Existe no imaginário popular um certo fascínio por casais de criminosos, não uma dupla, mas um casal¹. Dois amantes que são parceiros no crime. O encanto provavelmente está no fato de que é preciso muita cumplicidade e confiança mútua para que duas pessoas tenham uma relação de parceria no crime (afinal, um é o potencial delator do outro) e esta cumplicidade torna o romance ainda mais intenso.
Além disto, a condição de foras da lei faz com que o casal seja um símbolo da forte união entre duas pessoas. Sendo inimigos públicos, eles têm apenas um ao outro. São os dois contra o mundo, o que é basicamente o modelo Romeu e Julieta, com o aspecto da rebeldia extrapolado.
No caso de Romeu e Julieta, a rebeldia é inocente e consiste apenas em dois jovens que desobedecem as proibições de seus pais que não os querem juntos. Aí temos em Bonnie e Clyde uma versão mais anti-heroica, mais violenta, em que a rebeldia do casal se volta contra toda a sociedade e regras fundamentais da convivência, pois são assassinos.
Bonnie e Clyde se tornaram um ícone no século XX, um século fascinado pelo horror e que viveu o horror intensamente. Até no Brasil esta egrégora teve um exemplo curioso em Lampião e Maria Bonita. Assim como Bonnie e Clyde, eles viraram celebridades, ao mesmo tempo temidos e idolatrados.
Entre os muitos exemplos de casais criminosos no cinema, temos um bem marcante em Natural Born Killers (1994), um filme que tem roteiro de ninguém menos que o sanguinolento Tarantino, com direção do premiado Oliver Stone.
Os protagonistas, Mickey (Woody Harrelson) e Mallory (Juliette Lewis), são duas pessoas ao mesmo tempo perturbadas e apaixonadas que descobrem sua "vocação" para o assassinato em massa. Este casal de psicopatas acaba caindo nas graças da opinião pública, virando verdadeiros ídolos e é aí que o filme se assume como uma sátira, parodiando justamente este fenômeno da admiração por assassinos que virou moda no século XX.
Esta sátira fica ainda mais explícita na figura do repórter Wayne Gale, interpretado pelo jovem Robert Downey Jr.. Wayne é um jornalista inescrupuloso que quer explorar ao máximo a imagem de Mickey e Mallory. Ele é a clara representação do sensacionalismo da mídia.
Mickey e Mallory não são per se uma dupla muito interessante. O discurso de Mickey, descrevendo a si mesmo como uma espécie superior que, portanto, tem o direito natural de tratar outros humanos como presas, é um grande clichê da ficção de serial killers.
A cumplicidade e o apego dos dois é um romance de certa forma fofo, ainda que macabro, mas o que encanta mesmo no filme é o seu estilo narrativo, com alguns momentos bem psicodélicos, ilustrando a maneira perturbada deles enxergarem o mundo e o estado alterado de consciência quando estão sobre efeito de drogas ou quando são picados por cobras e encontram um misterioso xamã.
Em algumas cenas, a filmagem é intercalada com animações, o que torna a experiência cinematográfica ainda mais surreal. Quando Mickey e Mallory se casam no meio de uma ponte, numa cerimônia por eles mesmos improvisada, eles fazem um pacto de sangue e vemos, na forma de animação, que suas gotas de sangue se entrelaçam como duas serpentes. As serpentes são um símbolo frequente no longa, representando naturalmente o pecado e maldade que está na essência não só do casal, mas de todos os humanos.
Notas:
1: Esse modelo "Bonnie e Clyde" originalmente tinha a ver com um casal romântico envolvido na cumplicidade do crime, mas creio que ele já evoluiu para qualquer parceria masculino-feminina em que há algum laço afetivo, diferenciando-os de uma tradicional dupla de bandidos que são apenas "colegas de profissão". É também o caso, portanto, de Léon e Mathilda em O Profissional (1994), que têm uma espécie de relação pai e filha.
Palavras-chave:
Bonnie e Clyde, Juliette Lewis, Oliver Stone, Quentin Tarantino, Robert Downey Jr., Romeu e Julieta, Shakespeare, Warner, Woody Harrelson
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