morte.

A jogabilidade das classes costuma ter uma congruência com seus perfis psicológicos. O tank, sendo líder, é aquele que vai encarar o desafio de perto, ficando frente a frente com o boss. Normalmente, portanto, o estilo de combate do tank é o melee, o combate de curta distância. Não faz sentido um tank sniper.

Existem jogos em que a classe damage usa o melee, mas o apropriado para esta classe é o ataque à distância e maior será o seu dano quanto mais habilidade for necessária para que ele acerte o alvo. Ou seja, o sniper, como tem uma hitbox minúscula para acertar, exige muita habilidade, uma boa mira. Em compensação, quando ele acerta causa mais dano que qualquer outro tipo de ataque. 

Ele pode ter dano em área, o que é comum em magos de gelo ou fogo, mas neste caso, o dano individual que causa é menor do que o de um sniper. Afinal é mais fácil acertar uma grande área com uma magia de fogo do que a cabeça de um inimigo à distância com uma flecha. Assim, por exemplo, se um arqueiro causa 1000 de dano ao acertar uma flecha na testa de um inimigo, um mago de fogo causa 200 de dano ao jogar uma magia de área, mas, se houver cinco inimigos nesta área, ele terá a mesma somatória de dano de um golpe do arqueiro.

A diferença é que o arqueiro é capaz de finalizar os alvos com mais rapidez, enquanto o mago de fogo mata os inimigos lentamente e em quantidade. O arqueiro é bom para lidar com inimigos individuais e o mago é bom para lidar com grupos de inimigos.

A classe de damage é de fato a mais diversificada. Existe o tipo hit kill, como o sniper, que é especialista em causar muito dano com apenas um golpe. É um estilo de combate que depende muito mais da precisão da mira do jogador do que do seu kit de ataques especiais. a jogada ideal deste tipo de personagem é o headshot, que deve ser mais difícil de acertar do que tiros no corpo, e é recompensado com um dano mais alto.

Existe o estilo de dano cumulativo, o DoT (damage over time). É o estilo, por exemplo, do assassin ou thief, um tipo de subclasse que deve ter um kit de ataques que exigem estratégia e certa malandragem, como armadilhas e golpes que aplicam veneno ou sangramento, fazendo com que o inimigo vá perdendo vida aos poucos. É uma classe ideal para pessoas que se divertem com a trapaça e a manipulação, usando muito o cenário, as circunstâncias e até o tempo contra o inimigo.

Existe o controle de grupo, o CC (crowd control), que todas as classes podem ter, mas é mais comum em algumas subclasses de dano, especialmente os magos. Uma vez que os magos são mais voltados a magia em área e o ideal é que causem menos dano direto do que um arqueiro, eles têm o bônus de poder aplicar diversos debuffs como lentidão ou diminuição do poder de dano dos inimigos. Classes de dano que possuem CC costumam ser mais cooperativas do que as focadas em puro dano, já que o CC é mais eficientemente aproveitado quando se combate em grupo.

O healer é o que deve ter a mira mais facilitada, seja por meio de aim assist da IA do jogo, seja usando magias de área que são fáceis de pegar em um grupo de jogadores. Como o healer está se dedicando integralmente a ajudar os outros, ele merece ter um desconto na habilidade de acertar os alvos. O damage precisa do desafio de ter mais dificuldade em acertar alguém, com uma hitbox menor, por exemplo. O healer, por sua vez, merece a compensação.

No Paladins, por exemplo, a maioria dos healers conta com um eficiente aim assist. A Seris e o Jenos, por exemplo, nem precisam mirar exatamente em cima de um player para acertar a cura. Basta aproximar a seta de uma área ao redor de um player que a hitbox da cura já fica acessível. O Grover tem uma formidável cura em área (como o Lúcio de Overwatch), de modo que qualquer player que estiver a certa distância dele já é passivamente curado. Um player que for péssimo de mira vai conseguir curar com o Grover sem dificuldades.

Outro recurso interessante para healers é a pocket heal, a cura de bolso. O Jenos deixa uma marca em um jogador e, enquanto esta marca estiver ativa, o jogador vai recebendo cura sem que o healer precise ficar clicando constantemente nele. Um clique e a cura de bolso é concedida por alguns segundos.

Este é o lado bom de ser healer. Para compensar seu espírito de dedicação aos outros, ele é o que tem mais facilidade em usar suas habilidades. E é assim que tem que ser, pois healers são a classe mais rara, assim como na vida real raras são as pessoas que se dedicam integralmente a ajudar as outras. Quando um jogo oferece um healer que exige muita habilidade, que não tem pocket heal ou aim assist, a tendência é que esta classe seja ainda menos escolhida.

Enfim, não digo que a escolha das classes de personagens seja necessariamente motivada por afinidades psicológicas, mas teoricamente existe um perfil psicológico em cada classe e acho até que seria interessante os jogos se dedicarem mais a direcionar os jogadores de acordo com estes perfis. 

Futuramente a IA será capaz de identificar com facilidade o perfil psicológico de um jogador e assim sugerir as classes que parecem mais divertidas para o mesmo. Muitas vezes uma pessoa escolhe determinada classe porque lhe foi dito que é o meta, ou porque queria atender a uma demanda, mas não joga com satisfação, pois não se sente no papel ideal. Eis aí a importância de se descobrir a classe de personagem que melhor combina com a personalidade do jogador.

Metaverso e a economia do tempo

Na minha juventude atarefada, vivi ocupado pelos três turnos do dia e às vezes quatro, quando estudava e lia nas madrugadas. Eu fazia faculdade em uma cidade vizinha, de modo que todos os dias era uma aventura ter que ir e voltar de ônibus. 

Tinha que pegar um ônibus de casa até a avenida que ia para a cidade vizinha, descia ali em uma parada e pegava outro ônibus para a faculdade. Todos os dias, portanto, gastava umas duas horas apenas com as viagens de ônibus para as aulas. E isto sem contar o tempo gasto com locomoção ao longo do dia em outras atividades, no trabalho, etc.

Assim é a vida de muita gente, tanto para quem anda de ônibus ou metrô, quanto para quem tem carro. O carro próprio não necessariamente reduz o tempo de locomoção das pessoas, apenas é um conforto a mais e obviamente amplia as possibilidades, já que você faz a sua própria rota. É, porém, bem mais custoso. Carro custa combustível, manutenção, impostos e eventuais multas. Você terá que trabalhar mais para ter mais dinheiro a fim de bancar os custos de ter um carro.

Anyway, o fato é que nesta vida moderna nós perdemos muito tempo entre o meio e o fim. O fim é estudar na escola, trabalhar, fazer compras, almoçar... Tudo isto exige locomoção que demanda tempo. Quantas horas o brasileiro médio gasta por dia apenas com isto? Além das típicas oito horas de trabalho, ainda deve gastar de duas a quatro horas indo pra lá e pra cá.

Eis, portanto, uma grande vantagem do novo estilo de vida que aos poucos está se formando com o metaverso e a virtualização das atividades. Frequentar um curso sem sair de casa significa ganhar pelo menos duas horas por dia, duas horas que podem ser investidas em estudo extra, em qualidade de vida, exercícios, caminhadas ou simplesmente lazer ou descanso.

O metaverso vai economizar nosso tempo em muitas tarefas. Esta é inegavelmente uma vantagem deste novo mundo que se forma.

Sem noção

Na juventude
eu era muito sem noção.
Ainda sou,
mas agora pelo menos
tenho noção que sou sem noção.

(10,08,2022)

Blade Runner, noir e o olhar melancólico

Blade Runner (1982)

O noir é um gênero com características bem marcantes. Tem a ambientação noturna, cenário sempre na penumbra, a fumaça de cigarro pincelando o ar, um policial solitário na noite, vestindo chapéu e sobretudo... E tem outro elemento bem curioso e que me parece estar bastante presente em Blade Runner: o olhar melancólico dos personagens.

Sean Young; Blade Runner (1982)

Sean Young; Blade Runner (1982)

Em Blade Runner, os personagens estão sempre com um olhar perdido, triste, desesperançoso. Eles representam um mundo que parece não ter mais alegria, que se rendeu ao niilismo. No primeiro Blade Runner, de  1982, vemos no Harrison Ford este olhar que tem uma mistura de tristeza, medo e preocupação, mas ele é ainda mais marcante nos olhos da Rachael, interpretada pela Sean Young. Os olhos melancólicos e vazios da Rachael são penetrantes e até apaixonantes.

Rutger Hauer; Blade Runner (1982)

Blade Runner 2049 (2017) é mais cyberpunk do que noir, mas o protagonista herda este elemento noir do filme clássico, o replicante interpretado pelo Ryan Gosling. Na verdade, o Ryan Gosling já tem este typecast. Os memes o representam como alguém que está sempre com uma cara de nojinho, de quem não quer comer a comida que você oferece. Ele tem o olhar de quem não está bem. Talvez esteja constipado, talvez esteja atormentado pelo vazio existencial. 

Anyway, o olhar melancólico está no protagonista e no mundo à sua volta. Até mesmo a inteligência artificial Joi, interpretada pela Ana de Armas, é contaminada por esta melancolia.

Ana de Armas; Blade Runner 2049 (2017)

Ryan Gosling; Blade Runner 2049 (2017)

Palavras-chave:

Sobre representatividade na ficção

Golden Rule; Norman Rockwell (1961)

Estes dias eu estava revendo Um Tira da Pesada (1984), um grande clássico do cinema de ação dos anos 80, e me vi pensando sobre o abismo que separa o cinema daquela época e o atual na maneira como lidam com a representatividade.

Existe sim uma lacuna na representatividade da ficção ocidental. Com exceção dos gêneros mais fantásticos, onde há elfos, fadas e outras criaturas não humanas, a ficção costuma representar a média da população da região onde a história se passa, seja na aparência, raça, nacionalidade, etc.

Ora, se observarmos os filmes japoneses, é evidente que a maioria dos personagens, especialmente os protagonistas, são japoneses, interpretados por atores japoneses. O mesmo se dá com o cinema indiano, árabe, coreano, russo, etc. É óbvio que no Japão existem estrangeiros e diversas raças, mas convenhamos que proporcionalmente o número é bem pequeno. Na verdade, basta andar na rua e olhar para as pessoas. A grande massa será composta de gente com a peculiar aparência asiática. Aqui ou ali você verá um negro americano, uma loira europeia, até um brasileiro, mas são poucos.

Logo, não é de se esperar que nos filmes japoneses encontremos, por exemplo, um casal de protagonistas feito de um negro e uma loira ocidentais. Não seria verossímil, não seria convincente. Por outro lado, pode haver uma história em que os protagonistas sejam japoneses, mas tenham um vizinho ou colega de trabalho ocidental. Isto soará mais realista e condizente com as estatísticas.

Aqui no Ocidente, por outro lado, esse negócio de representar o comum da população no cinema é mais complicado, pois o Ocidente é extremamente miscigenado. Não há lugar no mundo mais miscigenado do que as Américas e depois a Europa. A Europa tem uma longa história de miscigenação, mas ainda assim é possível notar uma certa prevalência de um tipo padrão de europeu. Você olha para um italiano, um britânico, um escocês, um francês, e você reconhece os traços típicos.

Nas Américas, por outro lado, a diversidade racial é enorme, pois nenhum outro continente recebeu tantos imigrantes de todas as partes do mundo. Você pode andar em uma rua movimentada de Nova Iorque e ver asiáticos, africanos, europeus, russos, australianos, latinos, indígenas, indianos, etc. 

Nos países de língua hispânica, existe uma relativa homogeneidade racial formada geralmente de pessoas descendentes da fusão de índios nativos e colonizadores espanhóis, o tipo popularmente conhecido como "latino". 

O Canadá por sua vez tem uma predominância de caucasianos de descendência europeia (mas isto está mudando devido ao aumento da imigração). Todos os países, é claro, têm pessoas de diversas raças e vindas de diversas partes do mundo, afinal estamos na era globalizada, mas a maioria dos países mantém uma certa homogeneidade racial que remonta a suas origens étnicas séculos atrás. 

Mesmo países extremamente miscigenados, como o Brasil, têm uma certa distribuição de tipos regionais como o carioca, o mineiro, o sulista, o amazonense, o baiano, o cearense. Cada um destes tipos em geral (enfatizo o "em geral") partilha de certos traços fenotípicos em comum. 

Em termos mais simples, você irá perceber uma presença maior de brancos descendentes de europeus, particularmente loiros, na região Sul; pessoas com traços indígenas na região Norte; mais caboclos no Nordeste, com uma maior concentração de afrodescendentes na Bahia... Ainda assim, nas ruas do Brasil, em qualquer lugar que você for, verá gente de todo tipo, negros, loiros, asiáticos e diversas categorias de mestiços.

É por isso que a questão da representatividade é bem mais complicada em países como o Brasil e os Estados Unidos. Não vemos ninguém discutindo representatividade no cinema japonês, pedindo mais atores negros ou latinos, porque não faria sentido, não é algo que diz respeito ao grosso da composição racial daquele país. Aqui nas Américas, por outro lado, este assunto são outros quinhentos.

Como representar americanos no cinema? O modelo atual, pejorativamente chamado de woke, tem investido em uma fórmula básica: "precisamos de mais personagens negros, latinos e asiáticos". A maneira como isto vem sendo feito, porém, parece forçada, artificial. Não é convincente e muitas vezes é até confundido como um gesto interesseiro de sinalização de virtude dos progressistas da indústria do entretenimento. 

Everybody Hates Chris (2005-2009)
Olhem como sou uma pessoa evoluída e me preocupa com este pobre negro.

Isto me lembra a Senhorita Morello, da icônica série Todo Mundo Odeia o Chris (2005-2009). Ela era uma professora que manifestava um racismo condescendente (bom lembrar que a série foi escrita por  Chris Rock com base em suas experiências de vida enquanto americano negro), tratando o Chris com uma espécie de pena, como que tentando sinalizar virtude de uma forma bem desastrada e cringe.

É assim que às vezes parece a postura dos studios que escolhem personagens negros, latinos e asiáticos apenas com a intenção de preencher uma cota e provar para a sociedade que estão contribuindo para a representatividade. No fim das contas, a intenção é apenas agradar críticos de cinema ou atingir nichos de mercado, mas como a coisa não soa natural, os tais nichos acabam rejeitando o produto. 

Tem acontecido com certa frequência os casos de filmes feitos com personagens asiáticos visando atrair o mercado chinês e que se tornam um tiro pela culatra, recebendo críticas do público chinês ou do governo devido à representação estereotipada e pouco convincente.

Ok a indústria de cinema ser motivada por interesses mercadológicos. É uma indústria, ora bolas. O problema na verdade não é o objetivo capitalista da coisa. O problema parece ser quem está produzindo este material. Parece que muitos diretores e roteiristas deste meio têm algo de Senhorita Morello. São pessoas que querem parecer descoladas, conversar com os jovens, alcançar o povão, mas que vivem em seus castelos dourados, em suas bolhas sociais. São pessoas que não entendem realmente o mundo real.

A maneira como realizam a representatividade parece até robótica. "Vamos colocar 30% de negros aqui, 20% de asiáticos ali". Talvez um bom exemplo desta atitude robótica seja o curioso caso do "race swap" de personagens ruivos.

Redheads in comics

Ultimamente, algo peculiar tem chamado atenção nas adaptações de quadrinhos para cinema e TV: muitos dos personagens que originalmente eram ruivos nos quadrinhos são representados por atores negros ou de outras etnias não ruivas. Para citar alguns exemplos, temos a Cyclone, a Hawkgirl, a Iris West, Jimmy Olsen (que mudou de nome para James Olsen na série da Supergirl), Wally West, Batwoman, Heimdall, Mary Jane, a Pequena Sereia e vários outros exemplos podem ser encontrados.

É na verdade compreensível que nas adaptações audiovisuais os atores não se pareçam com os personagens dos quadrinhos. De fato, é uma sorte rara encontrar um ator que seja a cara e o focinho de um personagem. O Christopher Reeve é na certa o maior exemplo. Deram a sorte grande em encontrar este ator que realmente parece a versão em carne e osso do desenho dos quadrinhos. 

Na maioria dos casos isto não acontece e o público aceita a diferença. Veja-se o Hugh Jackman como Wolverine. Ele não parece o baixinho peludo e marrento dos quadrinhos, mas bastou colocar costeletas e um corte de cabelo levemente parecido (e nem tão fiel assim à cabeleira dos quadrinhos) e o público comprou a ideia.

É esperar demais que os atores de live action sejam idênticos aos personagens do desenho, mesmo porque no desenho pode haver características impossíveis de se encontrar em pessoas reais. Até mesmo a raça original do personagem é um detalhe que pode ser modificado numa boa. A Lana Lang, por exemplo, nos quadrinhos era ruiva, mas na série Smallville foi interpretada pela linda Kristin Kreuk, uma canadense cujo pai tem descendência holandesa e a mãe chinesa, resultando numa peculiar miscigenação.

De toda forma, é uma curiosa coincidência o fato de personagens ruivos serem raros em live actions porque com certa frequência são interpretados por atores não ruivos, principalmente negros. O que poderia explicar esta coincidência? Arrisco a deduzir que isto acontece por motivos práticos: ruivos são raros no mundo. Só não são mais raros que albinos. É difícil achar atores ruivos, a maioria deles deve existir nos países nórdicos e não seria muito prático ficar contratando atores lá do outro lado do oceano e com sotaque estrangeiro toda vez que houver um personagem ruivo dos quadrinhos a ser interpretado.

Óbvio que nos Estados Unidos deve haver atores ruivos, mas convenhamos que a escalação de atores é um processo complexo e no fim das contas, após todo o filtro da seleção, quantos atores ruivos estariam disponíveis no determinado momento e lugar onde um filme ou série será feito? 

É compreensível, do ponto de vista logístico, que a indústria cinematográfica tenha dificuldade em usar atores para personagens ruivos, então uma saída fácil é simplesmente o race swap. "Ah, muda aí, ninguém vai notar". 

O race swap é bem menos comum em personagens de outras raças e em muitos casos ele é inconcebível porque o personagem possui traços étnicos muito característicos e a mudança causaria estranheza no público, até mesmo ofenderia certos públicos. Isto aconteceu com Ghost in the Shell (2017), pois foi escalada uma atriz caucasiana, a Scarlett Johansson, para encarnar uma personagem supostamente asiática. Digo supostamente, pois a personagem Motoko, do anime de 1995, vive em um mundo futurista e ela própria tem um corpo produzido artificialmente que pode ou não se assemelhar a pessoas asiáticas. Mas enfim, por se tratar de um anime, a adoção de uma atriz caucasiana causou estranheza em uma parte do público.

É difícil um personagem originalmente negro passar por race swap e também personagens loiros costumam continuar loiros nas adaptações. Às vezes o ator contratado nem é loiro, mas basta tingir o cabelo que o loiro está feito. Ocasionalmente, o mesmo é feito com ruivos. Novamente chamamos a Scarlett Johansson. Ela não é ruiva natural, mas interpretou a ruiva Viúva Negra, bastando tingir o cabelo de vermelho ou usar uma peruca.

O caso da Viúva Negra, porém, não esconde o fato de que há uma certa tendência dos studios optarem por contratar atores negros para os personagens ruivos, o que pode revelar uma bizarra estratégia. Uma vez que os studios querem bater suas metas de representatividade, é bem cômodo usar as lacunas dos personagens ruivos para preencher estas vagas. "Já que é tão difícil achar atores ruivos para estes papéis, vamos aproveitar para cumprir aqui nossa cota de representatividade negra".

Mackenzie Foy, Matthew McConaughey; Interstellar (2014)
Uma das raras personagens ruivas do cinema nos últimos anos.

Convenhamos que não é tão difícil resolver este "problema dos personagens ruivos", pois de fato basta tingir o cabelo. A garota Murphy, de Interestellar (2014), é interpretada pela Mackenzie Foy, que tem olhos verdes e cabelo castanho, de modo que a atriz teve o cabelo tingido de ruivo para caracterizar a personagem. No livro, publicado depois como adaptação do filme, a personagem é de fato descrita como ruiva de olhos verdes, um detalhe que provavelmente serviu para destacar em Murphy traços peculiares que ela não herdou do pai, mas da mãe, que já faleceu.

A Murphy adulta é interpretada pela Jessica Chastain, uma das raras atrizes naturalmente ruivas de Hollywood. Ou seja, Hollywood tem ruivos naturais à disposição, mas é evidente que são poucos. A Jessica Chastain não pode ser chamada para atuar em todos os papéis femininos de ruivas.

Karen Gillan; Not Another Happy Ending (2013)

No filme Not Another Happy Ending (2013), a Karen Gillan tingiu o cabelo de vermelhão para interpretar uma protagonista ruiva. Também podemos citar a atriz Amy Adams que com certa frequência atua com cabelos ruivos, o que não é a sua cor natural.

Ou seja, não é que os ruivos tenham sido expurgados do cinema. Nas animações são muito mais frequentes, pois um desenho não tem o problema do cast de atores. Parece mesmo que a maior incidência de substituição de personagens ruivos acontece nas adaptações de quadrinhos.

Há certos casos em que o cabelo vermelho é uma marca muito importante do personagem e aí o cinema se esforça em manter a característica. Foi assim com a Jean Grey, que na primeira versão dos X-Men foi interpretada pela Famke Janssen, que tacou um vermelho acaju no cabelo, depois pela Sophie Turner, que é loira natural e também recorreu ao tingimento. A Feiticeira Escarlate também continuou ruivaça na pele da Elizabeth Olsen (cujo cabelo natural é loiro castanho), afinal ela tem vermelho até no nome e seria uma grande descaracterização mudar a sua cor.

A questão é: embora seja difícil encontrar atores naturalmente ruivos, é relativamente fácil transformar qualquer ator em ruivo por meio da maquiagem, então porque todos os personagens de quadrinhos ruivos não permanecem assim quando adaptados para live action?

Lois Lane and Jimmy Olsen

Há casos de race swap também em animações, o que descarta a questão da dificuldade em encontrar atores ruivos. Na animação Batman and Superman: Battle of the Super Sons (2022), por exemplo, o Jimmy Olsen, famoso amigo ruivo do Superman, simplesmente aparece negro. O que teria motivado os roteiristas a fazer esta modificação em uma animação?

Eu sei, aqui estou entrando no campo da especulação e apenas tentando enxergar o fenômeno pelos olhos oportunistas de um produtor ou agente de Hollywood. Não descarto a hipótese da coincidência, mas é uma bela de uma coincidência.

Sobre a "questão logística" na escalação de atores, temos aqui no Brasil exemplos curiosos. É evidente que a nossa indústria cinematográfica e televisiva é concentrada na região Sudeste, especialmente São Paulo e Rio de Janeiro, onde fica a sede da Rede Globo. A maioria dos atores que trabalham para a Globo são pessoas que vivem ali na região Sudeste, alguns vieram de outras partes do país, mas muitos nasceram ali.

Aí temos um filme como O Auto da Compadecida (2000), uma saga folclórica nordestina, de autor nordestino, mas que teve como atores protagonistas o paulista Matheus Nachtergaele e o mineiro Selton Mello, ambos forçando um caricato sotaque nordestino. Nas novelas também é bastante comum haver personagens nordestinos interpretados por atores do Sul-Sudeste que então precisam forçar um sotaque. 

É claro que há atores nordestinos, mas a logística da escalação precisa ser prática. Se a novela é feita nos estúdios do Rio de Janeiro, vai procurar atores que no mínimo moram por ali, e ainda tem a coisa do rosto conhecido. Os atores brasileiros mais conhecidos são os rostos que terão preferência na contratação para o papel de protagonista, pois um rosto conhecido atrai mais audiência.

No fim das contas, o fato dos protagonistas do Auto da Compadecida não serem atores nordestinos não incomodou o público e nós, nordestinos (grupo no qual me incluo), curtimos o filme e rimos com as presepadas dos atores sem nos importar com uma representatividade genuína.

Beverly Hills Cop (1984)

Mas voltando ao caso do Tira da Pesada. O filme, que virou uma trilogia, é dos anos 80. Na visão anacrônica dos militantes woke atuais, os anos 80 e 90 eram permeados por racismo e exclusão de minorias no cinema. Olha, racismo e exclusão existiam sim, como ainda hoje existem, mas engana-se quem imagina que não havia representatividade no cinema.

Eddie Murphy foi um sucesso naquelas décadas. Era um dos galãs do cinema de ação. Em todos os seus filmes ele era o protagonista, a estrela, os cinemas lotavam para assistir seus filmes e a TV reprisava seus filmes de novo e de novo, entrando nas casas das famílias de todas as raças e classes sociais.

Eddie Murphy é um exemplo de tantos outros atores negros que tiveram espaço na ficção e que representaram pessoas negras com naturalidade, com sotaque, gírias e piadas que a população negra norte-americana entendia e se identificava. Não soava como representatividade forçada. Eddie Murphy não estava ali porque alguma Senhorita Morello o contratou pra mostrar como ela se importa com os negros. Ele estava ali porque era bom, era divertido, carismático e atraia público, ou seja, dava dinheiro pra indústria.

Naqueles tempos, a luta pelas causas raciais existia, obviamente. Ela existe há décadas, séculos. Só que a indústria cinematográfica não tinha uma cartilha de representatividade muito explícita. A presença de atores de diversas etnias acontecia de uma forma mais espontânea, de modo que acabava naturalmente representando os rostos da população americana. Veja-se a franquia Máquina Mortífera. Aquela delegacia maluca onde trabalhavam Riggs e Murtaugh era frequentada por negros, loiros, latinos, italianos, asiáticos. O cotidiano da vida numa cidade americana era naturalmente ilustrado com atores e figurantes de diversas características.

Hoje em dia os studios gostam de declarar aos quatro ventos o seu interesse na representatividade e é aí que a coisa começa a perder a espontaneidade, pois, a fim de sinalizar virtude, você está dizendo para as pessoas que está montando um elenco de forma a bater certas metas. É um processo quase matemático, robótico. Se bobear já usam até algoritmos pra escalar atores. Isto vai quebrando a mágica do cinema e o resultado final tem um ar de vale da estranheza.

Falando novamente no Japão, a indústria de anime parece uma boa professora sobre como realizar a representatividade de uma maneira espontânea, especialmente em termos de sexualidade. O Japão pode ser considerado um país tradicionalista, com valores conservadores imperando na cultura e costumes nacionais. Uma sexualidade que vá além do clássico casal hétero é incomum nesta cultura, todavia a cultura japonesa também valoriza muito o respeito à privacidade, de modo que ninguém fica se metendo na vida sexual de ninguém.

Na ficção, especialmente nos mangás e animes, existem até categorias específicas para diversos nichos. Ora, se tais categorias existem, significa que, tacitamente, a indústria de entretenimento japonesa admite que existem, no público consumidor, pessoas com diversos interesse sexuais que vão além da chamada heteronormatividade.

Makai Ouji: Devils and Realist (2013)

Um bom exemplo são os romances yuri e yaoi, que basicamente são histórias em que os protagonistas e mesmo boa parte dos personagens são homossexuais, bissexuais ou andróginos. Aqui no Ocidente, existe uma ênfase muito forte em se fazer uma propaganda e militância das causas sexuais. Artistas, roteiristas e empresas gostam de exibir o quão preocupados são com estas causas, de modo que acaba parecendo mera sinalização de virtude para ganhar biscoitos e se promover. Martin Luther King chamava isso de "tokenismo".

Já a indústria de yaoi e yuri não parece ser assim tão militante. Eles produzem este material simplesmente porque tem pessoas interessadas. Ou seja, o objetivo é agradar o público-alvo pelo conteúdo em si e não pela lição de moral. Nestas histórias, os roteiristas não estão preocupados em panfletar, mas em escrever algo bom de se ler e assistir, criar personagens envolventes, tramas cativantes. O melhor serviço que podem fazer pela comunidade gay é oferecer bom conteúdo e não ficar pagando de Senhorita Morello com um ar de "atenção, pessoas, chegamos aqui para ajudar estes pobres gays que precisam de uma revista pra chamar de sua".

Personagens andróginos, como homens afeminados ou mulheres másculas (femboys e tomboys) existem até nos gêneros mais tradicionais, como o shonen (que é voltado ao público masculino). É o caso, por exemplo, do Orochimaru em Naruto. Aliás, Orochimaru é uma espécie de genderfluid, pois ele ao longo da série vai se mostrando ora masculino ora feminino. E ele não fica pregando sermões sobre quem ele é. Ele simplesmente é.

Talvez o segredo para se fazer uma boa representatividade na ficção seja como a arte de contar uma piada. Você não pode chegar nas pessoas dizendo "atenção, agora vou contar uma piada e vou fazer vocês rirem". A espontaneidade faz parte da arte da piada. Como diz a música: "deixa acontecer naturalmente" ou "narutalmente". 

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