O Twitter já foi comparado à praça pública da internet, o lugar onde as pessoas vão pra fofocar, opinar, dar um show, se divertir ou julgar umas às outras. Não à toa ganhou fama de ser a rede social onde floresceu a "cultura do cancelamento".
Basicamente, a cultura do cancelamento é um fenômeno de rage coletivo, de linchamento virtual, quando pessoas se juntam para criticar, protestar e fazer julgamentos (muitas das vezes equivocados e enviesados). Não que isto seja algo novo na história humana, pois já nos Evangelhos Jesus falava sobre os fariseus e seu então conhecido hábito de julgar: "Não julguem, para que vocês não sejam julgados. Pois da mesma forma que julgarem, vocês serão julgados" (Mateus 7:1-2).
O motivo porque as pessoas se engajam em linchamentos coletivos pode variar. Algumas pessoas são influenciadas pela massa. Ao verem que muita gente se engajou em determinada situação, acabam se juntando ao coro sem se dar ao trabalho de analisar os fatos. Há gente que está projetando sentimentos. Pessoas com algum tipo de ressentimento, geralmente familiar, podem encontrar um alvo no linchamento coletivo em que possam extravasar esta raiva reprimida.
Há a chamada sinalização de virtude, uma atitude que também tem paralelo no milenar exemplo dos fariseus. Sinalizar virtude é tentar exibir para a sociedade o quão bom e correto você é, seja fazendo boas ações (e fazendo questão de divulgá-las para todos) ou julgando os outros, pois, quando você critica e condena os erros de alguém, se coloca numa posição de superioridade moral. Há esta mensagem tácita: "Eu julgo porque sou uma pessoa correta, mais esclarecida, mais evoluída e portanto melhor que aquela que estou julgando".
Anyway, hoje aconteceu um exemplo de como funciona esta reação irracional de linchamento, quando a NASA postou ingenuamente a foto de um pedaço de manta térmica que a sonda Perseverance encontrou em Marte. Ou seja, em suas andanças pelo planeta, a sonda se deparou com lixo espacial deixado pela própria NASA quando pousou a sonda em 2021.
Aí pronto. O tuíte recebeu um monte de respostas de gente reclamando. "Não basta poluir a Terra, também vamos poluir Marte", "A humanidade polui todo lugar em que chega", etc.
Ora, convenhamos, Marte é um planeta deserto. É possível que tenha experimentado condições melhores no passado, com uma atmosfera mais densa, temperaturas mais apropriadas à vida e um campo magnético mais forte para resistir à radiação solar. Hoje Marte não tem nada disso. Até o deserto mais árido da Terra tem mais vida que Marte. Logo, largar uma manta térmica neste planeta inóspito não representa ameaça a um ecossistema, não afeta nenhum equilíbrio biológico, não incomoda ninguém.
Além disso, a fúria dos canceladores diante desta foto revela a sua noção simplista de como funciona a exploração espacial. Desde a década de 60 até hoje já foram enviadas algumas dezenas de sondas. O que acontece com o foguete que carregou a sonda? Ele cai no planeta. O que acontece com as sondas terrestres desativadas? Ela permanecem no solo, destinadas a serem soterradas pela poeira. Já existe muita lata velha em Marte e isto representa zero ameaça ao praticamente inexistente ecossistema marciano.
A própria noção de Marte como um planeta puro e límpido que só agora vem sendo poluído pelos humanos é boba. Marte está frequentemente sendo bombardeado por meteoritos, recebendo minérios e metais vindos dos confins do sistema solar ou até mesmo fragmentos de cometas que vieram de fora do sistema solar. Este material estrangeiro não é tecnicamente um poluente, já que não faz parte da "fórmula original" do planeta?
Existe algo de supersticioso nesta visão do universo como um ambiente estéril e intocado e que deve ser preservado assim, livre do toque humano. Há também algo de misantropo, pois o humano é visto como um patógeno sendo ideal manter os planetas limpos de sua presença, como uma mesa lustrada com desinfetante.
Se as pessoas que se incomodaram com o lixo espacial em Marte olhassem para si mesmas, veriam como elas próprias, no simples fato de existir, de respirar, de comer e excretar, estão constantemente, segundo a segundo, "poluindo" o ambiente à sua volta. A existência implica em interações com o meio, em trocas e transformações. É assim não só com humanos, mas com qualquer criatura ou coisa.
Obviamente, faz parte do amadurecimento da civilização calcular e minimizar os danos que sua existência pode causar ao ambiente. Acontece que, em se tratando de Marte, os danos da exploração espacial são ínfimos, pra não dizer inexistentes.
Na verdade, estes planetas inabitados que são nossos vizinhos no sistema solar são candidatos perfeitos para se tornarem o lixão da Terra, por mais rude que isso possa soar. Marte nem tanto, uma vez que é um candidato para a formação de colônias (o que não significa que um dia será uma nova Terra, como falei em outro post¹), mas Vênus, por exemplo, que é um inferno de gases tóxicos e incandescentes, seria um lugar interessante para acolher nosso lixo nuclear.
Eis uma coisa que irá beneficiar o ecossistema terrestre e consequentemente a própria vida humana: num futuro não muito distante, podemos enviar para Vênus o tipo de lixo danoso à biosfera terrestre, como os dejetos radioativos. Quando isto acontecer, é bem provável que haverá gente reclamando e postando hashtags #SalvemVênus.
A exploração de Marte é um projeto com benefícios a longo prazo, benefícios para a civilização humana e mesmo para a Terra e a vida no sistema solar. Os dejetos tecnológicos deixados naquele planeta são um preço irrisório diante dos benefícios da pesquisa científica.
A grande hipocrisia do farisaísmo reside no fato de que o fariseu aponta no outro erros que ele próprio comete e até mesmo faz pior. Todas as pessoas que reclamaram de um pedaço de manta térmica em Marte produzem todos os dias muito mais lixo que vai parar na natureza.
Mas enfim, protestar por uma causa vazia é apenas mais um dia comum no Twitter.
Notas:
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