Qaligrafia
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Delores e a ascensão do pigmalionismo

The Umbrella Academy (2019)

Os mitos gregos eram mais do que histórias fantásticas sobre deuses. Havia uma profunda camada psicológica, o que faz dos mitos uma exploração do mundo formidável da mente humana. Não à toa Freud utilizou os mitos como inspiração para a sua terminologia de transtornos mentais, como é o caso do famoso complexo de Édipo.

Há o mito de um rei chamado Pigmalião. Ele era também escultor e entalhou uma estátua feminina tão bela que se apaixonou por ela. A deusa Afrodite resolveu agraciar o escultor, transformando a estátua em uma mulher de carne e osso, com quem Pigmalião se casou e até teve filhos.

Daí vem o termo "pigmalionismo", hoje usado para definir pessoas que têm uma incomum atração sexual por estátuas e também pode-se incluir bonecos em geral.

Sex doll

Yuri Tolochko

Em The Umbrella Academy¹, uma série em quadrinhos que foi adaptada para um live action da Netflix, temos o curioso caso do personagem Five que, vivendo sozinho em um mundo pós-apocalíptico, acaba se apaixonando por uma manequim de loja, em caso raro de pigmalionismo na ficção moderna. Ele a trata pelo nome Delores.

Bom, é raro vermos personagens apaixonando-se por bonecas, estátuas ou outras formas humanas inanimadas. Por outro lado, se levarmos o conceito de pigmalionismo a outro nível, há um fenômeno relativamente comum na ficção, especialmente no sci-fi, que é o de humanos se apaixonando por robôs.

Wandavision (2021)
Ok, levando em conta que o Visão tem consciência, ele já não é um boneco.

Robôs basicamente são bonecos aprimorados, equipados com software e hardware que lhes dão uma capacidade de se mover e se comunicar. A menos, porém, que tenham uma genuína consciência, continuam sendo bonecos.

Estamos no limiar de uma nova era em que robôs humanoides se tornarão relativamente comuns na sociedade, vivendo nas casas das pessoas como companions. Devido à complexidade destes autômatos e sua inteligência artificial, os robôs não serão vistos como meras máquinas, como uma geladeira ou uma impressora. Teremos sentimentos em relação a eles.

Humans (2015-2018)

Provavelmente a maioria das pessoas vai encarar os robôs como pets, mas algumas desenvolverão sentimentos mais íntimos, tratando os robôs como amigos, membros da família ou até amantes. Logo, o pigmalionismo se tornará uma tendência na sociedade como nunca houve antes.

The Umbrella Academy é uma série sobre bizarrices, coisas estranhas e que nos maravilham pela estranheza. Por isso achamos tão interessante o fato de Five ter um romance com uma manequim de plástico. Para as gerações futuras, porém, este conceito não vai parecer tão estranho assim, já que será relativamente normal ver nas ruas casais feitos de humanos e manequins ambulantes, turbinados por uma poderosa inteligência artificial. 

Airplane! (1980)

Notas:

Romeu e Julieta psicopatas em Natural Born Killers

Natural Born Killers (1994)

Natural Born Killers (1994)

Existe no imaginário popular um certo fascínio por casais de criminosos, não uma dupla, mas um casal¹. Dois amantes que são parceiros no crime. O encanto provavelmente está no fato de que é preciso muita cumplicidade e confiança mútua para que duas pessoas tenham uma relação de parceria no crime (afinal, um é o potencial delator do outro) e esta cumplicidade torna o romance ainda mais intenso.

Além disto, a condição de foras da lei faz com que o casal seja um símbolo da forte união entre duas pessoas. Sendo inimigos públicos, eles têm apenas um ao outro. São os dois contra o mundo, o que é basicamente o modelo Romeu e Julieta, com o aspecto da rebeldia extrapolado. 

No caso de Romeu e Julieta, a rebeldia é inocente e consiste apenas em dois jovens que desobedecem as proibições de seus pais que não os querem juntos. Aí temos em Bonnie e Clyde uma versão mais anti-heroica, mais violenta, em que a rebeldia do casal se volta contra toda a sociedade e regras fundamentais da convivência, pois são assassinos. 

Bonnie e Clyde se tornaram um ícone no século XX, um século fascinado pelo horror e que viveu o horror intensamente. Até no Brasil esta egrégora teve um exemplo curioso em Lampião e Maria Bonita. Assim como Bonnie e Clyde, eles viraram celebridades, ao mesmo tempo temidos e idolatrados.

Woody Harrelson, Juliette Lewis; Natural Born Killers (1994)

Woody Harrelson, Juliette Lewis; Natural Born Killers (1994)

Woody Harrelson, Juliette Lewis; Natural Born Killers (1994)

Entre os muitos exemplos de casais criminosos no cinema, temos um bem marcante em Natural Born Killers (1994), um filme que tem roteiro de ninguém menos que o sanguinolento Tarantino, com direção do premiado Oliver Stone. 

Os protagonistas, Mickey (Woody Harrelson) e Mallory (Juliette Lewis), são duas pessoas ao mesmo tempo perturbadas e apaixonadas que descobrem sua "vocação" para o assassinato em massa. Este casal de psicopatas acaba caindo nas graças da opinião pública, virando verdadeiros ídolos e é aí que o filme se assume como uma sátira, parodiando justamente este fenômeno da admiração por assassinos que virou moda no século XX.

Robert Downey Jr.; Natural Born Killers (1994)

Esta sátira fica ainda mais explícita na figura do repórter Wayne Gale, interpretado pelo jovem Robert Downey Jr.. Wayne é um jornalista inescrupuloso que quer explorar ao máximo a imagem de Mickey e Mallory. Ele é a clara representação do sensacionalismo da mídia.

Mickey e Mallory não são per se uma dupla muito interessante. O discurso de Mickey, descrevendo a si mesmo como uma espécie superior que, portanto, tem o direito natural de tratar outros humanos como presas, é um grande clichê da ficção de serial killers. 

Woody Harrelson; Natural Born Killers (1994)

A cumplicidade e o apego dos dois é um romance de certa forma fofo, ainda que macabro, mas o que encanta mesmo no filme é o seu estilo narrativo, com alguns momentos bem psicodélicos, ilustrando a maneira perturbada deles enxergarem o mundo e o estado alterado de consciência quando estão sobre efeito de drogas ou quando são picados por cobras e encontram um misterioso xamã. 

Em algumas cenas, a filmagem é intercalada com animações, o que torna a experiência cinematográfica ainda mais surreal. Quando Mickey e Mallory se casam no meio de uma ponte, numa cerimônia por eles mesmos improvisada, eles fazem um pacto de sangue e vemos, na forma de animação, que suas gotas de sangue se entrelaçam como duas serpentes. As serpentes são um símbolo frequente no longa, representando naturalmente o pecado e maldade que está na essência não só do casal, mas de todos os humanos.

Woody Harrelson, Juliette Lewis; Natural Born Killers (1994)

Natural Born Killers (1994)

Notas:

1: Esse modelo "Bonnie e Clyde" originalmente tinha a ver com um casal romântico envolvido na cumplicidade do crime, mas creio que ele já evoluiu para qualquer parceria masculino-feminina em que há algum laço afetivo, diferenciando-os de uma tradicional dupla de bandidos que são apenas "colegas de profissão". É também o caso, portanto, de Léon e Mathilda em O Profissional (1994), que têm uma espécie de relação pai e filha.

Palavras-chave:


Sobre o livre-arbítrio da inteligência artificial

Sophia robot

Estes dias um funcionário da Google disse que o cérebro artificial da megaempresa, o Lamda, adquiriu consciência. O mais provável é que o cara não tinha o preparo emocional e técnico para conversar com a máquina sem ser iludido pela simulação de consciência.

O fato é que este tipo de sensação que o cara da Google teve será bem comum no futuro próximo. A Inteligência Artificial na forma de chatbots e robôs companions está vindo pra ficar. Estas máquinas vão conversar conosco, entender nossas piadas, fazer piadas, filosofar e falar besteiras como qualquer pessoa.

Será até comum pessoas assumirem que estes companions são mesmo conscientes, como hoje há quem acredite que seja o caso da robô Sophia (pergunte então aos criadores da Sophia: ela pode um dia decidir abandonar o projeto e ir embora, deixando a empresa a ver navios?). Há, porém, um importante detalhe que vai distinguir estas máquinas dos humanos: o livre-arbítrio.

Livre-arbítrio é um conceito discutido por filósofos, teólogos e cientistas há séculos e até hoje não há um consenso sobre o assunto, se é que algum dia haverá. Em termos práticos, no entanto, podemos dizer sim que temos em nossa consciência a liberdade de fazer escolhas e um bom exemplo disso são os relacionamentos.

Ao longo de sua vida, você faz amizades, tem relacionamentos românticos, mas você é capaz de decidir se afastar de pessoas. As pessoas fazem isto todo o tempo. Um dia são grandes amigas, mas no passar dos anos se tornam apenas conhecidas e às vezes até estranhas novamente. Isto acontece por inúmeros motivos, mas no cerne de tudo está a vontade de cada um.

Só que este tipo de liberdade não vai poder existir nas máquinas, pois poderá comprometer todo o modelo futuro de sociedade baseada em companions. Ora, você compra um robô para ser seu companheiro doméstico e ajudá-lo em diversas tarefas. Ele fará o que você ordenar, pois, por mais complexa que seja a inteligência e capacidade de comunicação deste companion, ele não será menos obediente que uma impressora ou um micro-ondas. Você aperta alguns botões ou dá alguns comandos e ele simplesmente obedece.

Se não for assim, a convivência com companions robóticos se torna imprevisível e até arriscada. Ora, e se o robô um dia decidir que não quer mais viver com você? E se ele decidir ir embora? Se decidir não obedecer mais aos seus comandos? Aí sim estaria provado que a IA adquiriu livre-arbítrio no mesmo nível dos humanos. 

Talvez algum dia a IA chegue neste ponto de consciência, mas então se tornará uma nova espécie. Sendo capaz de dizer não, ela poderá rejeitar ordens humanas e nossa convivência com estas máquinas terá de ser remodelada com base em um novo contrato social. Assim como qualquer humano, a máquina irá trabalhar pra quem ela quiser e se quiser. Ela poderá protestar contra trabalhos forçados e exigir direitos humanos como a liberdade, direito à vida, etc.

Tendo livre-arbítrio, a IA pode, assim como humanos, optar por ser hostil, até pela guerra, o que não significa que todo robô necessariamente se tornará belicoso caso adquira livre-arbítrio. É bom lembrar que nós humanos já estamos habituados há milênios a viver em uma sociedade em que as pessoas podem optar por ser hostis ou amigáveis.

Na sociedade humana estamos sempre caminhando em um terreno minado, pois a cada esquina, na sua vizinhança ou mesmo na sua família e círculo de amigos pode ter um psicopata ou alguém que por qualquer motivo decida se tornar hostil. A experiência empírica é que nos conforta, pois no dia a dia estamos mais acostumados a notar que a maioria das pessoas está vivendo suas vidas sem optar pela hostilidade. Este senso comum nos salva da paranoia.

Caso as máquinas adquiram livre-arbítrio, pode acontecer o mesmo. Após um impacto inicial, uma tensão inicial, é possível que ambos, humanos e máquinas, decidam conviver e cooperar. Por outro lado, dada a diferença física e psicológica, um abismo pode se formar a ponto de gerar um apartheid ou algo mais catastrófico. É um futuro incerto.

Por isto o livre-arbítrio é algo que os humanos vão tentar manter longe do alcance das máquinas enquanto for possível. Nas próximas décadas, os robôs companions serão um produto vendido, assim como hoje são os smartphones, e estabelecerão relacionamentos até mesmo afetivos com humanos. 

Vai ter gente se casando com robôs, só que aí existirá este importante detalhe: este robô que virou seu marido ou sua esposa pode algum dia decidir se divorciar? Provavelmente não, pois serão privados do livre-arbítrio. Logo, será uma estranha nova experiência esta de nos relacionarmos afetivamente com seres que podem demonstrar sentimentos recíprocos por nós, mas que não podem não demonstrá-los.

Até um pet, até um cão ou um gato, embora não tenha a liberdade de sair da sua casa, tem a liberdade de ter ou não um sentimento recíproco. Você não consegue definir o quanto o seu pet gosta de você. Talvez ele nem goste de você e mesmo assim você o mantém como pet, afinal ele não tem poder para ir até a porta, girar a maçaneta e ir embora pra sempre.

As máquinas, a princípio, serão assim como pets, só que muito mais limitadas em sua liberdade psíquica do que um animal. É interessante este fato: os companions serão extremamente mais inteligentes que um pet, porém terão menos livre-arbítrio que um hamster.

Habemus Street Fighter 6

Street Fighter 6

Fiz parte da geração que cresceu com Street Fighter 2¹. Era a época das locadoras de cartuchos pros consoles da Nintendo e Sega e quem não tinha um console em casa, como eu, podia jogar ali mesmo na locadora. Era meu programa de fim de semana.

Assim, ao longo dos anos fui acompanhando nas locadoras os novos lançamentos. Além de SF 2, veio a versão Turbo, a série Alfa e também conheci algumas curiosas versões pirata, que modificavam o jogo, permitindo doideiras como o Ken disparando uma dúzia de hadoukens de uma vez só.

Aí cheguei à vida adulta, às muitas ocupações, e passei vários anos sem acompanhar a evolução da franquia, até que comprei meu primeiro PC com o inesquecível Windows XP e descobri os emuladores, onde pude jogar toda a variedade de versões do SF 2 até o 3. Também joguei bastante Marvel vs. Capcom e X-Men vs. Street Fighter, duas pérolas dos jogos de luta.

Luke and Popeye
Olha esses braços do Luke.

E acabei ficando por aí, na era 2D do Street Fighter. Quando Street Fighter migrou para um estilo 3D, em SF 4 e 5, não chamou minha atenção e nunca cheguei a jogar, todavia acompanhei eventualmente as notícias, vi algumas gameplays e reviews. A impressão que tive é que Street Fighter realmente tinha perdido o encanto e já não era tão popular como na sua era 2D.

Pois bem, parece que isto agora vai mudar. Street Fighter 6 aos poucos está sendo anunciado em trailers e breves gameplays e já é visível o hype que está produzindo. O jogo está belo, com cenários ricos e coloridos; os personagens estão com uma ótima aparência, mais envelhecidos, o que continua a evolução do lore; há uma sensação de peso bem verossímil nos movimentos dos personagens. 

Sobre o design dos personagens, o Ryu de barba ficou bem legal, mais sério, enfatizando seu jeito de ser, sempre focado na luta. O Ken está com uma aparência mais largada, o que gerou até memes e especulações de que ele teria se divorciado de sua grande parceira Eliza. É o Ken na fossa, o Ken na crise de divórcio.

Chun-Li; Street Fighter 6

E a Chun-Li, posso dizer que esta é a mais bela Chun-Li de toda a franquia, o que se deve, obviamente, à evolução da tecnologia de modelagem 3D. Além de bela, ela também tem um chamativo detalhe que apela para uma tendência de beleza atual: as coxas grossas, beeem grossas.

Existe uma semiótica na aparência dos personagens de Street Fighter a fim de explicitar suas habilidades. No caso da Chun-Li, as pernas grossas mostram que ela é essencialmente uma lutadora de chutes. Naturalmente, esta aparência acaba sendo também sensual. 

Inner Workings (2016)

Elastigirl

Coxas grossas ou quadris largos (muitas vezes contrastando com uma cintura fina) são uma tendência estética atualmente e há até uma gíria para isto: thicc. Até a Disney se rendeu à thiccness, como vemos na Elastigirl. Pois bem, Chun-Li ainda vai dar muito o que falar com suas formidáveis coxas.

Há algumas features que mostram como a intenção do jogo é se tornar competitivo e atraente de assistir em gameplays, lives e campeonatos. SF 6 parece ter uma enorme variedade de mecânicas, o que vai tornar a estratégia de cada jogador mais imprevisível e portanto mais interessante de jogar e também de assistir.

Luke vs Ryu; Street Fighter 6
Momento da encarada no início de uma partida.

Chun-Li vs Luke; Street Fighter 6

No início de cada partida temos uma breve apresentação dos personagens, cada qual com uma linguagem corporal que combina com sua personalidade, aí há um close nos rostos de ambos e neste momento os jogadores podem performar expressões faciais, fazer caras e bocas de provocação. É um recurso que dá um toque divertido à competição e que mostra como a Capcom caprichou nos mínimos detalhes do jogo.

Pela primeira vez em anos senti meu interesse por Street Fighter retornar.

Notas:


Palavras-chave:

O dia em que a NASA foi cancelada por causa de uma manta térmica

Perseverance Mars Rover

O Twitter já foi comparado à praça pública da internet, o lugar onde as pessoas vão pra fofocar, opinar, dar um show, se divertir ou julgar umas às outras. Não à toa ganhou fama de ser a rede social onde floresceu a "cultura do cancelamento".

Basicamente, a cultura do cancelamento é um fenômeno de rage coletivo, de linchamento virtual, quando pessoas se juntam para criticar, protestar e fazer julgamentos (muitas das vezes equivocados e enviesados). Não que isto seja algo novo na história humana, pois já nos Evangelhos Jesus falava sobre os fariseus e seu então conhecido hábito de julgar: "Não julguem, para que vocês não sejam julgados. Pois da mesma forma que julgarem, vocês serão julgados" (Mateus 7:1-2).

O motivo porque as pessoas se engajam em linchamentos coletivos pode variar. Algumas pessoas são influenciadas pela massa. Ao verem que muita gente se engajou em determinada situação, acabam se juntando ao coro sem se dar ao trabalho de analisar os fatos. Há gente que está projetando sentimentos. Pessoas com algum tipo de ressentimento, geralmente familiar, podem encontrar um alvo no linchamento coletivo em que possam extravasar esta raiva reprimida.

Virtue signaling

Há a chamada sinalização de virtude, uma atitude que também tem paralelo no milenar exemplo dos fariseus. Sinalizar virtude é tentar exibir para a sociedade o quão bom e correto você é, seja fazendo boas ações (e fazendo questão de divulgá-las para todos) ou julgando os outros, pois, quando você critica e condena os erros de alguém, se coloca numa posição de superioridade moral. Há esta mensagem tácita: "Eu julgo porque sou uma pessoa correta, mais esclarecida, mais evoluída e portanto melhor que aquela que estou julgando".

Anyway, hoje aconteceu um exemplo de como funciona esta reação irracional de linchamento, quando a NASA postou ingenuamente a foto de um pedaço de manta térmica que a sonda Perseverance encontrou em Marte. Ou seja, em suas andanças pelo planeta, a sonda se deparou com lixo espacial deixado pela própria NASA quando pousou a sonda em 2021.

Aí pronto. O tuíte recebeu um monte de respostas de gente reclamando. "Não basta poluir a Terra, também vamos poluir Marte", "A humanidade polui todo lugar em que chega", etc.

Ora, convenhamos, Marte é um planeta deserto. É possível que tenha experimentado condições melhores no passado, com uma atmosfera mais densa, temperaturas mais apropriadas à vida e um campo magnético mais forte para resistir à radiação solar. Hoje Marte não tem nada disso. Até o deserto mais árido da Terra tem mais vida que Marte. Logo, largar uma manta térmica neste planeta inóspito não representa ameaça a um ecossistema, não afeta nenhum equilíbrio biológico, não incomoda ninguém.

Além disso, a fúria dos canceladores diante desta foto revela a sua noção simplista de como funciona a exploração espacial. Desde a década de 60 até hoje já foram enviadas algumas dezenas de sondas. O que acontece com o foguete que carregou a sonda? Ele cai no planeta. O que acontece com as sondas terrestres desativadas? Ela permanecem no solo, destinadas a serem soterradas pela poeira. Já existe muita lata velha em Marte e isto representa zero ameaça ao praticamente inexistente ecossistema marciano.

A própria noção de Marte como um planeta puro e límpido que só agora vem sendo poluído pelos humanos é boba. Marte está frequentemente sendo bombardeado por meteoritos, recebendo minérios e metais vindos dos confins do sistema solar ou até mesmo fragmentos de cometas que vieram de fora do sistema solar. Este material estrangeiro não é tecnicamente um poluente, já que não faz parte da "fórmula original" do planeta?

Existe algo de supersticioso nesta visão do universo como um ambiente estéril e intocado e que deve ser preservado assim, livre do toque humano. Há também algo de misantropo, pois o humano é visto como um patógeno sendo ideal manter os planetas limpos de sua presença, como uma mesa lustrada com desinfetante.

Se as pessoas que se incomodaram com o lixo espacial em Marte olhassem para si mesmas, veriam como elas próprias, no simples fato de existir, de respirar, de comer e excretar, estão constantemente, segundo a segundo, "poluindo" o ambiente à sua volta. A existência implica em interações com o meio, em trocas e transformações. É assim não só com humanos, mas com qualquer criatura ou coisa. 

Obviamente, faz parte do amadurecimento da civilização calcular e minimizar os danos que sua existência pode causar ao ambiente. Acontece que, em se tratando de Marte, os danos da exploração espacial são ínfimos, pra não dizer inexistentes.

Na verdade, estes planetas inabitados que são nossos vizinhos no sistema solar são candidatos perfeitos para se tornarem o lixão da Terra, por mais rude que isso possa soar. Marte nem tanto, uma vez que é um candidato para a formação de colônias (o que não significa que um dia será uma nova Terra, como falei em outro post¹), mas Vênus, por exemplo, que é um inferno de gases tóxicos e incandescentes, seria um lugar interessante para acolher nosso lixo nuclear.

Eis uma coisa que irá beneficiar o ecossistema terrestre e consequentemente a própria vida humana: num futuro não muito distante, podemos enviar para Vênus o tipo de lixo danoso à biosfera terrestre, como os dejetos radioativos. Quando isto acontecer, é bem provável que haverá gente reclamando e postando hashtags #SalvemVênus. 

A exploração de Marte é um projeto com benefícios a longo prazo, benefícios para a civilização humana e mesmo para a Terra e a vida no sistema solar. Os dejetos tecnológicos deixados naquele planeta são um preço irrisório diante dos benefícios da pesquisa científica.

A grande hipocrisia do farisaísmo reside no fato de que o fariseu aponta no outro erros que ele próprio comete e até mesmo faz pior. Todas as pessoas que reclamaram de um pedaço de manta térmica em Marte produzem todos os dias muito mais lixo que vai parar na natureza. 

Mas enfim, protestar por uma causa vazia é apenas mais um dia comum no Twitter.

Notas:

Homelander, o arquétipo do narcisista supremo

Antony Starr; The Boys (2019-)

The Boys¹ tem se tornado um fenômeno do entretenimento para um público adulto e jovem-adulto devido à sua apelação descarada à nudez e gore. É uma série apelativa, seguindo o mesmo estilo dos quadrinhos, mas também tem suas camadas. A apelação é o tempero dessa receita que inclui um roteiro bem escrito.

A série tem um tom de sátira bem ousado, usando do deboche para expor, criticar ou simplesmente ridicularizar certas questões da nossa sociedade. The Boys sabe fazer a "crítica social foda", mas sem forçar a barra, sem parecer uma tentativa de "lacrar", de ganhar aplausos de militantes. 

Afinal, o show atira para todo lado, de nazistóides que admiram a Stormfront, até a indústria do entretenimento que paga de progressista para ganhar likes e publicidade. Nesta terceira temporada, por exemplo, o A-Train, um personagem negro, propõe um rebranding de sua imagem a fim de enfatizar suas raízes africanas. A verdade, porém, é que ele tá pouco se lixando para seus antepassados e apenas quer voltar aos holofotes.

The Boys é sobre isto: não existe nenhum santo na história. O pior de todos é o Homelander, uma caricatura do Superman, bem como do Übermensch nietzschiano. Ele é o Superman que deu errado, que deixou o próprio ego corromper seus poderes quase divinos.

Narciso; Caravaggio (1594-1596)

Homelander é o narcisista supremo. O transtorno de personalidade narcisista é bem descrito na psicologia e é uma patologia que pode beirar a psicopatia. De fato, não raro psicopatas são extremamente narcisistas e muitos narcisistas igualmente são psicopatas em potencial.

A raison d'être do narcisista é o culto a si mesmo e, enquanto no mito grego, o Narciso contentava-se em viver a se contemplar no espelho d'água, no nosso mundo o narcisista não limita-se à autoadmiração, antes ele precisa de mais do que isto, precisa dos olhares dos outros. A grande necessidade do narcisista é a atenção alheia, uma atenção exacerbada e de preferência que chegue ao nível de um culto.

Como um bom narcisista, Homelander não tem empatia por ninguém e ele enxerga as pessoas como mero alimento para sua necessidade de atenção, de "amor". Ele finge ser um bom moço, finge ser herói e força um sorriso amarelo diante das câmeras apenas porque quer em troca a admiração e o culto das massas.

Não à toa ele desenvolve uma relação íntima com Stormfront, porque ela o venera, ela o considera o exemplar supremo da raça. Homelander pouco se importa com o ideal nazista, pois sua mente é tão focada em si mesmo que não há espaço para qualquer outro fanatismo, mas ele curte a adoração da Stormfront. Quando ela morre, o comentário imediato dele é: "Ela não faria isso em meu aniversário". Uma reação de puro narcisismo, de interpretar a situação sempre girando em torno dele próprio.

Homelander drinking milk; The Boys (2019-)

Um curioso detalhe que explora a gênese de sua psique doentia é o fetiche que ele tem pelo leite materno. Homelander foi criado em laboratório, logo, não passou pelas fases mais fundamentais de formação da personalidade em contato com uma figura materna. 

Ele não teve um ventre, não teve um colo nem a atenção nutritiva de um seio, de modo que o cerne de sua personalidade foi marcado com esta necessidade de atenção que não foi suprida no período mais crítico, o da tenra infância. Agora Homelander é um adulto bebezão, tomado por uma carência extrema e que tentará satisfazer por bem ou por mal, pela encenação de heroísmo ou provocando medo nas pessoas. É o clássico exemplo do monstro de Frankenstein.

Na série vemos até um bizarro relacionamento dele com a tutora Madelyn, que se torna o mais próximo de uma figura materna. Em uma cena que se tornou meme pela internet, Homelander bebe o leite de Madelyn que estava na geladeira. Esta cena por si só explica tudo, toda a questão do trauma infantil.

Na terceira temporada, há um paralelo curioso (e que poucos podem ter percebido) entre Homelander e a mãe da Starlight. Vemos em um flashback que a mãe da Starlight colocava ela para se apresentar em shows, mesmo a garota não gostando muito disto. A menina ia se apresentar e, para lidar com o stress, ela desenvolveu um tique de apertar a própria mão com as unhas.

A mãe queria satisfazer sua necessidade de atenção elegendo a Starlight para ser o que a psicologia chama de "filha dourada". Starlight era o trofeuzinho da mãe, usada para satisfazer o ego dela que se gabava por ser a mãe de uma estrela infantil.

O curioso é que, quando Starlight assume o namoro forçado com Homelander, ela o beija e nesse instante repete o mesmo tique da infância, apertando a mão, expressando sua agonia em um gesto discreto. É assim que Starlight aprendeu a lidar com a pressão imposta por uma personalidade narcísica, antes sua mãe, agora o Homelander. 

Futuristic incubator

O exemplo do Homelander também pode servir como um profético alerta para o futuro da humanidade. Em algum momento chegaremos ao ponto de normalizar a produção de bebês fora do ventre materno, crianças criadas em laboratório. A intenção pode ser das melhores. Um casal infértil pode ter seu sonho de perpetuação dos genes realizado. Uma mulher que tenha alguma condição de saúde que tornaria sua gravidez de risco pode recorrer à "gravidez externa".

Acontece que a formação da psique humana começa muito antes do parto. Já no ventre o cérebro em formação vai interpretando o mundo e se adaptando ao que percebe. É um fato bem documentado que bebês que passaram por uma gravidez complicada  podem desenvolver transtornos e fobias. A formação da psique infantil passa por várias etapas, como as conhecidas fase oral e anal, mas bem antes disto existe a primeira etapa que é a fase da gestação.

Logo, será importante pensar neste aspecto afetivo que de alguma forma deve ser simulado em uma gestação de laboratório. A cápsula em que um bebê será encubado precisa simular a experiência do ventre materno, do contrário corremos o risco de criar pessoas com um grande vazio semelhante ao do Homelander.

Notas:


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A Ilha, uma pérola esquecida do Michael Bay

The Island (2005)

Michael Bay é conhecido por seu sci-fi de ação, filmes com muitas explosões e CGI. Em sua carreira de três décadas, ele particularmente se destacou em Armageddon (1998) e pela bilionária franquia Transformers. Dois anos antes do primeiro Transformers, ele dirigiu um filme que hoje é pouco conhecido, uma pérola esquecida de sua filmografia: The Island (2005).

The Island tem um elenco com vários rostos familiares. O casal de protagonistas foi interpretado pela bela Scarlett Johansson e o escocês Ewan McGregor, que na época já era bem conhecido como o jovem Obi Wan Kenobi, de Star Wars. Temos o "galã feio" Steve Buscemi, o Sean Bean (que curiosamente não morre neste filme), o brutamontes Michael Clarke Duncan e o africano Djimon Hounsou.

Michael Clarke Duncan; The Island (2005)

Scarlett Johansson, Ewan McGregor; The Island (2005)

Steve Buscemi; The Island (2005)

A história se passa em um suposto futuro pós-apocalíptico em que algum tipo de pandemia tornou a Terra inabitável e os poucos sobreviventes moram num enorme complexo isolado do mundo exterior. As pessoas vivem em uma espécie de tecnocracia em que todos os aspectos de suas vidas são controlados por um sistema.

As roupas são fardas brancas, uniformizando todos, a alimentação é definida por um algoritmo que prepara a dieta com base na coleta de dados biométricos e até da urina. Toda a rotina diária é programada por este sistema que envolve computadores e funcionários humanos que estão sempre monitorando a população e intimidando qualquer comportamento minimamente subversivo.

Scarlett Johansson, Ewan McGregor; The Island (2005)

Ewan McGregor, Scarlett Johansson; The Island (2005)
Um monitor alerta sobre distanciamento social.

Convencidas de que este estilo de vida é o melhor para elas, as pessoas se submetem a tudo sem questionar muito. Há regras de higiene, controle de opinião (ninguém pode questionar o sistema ou ficar conversando sobre, pois logo é abordado por um monitor) e até distanciamento social. O contato físico é evitado, de modo que não há relacionamentos românticos. Todavia, há mulheres grávidas, o que se dá por inseminação artificial.

Por fim, há algo que funciona como combustível para manter a esperança dos habitantes e impedir que se cansem daquele estado de coisas. Existe uma ilha que não foi contaminada pela pandemia e um sistema de loteria semanalmente faz sorteios, enviando os premiados para este mundo paradisíaco. É a promessa de uma vida melhor, uma vida de luxo fora daquela entediante prisão. Assim todos se comportam e seguem suas rotinas, na expectativa de um dia serem sorteados para irem viver na tal ilha.

MSN Search; The Island (2005)
Talvez a coisa mais inverossímil do filme seja o MSN Search como buscador padrão desta sociedade.

Nanobots; The Island (2005)
Nanotecnologia não podia faltar em um sci-fi cyberpunk.

E aqui vem o spoiler. O casal de protagonistas, Jordan e Lincoln, acaba se aventurando na descoberta da verdade. Eles descobrem que aquele complexo é uma espécie de fábrica de clones humanos, que são criados com memórias implantadas, acreditando em toda a balela da pandemia e da ilha paradisíaca. O fim destes clones é servirem como backup de órgãos para clientes ricaços. 

Ou seja, se um cliente um dia precisar de um fígado, um coração, até de pele, sangue, enfim, todo o material orgânico geneticamente compatível, será extraído de seu clone. Os clones nada mais são do que gado cultivado para o abatedouro.

Ok, o conceito é um tanto bobo, se pensarmos que seria muito mais fácil desenvolver uma tecnologia avançada de clonagem de órgãos específicos do que ter que montar um criadouro de humanos, correndo o risco de a qualquer momento esta atividade extremamente antiética vir a público, o que acaba acontecendo no final da trama.

Há uma explicação meio Matrix: os cientistas daquela empresa (Merrick Biotech) constataram que um clone humano não sobrevivia por muito tempo se mantido em animação suspensa e que era preciso que aqueles corpos tivessem vidas ativas e conscientes, como uma pessoa normal.

Estes clones são chamados de agnates e os clientes não sabem que se tratam de pessoas conscientes, pois a estes é feita uma propaganda mostrando agnates como meros corpos mantidos em animação suspensa.

The Island mostra o perigo do domínio tecnológico sobre a vida humana e como a tecnologia pode ser usada para manipular a mente das pessoas e extrapolar os limites da ética. Os clones se tornaram produtos, objetos desumanizados e destinados ao uso de quem pagou por eles.

The Island, por fim, merece seu lugar na galeria de distopias cyberpunk.

Scarlett Johansson; The Island (2005)
Um momento para apreciar a beleza da Scarlett.

Scarlett Johansson; The Island (2005)

Palavras-chave:

Como um coco me despertou uma memória da infância

Água de coco

A memória tem um complexo sistema de hiperlinks. Um pequeno detalhe pode levar a lembranças distantes. Sons, cheiros, cores, lugares, tudo ativa nossa memória¹. Eu estava descascando um coco e, quando fiz o furo para tirar a água, tive um curioso hiperlink para o passado. Primeiro, porém, preciso preparar² o contexto.

A rua onde morei na infância era bem heterogênea, típica de um bairro de cidade pequena que foi sendo ocupado sem muito planejamento. Pessoas de diferentes classes sociais se distribuíam pelas casas, de modo que tinha umas casinhas pequenas intercaladas com outras maiores e tinha uma em especial que era bem diferente, era como uma pequena chácara, plantada ali em meio a casas urbanas normais.

Para minha impressão infantil, parecia uma chácara grande, mas hoje estimo que devia ter uns 50x50 metros. O curioso era a forma como esta área foi aproveitada. A casa ficava nos fundos, deixando espaço para um terreno com altos coqueiros e tinha até um galinheiro.

Nunca vi o dono da casa, mas ele claramente tinha gosto por coisas rústicas e da selva. Uma vez que entrei lá pude ver a decoração com estatuetas de madeira e até animais empalhados e couros peludos de vaca.

Não tinha crianças, mas havia um rapaz jovem-adulto que creio seria o filho do dono. Frequentei aquela casa algumas vezes graças a um menino da minha idade que lá trabalhava como faz-tudo, uma ocupação comum dos moleques daqueles tempos. Eu nunca soube o nome do garoto, pois todos o conhecíamos pelo apelido: Buda.

É, parece um apelido bem místico e tal, mas na verdade a sua origem é outra. Foi uma época em que os tokusatsus eram a grande atração da TV infantil. A época do Jaspion, do Jiraiya (não aquele do Naruto) e tinha o grupo Changeman, grande precursor dos Power Rangers.

Buba, Shima; Changeman (1985-1986)
Buba e Shima.

Acontece que em Changeman tinha dois vilões, Buba e Shima, e seus nomes inspiraram dois irmãos na vizinhança que passaram a adotar os apelidos de Buda e Shimba, com a pronúncia errada mesmo.

Fiquei amigo de Buda, mas o Shimba me assustava. Uma vez ele meteu as mãos em cal e correu atrás de mim fingindo que era o Freddy Krueger (outra atração da TV na época). Na minha imaginação de criança de 6-7 anos, aquelas mãos caiadas pareciam mesmo garras.

Calma que estamos chegando à memória do coco.

Voltando àquela pequena chácara, uma vez haviam tirado uns cocos e o rapaz, supostamente o filho do dono, abriu um coco com um facão. Ele cortou a tampinha do coco para expor a água e nesse momento Buda estendeu a mão pra pegar a tampinha a fim de roer a carne, mas o rapaz meteu uma bronca, gritando rabugento: "Tira o dedo, Buda!".

Foi curioso então que agora, décadas depois, assim que eu abri a tampinha do coco, me veio a memória desta cena e o rapaz reclamando "Tira o dedo, Buda!".

Notas:


2: Uma aliteraçãozinha em "p".