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Pornografia, processos e Primeira Emenda em O Povo contra Larry Flynt

The People vs. Larry Flynt (1996)

Em 2021 faleceu o editor Larry Flynt, criador da revista Hustler, que por décadas tem sido uma concorrente da Playboy e outras do gênero. Flynt, porém, se destacou por causa dos processos em que se envolveu, sua vida conturbada e a maneira como ele curiosamente se tornou um grande ícone da liberdade de expressão.

Flynt teve uma infância pobre. Sua irmã Judy morreu de leucemia aos quatro anos, seus pais se divorciaram, ele cresceu ora morando com a mãe, ora com a avó. Ele conseguiu algum dinheiro servindo nas forças armadas até os 22 anos, quando então pegou os 1800 dólares que havia juntado e comprou o velho bar de sua mãe.

Desde cedo ele mostrou talento para empreendimento, pois logo comprou outros dois bares. Aos 26 anos, com ajuda de seu irmão Jimmy e sua namorada Althea, começou um negócio de clubes com dançarinas nuas, abrindo filiais em seis cidades e chegando a faturar até 500 mil dólares por ano. O nome de sua franquia era Hustler Club, que depois se tornaria o nome da polêmica revista.

Em 1972, quando estava ainda com 29 anos, Flynt lançou a revista Hustler que a princípio era apenas um panfleto para divulgar seu clube. O panfletinho de 2 páginas com fotos de dançarinas se tornou um sucesso e coincidiu que em 1973 a recessão caiu sobre a economia americana por causa da crise do petróleo. Os clubes sofreram uma grande queda da arrecadação e Flynt teve de se reinventar. 

Woody Harrelson, Courtney Love; The People vs. Larry Flynt (1996)

A esta altura a revista Hustler já tinha 32 páginas e se tornou o principal negócio de Flynt. Em 1974 ele relançou a revista, agora totalmente dedicada a conteúdo erótico. Havia uma diferença entre a Hustler e outras revistas do gênero, pois Flynt fez questão de expor fotos bem explícitas, sem todo o enfeite artístico que as outras revistas costumavam usar para dar um ar menos pornográfico às fotos. 

Este conteúdo mais "vulgar" tornou a revista Hustler mais conhecida e também alvo de críticas da grande parcela mais religiosa e conservadora da população. Aí Flynt começou a enfrentar processos, acusado de obscenidade, mas o pior ataque veio de um serial killer fanático racista, Joseph Paul Franklin, que o acertou com um tiro, bem como ao seu advogado. Desde então, Flynt viveria em uma cadeira de rodas pelo resto de sua vida. 

Franklin é um capítulo à parte na história de Larry Flynt. O maluco matava negros e judeus e atirou em Flynt por causa de uma foto da revista em que havia um casal interracial. Flynt suspeitava que Franklin foi usado por políticos e religiosos conservadores que se opunham fortemente à revista e também suspeitava que Franklin podia ser um fantoche criado pelo programa MKULTRA.

Courtney Love; The People vs. Larry Flynt (1996)

Flynt casou cedo, primeiro aos 19 anos, em 1961, depois em 1966, 1970 e sua quarta esposa foi Althea, que teve uma presença muito marcante em sua vida e com quem viveu por dez anos. Althea, porém, tinha uma vida de drogas e orgias, assim como Flynt, e acabou ficando com a saúde física e mental bastante debilitada, inclusive contraindo AIDS. Por fim, ela morreu afogada na banheira em 1987.

A última esposa de Flynt foi Elizabeth, com quem se casou em 1998 e seguiram juntos até 2021, quando ele faleceu. Flynt teve quatro filhas e um filho, além de vários netos.

Entre os vários eventos pitorescos da vida dele, teve o breve período em que ele se tornou evangélico, convertido após conversas com a evangelista Ruth Carter, irmã do presidente Jimmy Carter. Mesmo convertido e falando em Deus a todo momento, ele continuou publicando a revista de pornografia. Este período de fé, porém, não durou muito, após o qual ele passou a se declarar ateu.

O cara era debochado, não tinha papas na língua e não parecia termer autoridade alguma. Não à toa se envolveu em diversos processos, onde demonstrava desrespeito ao juiz e à corte. Em certa ocasião ele gritou no tribunal "Fuck this court!" e chamou os juízes da Suprema Corte de "nothing but eight assholes and a token cunt". É, ele teve a ousadia de xingar os poderosos juízes da Suprema Corte!

Em 1983, ele vazou um vídeo do FBI que mostra um agente ameaçando matar a filha do empresário automobilístico John DeLorean. Por causa do vazamento, Flynt foi chamado à corte para se explicar. Ele compareceu vestindo uma fralda com as cores da bandeira dos EUA, o que lhe rendeu uma prisão de seis meses por crime de profanação à bandeira.

E ele se meteu em várias outras encrencas, na maioria das vezes acusado de obscenidade. No filme The People vs. Larry Flynt (1996), vemos o desenrolar de sua batalha judicial e a sua vida particular de sucesso e tragédia. Flynt foi interpretado por Woody Harrelson, seu advogado foi o jovem Edward Norton e a bela e vida-louca Courtney Love interpretou sua esposa Althea.

Curiosamente, o próprio Larry Flynt fez um cameo no filme, interpretando um dos juízes que o condenou, o que é uma espécie de zombaria irônica.

Larry Flynt

A verdade é que o filme ameniza bastante os fatos sobre Larry Flynt. Os escândalos na sua vida não se resumem à pornografia da revista e ao seu comportamento irreverente diante dos oficiais de justiça, políticos e religiosos. Em 1998, Sua filha Tonya publicou o livro Hustled: My Journey from Fear to Faith, em que ela o acusa de tê-la abusado sexualmente na infância. 

A história destes magnatas da indústria pornográfica de fato é cheia de relatos sinistros. O filme de 1996 resolveu aproveitar a melhor parte da vida deste controverso sujeito, focando em sua batalha judicial pelo direito à livre-expressão. 

A Hustle é uma revista obscena, segundo o julgamento do senso comum, mas censurar esta revista seria uma ataque à clássica Primeira Emenda, que constitui um dos fundamentos da civilização americana. Sobre isto Flynt disse: "If the First Amendment will protect a scumbag like me then it will protect all of you, because I'm the worst".

A história das sociedades humanas é feita de uma constante batalha entre forças antagônicas. Flynt fez parte daqueles que levaram adiante a revolução sexual iniciada nos anos 60, que veio como uma força antagônica para balancear a sociedade americana fortemente controlada pelo conservadorismo religioso. 

Não cabe a mim aqui fazer um julgamento dos lados. O mundo estaria melhor sem a revolução sexual ou teria alcançado um grau tirânico de repressão social e moralismo? O mundo hoje perdeu a medida da liberação sexual e está se degradando na falta de limites? Julgue o leitor. O fato é que este conflito de forças sempre existirá ou pelo menos sempre deve existir em uma sociedade minimamente livre.  

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