Qaligrafia
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Guerra mundial, pandemia e patinação em Black Crab

Svart Krabba (2022)

Caranguejo Negro (Svart Krabba, 2022) é um filme apocalíptico sueco que coincidentemente e convenientemente aborda dois temas em alta estes dias: uma guerra mundial e o extermínio da humanidade por meio de um vírus fabricado em laboratório.

Os detalhes da guerra são bem vagos. Apenas vemos que existem dois lados e acompanhamos o lado em que a protagonista Caroline Edh é recrutada para uma missão crucial. Ela e outros cinco soldados devem atravessar um arquipélago congelado para levar uma arma secreta que promete acabar de vez com a guerra.

Este plot cria umas cenas bem interessantes de ação no gelo, pois os soldados precisam se mover patinando. É uma missão suicida e eles vão sendo abatidos um a um, mas Edh e outro soldado, Nylund, ainda conseguem chegar ao final e entregar a cápsula. 

Acontece que eles já tinham descoberto que a cápsula continha uma arma biológica. Nylund pretendia destruir a cápsula, sabendo que aquele troço poderia provocar um genocídio global. Edh seguiu obedecendo cegamente a missão porque prometeram que ela encontraria sua filha, outrora raptada, que estava esperando na base militar.

No fim, após entregar a cápsula, Edh é informada que a história da filha foi só pra motivá-la e que ela não está ali. Só então ela abriu os olhos e, junto com o Nylund, se infiltrou na base para destruir o vírus. Enfim, a moral da história é: não confie cegamente em autoridades, ainda mais em um momento de crise.

O filme não é assim um filmããão. É um thriller genérico de guerra mundial, mas a história é bem contada. No fim, Edh se explode com uma granada, explodindo junto a cápsula do vírus, e vemos uma cena interessante em que Edh mergulha no gelo e abraça sua filha. Ou seja, subentende-se que ali as almas de ambas, mãe e filha, se encontraram. 

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Will Smith espanca Chris Rock no Oscar... ou mais ou menos isso

Will Smith vs Chris Rock

O Oscar é uma cerimônia feita por atores para premiar atores e outros profissionais do cinema. É de se esperar que os atores continuem atuando ali, seja na maneira como reagem a uma premiação ou durante um discurso. Normalmente são atuações assim, de leve, só para tornar o evento mais fotogênico. Este ano, resolveram surpreender.

Durante a apresentação, o comediante Chris Rock fez uma piadota para a Jada Smith, dizendo que espera vê-la em G.I. Jane 2. G. I. Jane foi um filme bem marcante nos anos 90 em que a personagem da Demi Moore se esforça para ser aceita como militar, tendo de suportar humilhações e o descrédito pelo fato de ser mulher em um meio majoritariamente masculino. A atriz até raspou a cabeça para o papel e é aí que entra a piada do Chris Rock.

G. I. Jane (1996)

A Jada Smith compareceu na cerimônia com a cabeça raspada, isto porque ela está sofrendo de alopecia, uma condição que provoca focos de calvície na cabeça e pode até se tornar calvície completa. Eu já tive alopecia nos tempos de faculdade e sei bem como é uma situação bem constrangedora. Por cerca de seis meses eu só saía de casa com boné. Ia para a faculdade à noite e ficava de boné o tempo inteiro, o que causava estranheza nas pessoas, mas eu ainda preferia isto do que o desconforto de ficar com a careca à mostra.

No começo, a alopecia aparece como um "caminho de rato", uma calvície localizada. No meu caso era como um círculo. Isto é o bastante para causar muito constrangimento, pois é óbvio que as pessoas vão notar aquele buraco no meio do seu cabelo. Por isto é comum pessoas com alopecia rasparem completamente a cabeça, para pelo menos igualar toda a área. Eu fiz isto também. 

Depois tentei outra estratégia, deixando crescer o cabelo e penteando por cima da parte calva, mas não resolveu muito. Felizmente, após uns meses a alopecia sumiu. Muitas pessoas que passam por isso sentem o receio de que será algo pra vida toda, mas na maioria dos casos é de fato temporário, pois tem a ver com stress, problemas emocionais ou até pode ter relação com alguma doença. Algum tempo depois eu tive um linfoma, um câncer autoimune, de modo que a alopecia pode ter sido o primeiro alerta.

Alopecia
Momento de auto exposição aqui, mostrando minha alopecia.

Dito isto, eu sei bem como o Chris Rock fez uma piada pesada. Só que estamos tratando de Hollywood, de atores, e eu duvido muito que toda a cena tenha sido uma grande surpresa para os envolvidos. No mundo artístico existem muitas piadas internas, os atores se caçoam mesmo, ainda mais nos Estados Unidos, onde existe esta cultura da comédia livre. 

Basta ver uns filmes e assistir alguns stand-ups para perceber como é algo comum o deboche com a aparência das pessoas, mesmo que seja por causa de uma doença. Esta cultura ultimamente tem sido contrabalanceada pelo politicamente correto que considera tais brincadeiras uma forma de bullying e é aí que entra esta situação do Oscar.

Will Smith vs Chris Rock; Oscar 2022

Não creio que a Jada e o Will Smith ficaram de fato tão ofendidos quanto demonstraram. Primeiro, após o Chris fazer sua piada, vemos que o Will Smith deu uma boa gargalhada. Nem foi um risinho de educação, ele gargalhou mesmo, entrou na brincadeira. 

Logo depois ele subiu no palco e foi na direção do Chris que não parecia nada surpreso com isto. Ele atuou estar surpreso, mas a linguagem corporal da surpresa numa situação dessas obviamente envolveria o Chris recuando o corpo, seja dando um passinho para trás, ou inclinando o tronco. Em vez disso ele fez justamente o contrário. Enquanto o Will Smith caminhava na direção dele, ele deu um passinho para a frente e inclinou a cabeça, com os braços atrás das costas. Ou seja, ele estava dando a cara a tapa. Ele esperava por isso.

Will Smith vs Chris Rock; Oscar 2022

Aí o Will Smith bateu nele. Vi pela internet notícias como "Will Smith deu um soco no Chris Rock", "Will Smith deu um tapa na cara do Chris Rock", só que não aconteceu nada disso. Ele bateu no peito do Chris Rock e convenientemente na região em que fica o microfone, preso em seu terno. Assim, a pancada produziu um barulho ao bater no microfone, tornando a cena mais cinematográfica. Esta cena toda foi um sketch combinado entre os atores.

Depois do tapa, o Will Smith volta segurando o riso, então encarna mais uma vez o ator, gritando furioso com o Chris Rock, interpretando o marido machão que está defendendo a honra da sua esposa. 

Toda esta cena foi genial. Por um lado, a piada pesada do Chris Rock agradou quem curte a zoeira sem limites; a reação viril do Will Smith agradou os admiradores do cavalheirismo e do "homão da porra" que defende a esposa com os punhos, ao mesmo tempo em que foi uma crítica à piada, uma crítica tácita, sem necessidade de discurso. Desta forma, também os adeptos do politicamente correto foram representados na cena. Em vez de fazer um discurso moralista sobre ser errado zombar da careca de uma pessoa, a cena passou a mensagem em uma situação prática.

Desta forma, em uma cena conseguiram chamar atenção de várias parcelas do público, pois cada pessoa interpretou a situação da maneira que lhe foi mais interessante. Uns gostaram da zoeira, outros da virilidade e cavalheirismo do Will Smith, outros da mensagem implícita de que a piada passou do limite. 

Esta é uma situação aberta a tantas interpretações que é a fórmula perfeita para a polêmica e polêmica significa publicidade, dar o que falar, bafafá, a coqueluche do momento. 

Houve quem reclamasse também da atitude do Will Smith, alegando que violência nunca é justificada. Convenhamos que ele deu mais um tapa com luva de pelica do que de fato um golpe que pudesse machucar o Chris. Eu diria que foi mais um gesto simbólico do que concreto. De toda forma, há quem abomine até mesmo isto.

Outros disseram que a postura do Will Smith foi machista, patriarcalista, o homem batendo em outro homem por causa de sua mulher, etc. É aquela coisa, um mesmo gesto pode ser considerado cavalheirismo ou machismo, dependendo de como se interpreta. Enfim, as opiniões do público foram bastante divididas e o resultado foi a publicidade. E o Oscar está precisando disso, pois ano a ano a audiência só cai.

Não à toa, no fim de toda esta cena, o Chris Rock concluiu: "That was the greatest night in the history of television". Ou seja, o objetivo foi alcançado, conseguiram tornar o Oscar um trend, um evento que virou alvo de comentários por todo o dia seguinte. 

Oscar é sobre isso, é sobre atuação, oferecer um show para as pessoas mesmo na vida real, mesmo num evento que teoricamente não é um filme. Para Hollywood, não existe esta divisão entre atuar dentro ou fora de um filme. A quarta parede está sempre quebrada nesta indústria.

The Truman Show (1998)

Edição em 08,04,22:

É, agora dez dias depois, a Academia anunciou o banimento do Will Smith de todos os eventos do Oscar por dez anos. Esta medida bastante desproporcional claramente só foi tomada porque o tapa aconteceu em pleno evento do Oscar, pois a Academia foi bem mais condescendente com outros artistas que viveram escândalos muito mais graves. 

A princípio achei que toda a cena foi combinada, mas agora convenhamos que as consequências exageradas parecem indicar que o Will Smith realmente agiu por conta própria e por impulso. Todavia, em se tratando de Hollywood, nunca descarto a possibilidade da encenação, até mesmo nas consequências fora do evento. 

O Will Smith já vinha vivendo um desgaste por causa dos problemas do casamento e talvez esteja a fim de dar um tempo, aí o próprio banimento foi conveniente com sua necessidade de um período sabático.

Bom, esta é minha tentativa de encontrar mais uma pista de que houve uma encenação, e uma encenação bem caprichada, que foi além da cerimônia. Mas claro que a esta altura não descarto a possibilidade de ter sido mesmo um incidente não planejado. Proposital ou não, a verdade é que o tapa foi a única coisa que fez o Oscar ganhar tanta atenção estes dias, pois esta cerimônia há anos perdeu a sua antiga glória.

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O eu que ainda não sou

Mesmo após tanto explorar meu labirinto, mesmo tendo encontrado, enfrentado e mesmo devorado pelo meu Minotauro, mesmo tendo tantas vezes resolvido o enigma da minha Esfinge e saltado no abismo do meu ser, continuo ainda assim sem me conhecer.

Ou melhor, já me conheço de fato, a ponto de saber que ainda não me tornei quem realmente sou. Até o momento sou apenas um rascunho, uma casca, uma semente a hibernar. Já me conheço o suficiente para saber que ainda não sou eu.

(26,03,2022)

Os aliens querem nos destruir ou nos evoluir?

Giorgio A. Tsoukalos

Nos filmes de ação existe o clichê do assassino que encontra uma pessoa, mas pretende apenas conversar ou fazer algum acordo, então ele diz: "Fique tranquilo, se eu quisesse te matar, você já estaria morto". Pois bem, isto pode ser uma boa analogia para a nossa situação com os aliens.

Os aliens querem nos destruir? Ora, se eles quisessem, já nem estaríamos aqui. Qualquer civilização que tenha dominado a viagem interestelar possui um nível tecnológico tão superior ao nosso que provavelmente tem meios de nos exterminar rapidamente e sem que possamos oferecer qualquer resistência.

Logo, se ainda estamos aqui, podemos chegar a duas conclusões: ou nunca fomos visitados por aliens, ou quaisquer aliens que nos visitaram não tinham interesse em nos destruir. Guerra contra alienígenas é coisa que só funciona nos filmes.

Agora desenvolvamos a segunda conclusão. Digamos que existem aliens de olho em nós. Qual será a intenção deles? Seguindo a mesma lógica de antes, parece pouco provável que eles estejam interessados em explorar os recursos da Terra, pois, se este fosse o objetivo, eles já teriam nos eliminado, de modo a remover um empecilho, como um agricultor que remove um formigueiro do seu terreno.

Para uma civilização que domina a viagem interestelar, recursos não são um problema. Eles podem explorar e colonizar milhares, até milhões de planetas. Se, todavia, eles tivessem escolhido a Terra para este fim, nós já não estaríamos aqui.

O que então poderia motivar os aliens a nos manter vivos e evoluindo enquanto civilização, aparentemente sem interferências que visem impedir nosso progresso? Uma hipótese é que os aliens pretendem nos estudar, assim como um botânico estudaria alguma nova espécie animal que encontrasse na floresta. Para eles pode ser mais interessante simplesmente nos observar do que tentar tomar o planeta ou nos extinguir.

Outra hipótese é que os aliens desejam a nossa evolução. Esta ideia pode ser embasada pela mesma analogia do "se eu quisesse te matar, você já estaria morto". Se os aliens querem apenas nos observar e estudar, mas não querem nos ver evoluir, então eles deveriam operar uma drástica interferência em nossas capacidades cerebrais.

Ora, a humanidade tem poder cerebral suficiente para querer investigar o universo e desenvolver tecnologia espacial que com o tempo nos tornará uma civilização interplanetária. Por que conseguimos chegar neste estágio? Por que já somos capazes de enviar sondas pelo sistema solar e construir telescópios que vasculham as galáxias? Sabendo que este nosso potencial eventualmente nos levará a níveis ainda mais avançados, os aliens poderiam ter cortado nossas asas, limitado a nossa capacidade de tal maneira que sequer seríamos capazes de questionar a existência deles.

Se os aliens não querem nos exterminar, mas também não querem a nossa evolução, eles não teríam permitido que chegássemos no nível em que estamos. Provavelmente teriam nos barrado há alguns milênios, quando começamos a desenvolver tabelas astronômicas e a filosofar sobre o universo. 

Aqui estamos, enviando sondas e já produzimos (e explodimos) bombas nucleares. Nenhuma intervenção radical foi feita. A esta altura, os aliens já teriam nos lobotomizado, já teriam nos resetado geneticamente, nos fazendo voltar ao nível dos neanderthais.

Por que nos deixam continuar? Parece mesmo que querem que continuemos, mas, assim como não intervêm de maneira brusca a fim de nos fazer regredir, também não intervêm para nos fazer evoluir. Se eles quisessem, já estaríamos viajando para outras estrelas, mas talvez, seguindo todo este raciocínio, o princípio da Primeira Diretriz, de Star Trek, seja realmente a postura mais apropriada para seres evoluídos diante de uma civilização como a nossa.

Eles querem nos ver evoluir, mas sem adiantar etapas, passando por todo um curso natural de crises e soluções. Talvez um salto tecnológico gigantesco seja desastroso para nossa civilização no nosso estágio atual de evolução moral, ética e existencial. Seria como dar uma arma de fogo carregada e destravada para uma criança brincar.

Talvez eles nos tratem assim, como um tutor de uma criança, como pais de fato. Eles intervêm de forma sutil, talvez até tenham nos ajudado a evoluir tecnologicamente aqui e ali e também talvez tenham interferido de maneira mais rígida quando viram que estávamos seguindo um curso autodestrutivo.

É assim que pensa a teoria dos alienígenas do passado. Os mitos do dilúvio e de Sodoma e Gomorra, por exemplo, podem dar a entender que a humanidade estava corrompida de tal forma que a melhor solução foi uma catástrofe controlada, algo que resetasse o curso da civilização, permitindo um recomeço. Antes isto do que deixar que toda a civilização se destruísse por conta própria até a extinção. 

O episódio da Torre de Babel dá a entender que a humanidade não estava pronta para um salto tecnológico. A Torre poderia permitir avanços no conhecimento da astronomia e levar a tecnologias destrutivas que a civilização daquela época não tinha maturidade para lidar. Obviamente estou aqui especulando, interpretando certos mitos (que não são apenas bíblicos, mas presentes em diversas culturas) sob a lente da teoria dos ancient aliens.

A questão é: se os aliens nos visitam ou já nos visitaram, o menos provável é que tenham intenção de nos destruir, pois, se tivessem, já teriam feito. Também parece que não pretendem impedir nosso progresso e quem sabe até mesmo queiram nos ajudar de forma discreta a alcançar a maturidade. 

Um dia, então, quando chegarmos em determinado nível, eles podem nos considerar maduros o suficiente para sermos apresentados à comunidade das civilizações adultas. Um dia a humanidade pode ter o seu bar mitzvá cósmico.

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Sobre o Twitter

Couple reading newspaper at breakfast

O Twitter começou como aqueles namorados que ficam rindo de bobagens e conversando sobre amenidades aleatórias. Hoje ele se tornou o casal que fica lendo o jornal durante o café da manhã e se limita a conversar sobre política.

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NASA comemora 5000 exoplanetas descobertos

Exoplanets

Há milênios a humanidade olha para o céu e vê milhares de estrelas. Com o tempo até descobrimos que alguns destes pontos luminosos são planetas aqui pertinho de nós. Todavia, nunca, até o finalzinho do século XX, fomos capazes de descobrir planetas orbitando outros sistemas solares por um motivo simples: eles não emitem uma luminosidade tão intensa quanto as estrelas.

Assim, os chamados exoplanetas ficaram invisíveis aos telescópios por muito tempo. Com o avanço tecnológico, tornou-se possível finalmente detectar planetas a milhares de anos-luz e esta busca incansável chegou a um marco impressionante agora em 2022: já encontramos mais de 5000 planetas!

Se em poucas décadas e com nossos limitados recursos já conseguimos descobrir alguns milhares de planetas, uma minúscula amostra do universo, imagina quantos mundos devem existir, mundos que ainda não somos capazes de ver. Milhões, bilhões, trilhões de planetas viajam na imensidão do universo e nós mal começamos a avistar esta comunidade cósmica.

Searching exoplanets

1917, uma obra-prima de técnica e narrativa cinematográfica

1917 (2019)

1917 (2019)
A única coisa paia no filme foi este poster.

Dá-se muito o mérito da impressionante filmagem aparentemente sem cortes de 1917 (2019) ao trabalho de edição. A edição deste filme é primorosa, com certeza, mas a verdade é que são usados truques bem simples para dar a impressão de plano-sequência. 

Por exemplo, logo na primeira cena, acompanhamos a dupla de soldados caminhando pela trincheira e, após cerca de 3 minutos, uns soldados passam na frente deles carregando uma caixa que cobre toda a tela. É o momento ideal para fazer um corte de cena. Quando a caixa desobstrui a tela, a caminhada dos dois continua e eles entram numa toca para encontrar o general. Quando saem da toca, a tela fica preta por um momento, quando estão passando pela cortina. Eis outra oportunidade para um corte. 

Estes dois exemplos já bastam para mostrar como é possível, com truques simples, ir montando cenas que foram gravadas em takes diferentes a cada 3 ou 5 minutos. Estas cenas, porém, não seriam possíveis se não fosse a ampla e detalhista composição do cenário. É o imenso cenário que possibilita a construção do plano-sequência. 

1917 (2019)

Normalmente os cenários de filmes são feitos de vários sets construídos em locais diferentes. O set pode ser uma pequena sala para uma cena indoor, um galpão para um cenário maior ou um campo aberto para algo ainda mais amplo. Pode ser uma rua em uma cidade, de modo que a produção solicita à prefeitura permissão para interditar alguns quarteirões e assim colocar os atores e figurantes para gravar ali. 

Logo, os cenários são picotados, distribuídos em sets diferentes e é a edição que irá criar um link entre as cenas. No caso de 1917, quase não existem sets separados, mas apenas um gigantesco set no qual os protagonistas vão se movendo acompanhados pela câmera. É este formidável cenário que permitiu a criação de um plano-sequência tão elaborado.

O set começa nas proximidades de uma trincheira, com os dois soltados cochilando. Eles acordam e caminham até a trincheira, passam por ela até a toca do general, saem e seguem dobrando as esquinas da trincheira e sobem para um campo devastado, cheio de crateras, árvores queimadas, carcaças de cavalos, corpos de soldados, etc, etc. É a chamada "terra de ninguém" (no man's land), tão emblemática quanto as trincheiras na história da Primeira Guerra.

Benedict Cumberbatch; 1917 (2019)
O Benedict Cumberbatch tem uma rápida aparição como o arrogante Coronel Mackenzie.

E o cenário vai se expandindo à medida em que Schofield, o protagonista, avança. Ele passa por edificações semidestruídas, encontra colegas e inimigos, é levado por um rio e caminha em uma floresta, enfim chegando em outra trincheira onde deve entregar sua mensagem. Até mesmo na floresta vemos o detalhismo da montagem de cenário, pois algumas árvores estão retorcidas.

Isto é algo que o filme faz questão de enfatizar: em toda parte a guerra deixa marcas, o cenário está todo maculado, a natureza danificada intencional ou acidentalmente. Há árvores derrubadas, animais mortos, crateras. 

Além do trabalho de edição e da construção do cenário, também outro elemento importante nesta obra-prima foi a movimentação da câmera. A câmera acompanha o protagonista de forma obsessiva, focada, subindo e descendo, entrando e saindo, dando voltas. Se ele sobe em um caminhão, a câmera sobe junto, se é levado pelo rio, a câmera o acompanha correnteza abaixo. É difícil imaginar como diabos eles conseguiram fazer isto. Drones? Gruas? Guindastes? Trilhos? De  fato usaram de tudo.

1917 (2019)
Além dos atores, a equipe de câmera também teve que correr muito durante as cenas.

A câmera é como um protagonista no filme. Ela está presente como um repórter de guerra a correr junto com os soldados. A mesma câmera ora está na mão de um cameraman, ora é transferida para uma grua ou para um veículo, no esforço contínuo de não perder o protagonista de vista e proporcionando ao público uma impressionante sensação de imersão.

Quanto à história, lembra o clássico evento da batalha de Maratona, quando o soldado Fidípedes foi enviado em busca de ajuda e correu dezenas de quilômetros para cumprir sua missão solitária e quase impossível.

No começo, dois soldados, Blake e Schofield, são enviados numa missão de entregar uma ordem superior para o Coronel Mackenzie a fim de salvar centenas de soldados de uma emboscada alemã. Blake é morto logo no início, de modo que Schofield se torna o Fidípedes, sempre avançando obstinado, superando todo o trauma da guerra e os terrores que presencia a fim de evitar um massacre.

1917 (2019)

A morte de Blake serviu para deixar claro que eles estavam em uma guerra, pois ingenuamente tentaram ajudar um soldado alemão ferido e o sacana puxou uma faca e matou Blake. Guerra é isto. Não há espaço para confiança cega em estranhos. 

No final, após passar por toda essa maratona, Schofield senta-se debaixo de uma árvore, quando enfim pode descansar. Assim o filme termina com uma cena semelhante ao começo, só que agora Schofield está sozinho, enquanto olha as fotos de sua esposa e filhas que o aguardam em casa.

1917 é um filme bastante autoral e até intimista de Sam Mendes. Ele está presente na obra tanto no roteiro quanto na produção e direção, além disso, a história é baseada em um relato de seu avô, Alfred Mendes, que lutou na Primeira Guerra.

O mérito deste brilhante filme deve ser justamente distribuído, pois além do trabalho dedicado de Sam Mendes, também foi importantíssima a participação de Roger Deakins, o diretor de fotografia (que ganhou Oscar por isto), também  Krysty Wilson-Cairns, que foi co-roteirista, Lee Smith, responsável pela edição e Thomas Newman, que compôs a trilha sonora.

1917 (2019)
Na cena mais climática, quando Schofield corre em meio a um bombardeio, a câmera o acompanha em um carro. As explosões não são CGI, mas efeitos práticos.

Casais cúmplices de assassinato em Unfaithful e Deep Water

Ben Affleck, Ana de Armas; Deep Water (2022)

Adrian Lyne andou sumido por um tempão. Ele foi o diretor de grandes sucessos dos anos 80 e 90, como Flashdance (1983), Nine 1/2 Weeks (1986), Fatal Attraction (1987), Indecent Proposal (1993) e Lolita (1997). Em 2002 ele dirigiu Unfaithful e desde então praticamente aposentou-se. Agora, 20 anos depois, ele retorna com Deep Water (2022).

Este filme é baseado em um livro homônimo de 1957, escrito por Patricia Highsmith. Relações amorosas problemáticas parecem mesmo ser o tema preferido do diretor, pois Deep Water parece um remake de Unfaithful: um marido ciumento mata o amante de sua esposa. Só que em Deep Water a coisa vai mais fundo.

Unfaithful (2002)

Em Unfaithful, Edward (Richard Gere) é um pai de família bem pacato e tem uma vida tranquila com sua esposa Connie (Diane Lane), mas aí aparece um cara jovem, bonitão e com o estereótipo de sedutor com sotaque estrangeiro, Paul Martel (Olivier Martinez). 

Paul seduz Connie e vira uma aventura sexual para ela, quebrando a sua rotina de mulher casada. Não era algo que ela normalmente faria e justamente por isso a experiência foi tão excitante, provocando mixed feelings de tesão e culpa.

Edward acaba descobrindo e, muito civilizadamente, ele faz uma visita ao apartamento de Paul, conversa com ele educadamente, mas quando vê um globo de cristal que ele dera de presente para a esposa e ela deu para Paul, ele perde de vez o controle e golpeia Paul na cabeça com o globo, matando-o.

Não foi algo que Edward planejou e a morte de Paul o deixou surpreso e em pânico. Ele ainda pensou em ligar para a polícia, mas resolveu ir adiante neste caminho e se livrar do corpo. É um tanto engraçada a cena dele levando o cadáver enrolado em um tapete. Nervoso e descuidado, ele desova o corpo num lixão. Obviamente, o corpo acaba sendo descoberto por um funcionário do lixão.

Quando chega o momento da verdade e Edward e Connie se confrontam, eles decidem seguir a vida. Edward perdoa a traição de Connie e ela perdoa o assassinato. Resolvem guardar isto tudo como segredo. Este momento trágico e sombrio de suas vidas acabou aumentando o laço do casal por causa da cumplicidade mútua.

Podemos dizer que Edward e Connie eram "pessoas de bem" que num capricho do destino se envolveram em uma situação sombria. Edward cometeu um crime passional, o que, na vida real, de fato seria considerado um atenuante, ainda mais se ele tivesse ligado para a polícia e confessado, explicando que perdeu o controle por causa da emoção, etc. Há muita gente aí pelo mundo que comete este tipo de erro numa situação de estresse.

Ben Affleck, Ana de Armas; Deep Water (2022)

Ben Affleck, Ana de Armas; Deep Water (2022)

Já o Vic (Ben Affleck), de Deep Water, é provavelmente um psicopata. Além dele não ter remorsos ao matar um cara, ele parece pegar gosto pela coisa e se torna um serial killer de amantes da sua esposa. Ele é um cara aparentemente pacato, gosta de pedalar e tem o hobbie de cultivar lesmas. É apaixonado pela esposa Melinda, interpretada pela bela Ana de Armas, mas o seu jeito introvertido e talvez um tanto autista não satisfaz a personalidade aventureira e passional de Melinda.

Melinda não é exatamente uma ninfomaníaca, mas ela claramente é imatura e tem problema em manter um relacionamento saudável, tem o fervor da juventude sempre em busca de emoções e aventuras e fica entediada com o casamento, com o fato de ser mãe. Ela mal dá atenção à filha e frequentemente se embriaga. Para compensar a insatisfação com o casamento, ela se encontra com uns "contatinhos" só por diversão.

Vic realmente gosta dela e também da filha, por quem tem bastante carinho e atenção, e por isso ele tolera as relações extras da esposa, num acorto tácito entre os dois. É, na expressão popular, um corno manso.

Bom, esta mansidão acaba não durando muito e Vic começa a fazer ameaças de morte a um dos amantes de Melinda, aparentemente em tom de brincadeira. Melinda fica assustada com este comportamento dele, mas ao mesmo tempo fica empolgada em conhecer este novo lado do marido, um lado passional. Ela diz que não tem medo dele porque sabe que ele se mostra disposto a matar outras pessoas só por causa dela, o que deve fazê-la se sentir lisongeada e desejada.

Unfaithful (2002) and Deep Water (2022)
Uma rima de filmes com 20 anos de distância: ambos mortos com uma pancada na cabeça.

Só que ela não para com os encontros e Vic não suporta mais a situação e começa a matar os amantes. Um dos casos tem uma curiosa semelhança, ou rima visual, com Infidelidade (Unfaithful), quando Vic acerta uma pedrada na cabeça de um dos amantes, algo parecido com a cena em que o Edward acerta Paul na cabeça com o globo de cristal. é bem parecida a expressão de surpresa e confusão de ambos, enquanto olham para as próprias mãos banhadas com o sangue que escorreu do rosto.

Assim como em Infidelidade, o casal continua junto e decidido a guardar os crimes como um segredo. Melinda no começo até fica chocada ao descobrir um dos assassinatos, mas ela tem um lado sombrio que realmente gosta da psicopatia do marido. De certa forma, a necessidade doentia que ela tinha de atenção e aventura foi preenchida ao saber que o marido matava pessoas por causa de sua paixão por ela. 

Deep Water, portanto, é uma espécie de versão turbinada de Unfaithful, com um casal que passa por uma experiência bem parecida de traição, assassinato e cumplicidade, só que num nível mais hardcore.

Dizemos que um romance é shakespeariano quando o casal passa por uma sina de tragédia a ponto de morrer por amor. Esta duologia de Adrian Lyne eu classificaria como anti-shakespeariana. O amor dos casais não é inocente como de Romeu e Julieta e eles não são mártires de uma tragédia, mas cúmplices de um crime. 

O romance doentio os leva a provocar tragédia na vida de outras pessoas. Ironicamente, enquanto Romeu e Julieta morrem por amor, estes casais de Unfaithful e Deep Water matam por amor e continuam vivos, amaldiçoados pela culpa, mas de certa forma redimidos pela cumplicidade mútua.

Ana de Armas; Deep Water (2022)

Pornografia, processos e Primeira Emenda em O Povo contra Larry Flynt

The People vs. Larry Flynt (1996)

Em 2021 faleceu o editor Larry Flynt, criador da revista Hustler, que por décadas tem sido uma concorrente da Playboy e outras do gênero. Flynt, porém, se destacou por causa dos processos em que se envolveu, sua vida conturbada e a maneira como ele curiosamente se tornou um grande ícone da liberdade de expressão.

Flynt teve uma infância pobre. Sua irmã Judy morreu de leucemia aos quatro anos, seus pais se divorciaram, ele cresceu ora morando com a mãe, ora com a avó. Ele conseguiu algum dinheiro servindo nas forças armadas até os 22 anos, quando então pegou os 1800 dólares que havia juntado e comprou o velho bar de sua mãe.

Desde cedo ele mostrou talento para empreendimento, pois logo comprou outros dois bares. Aos 26 anos, com ajuda de seu irmão Jimmy e sua namorada Althea, começou um negócio de clubes com dançarinas nuas, abrindo filiais em seis cidades e chegando a faturar até 500 mil dólares por ano. O nome de sua franquia era Hustler Club, que depois se tornaria o nome da polêmica revista.

Em 1972, quando estava ainda com 29 anos, Flynt lançou a revista Hustler que a princípio era apenas um panfleto para divulgar seu clube. O panfletinho de 2 páginas com fotos de dançarinas se tornou um sucesso e coincidiu que em 1973 a recessão caiu sobre a economia americana por causa da crise do petróleo. Os clubes sofreram uma grande queda da arrecadação e Flynt teve de se reinventar. 

Woody Harrelson, Courtney Love; The People vs. Larry Flynt (1996)

A esta altura a revista Hustler já tinha 32 páginas e se tornou o principal negócio de Flynt. Em 1974 ele relançou a revista, agora totalmente dedicada a conteúdo erótico. Havia uma diferença entre a Hustler e outras revistas do gênero, pois Flynt fez questão de expor fotos bem explícitas, sem todo o enfeite artístico que as outras revistas costumavam usar para dar um ar menos pornográfico às fotos. 

Este conteúdo mais "vulgar" tornou a revista Hustler mais conhecida e também alvo de críticas da grande parcela mais religiosa e conservadora da população. Aí Flynt começou a enfrentar processos, acusado de obscenidade, mas o pior ataque veio de um serial killer fanático racista, Joseph Paul Franklin, que o acertou com um tiro, bem como ao seu advogado. Desde então, Flynt viveria em uma cadeira de rodas pelo resto de sua vida. 

Franklin é um capítulo à parte na história de Larry Flynt. O maluco matava negros e judeus e atirou em Flynt por causa de uma foto da revista em que havia um casal interracial. Flynt suspeitava que Franklin foi usado por políticos e religiosos conservadores que se opunham fortemente à revista e também suspeitava que Franklin podia ser um fantoche criado pelo programa MKULTRA.

Courtney Love; The People vs. Larry Flynt (1996)

Flynt casou cedo, primeiro aos 19 anos, em 1961, depois em 1966, 1970 e sua quarta esposa foi Althea, que teve uma presença muito marcante em sua vida e com quem viveu por dez anos. Althea, porém, tinha uma vida de drogas e orgias, assim como Flynt, e acabou ficando com a saúde física e mental bastante debilitada, inclusive contraindo AIDS. Por fim, ela morreu afogada na banheira em 1987.

A última esposa de Flynt foi Elizabeth, com quem se casou em 1998 e seguiram juntos até 2021, quando ele faleceu. Flynt teve quatro filhas e um filho, além de vários netos.

Entre os vários eventos pitorescos da vida dele, teve o breve período em que ele se tornou evangélico, convertido após conversas com a evangelista Ruth Carter, irmã do presidente Jimmy Carter. Mesmo convertido e falando em Deus a todo momento, ele continuou publicando a revista de pornografia. Este período de fé, porém, não durou muito, após o qual ele passou a se declarar ateu.

O cara era debochado, não tinha papas na língua e não parecia termer autoridade alguma. Não à toa se envolveu em diversos processos, onde demonstrava desrespeito ao juiz e à corte. Em certa ocasião ele gritou no tribunal "Fuck this court!" e chamou os juízes da Suprema Corte de "nothing but eight assholes and a token cunt". É, ele teve a ousadia de xingar os poderosos juízes da Suprema Corte!

Em 1983, ele vazou um vídeo do FBI que mostra um agente ameaçando matar a filha do empresário automobilístico John DeLorean. Por causa do vazamento, Flynt foi chamado à corte para se explicar. Ele compareceu vestindo uma fralda com as cores da bandeira dos EUA, o que lhe rendeu uma prisão de seis meses por crime de profanação à bandeira.

E ele se meteu em várias outras encrencas, na maioria das vezes acusado de obscenidade. No filme The People vs. Larry Flynt (1996), vemos o desenrolar de sua batalha judicial e a sua vida particular de sucesso e tragédia. Flynt foi interpretado por Woody Harrelson, seu advogado foi o jovem Edward Norton e a bela e vida-louca Courtney Love interpretou sua esposa Althea.

Curiosamente, o próprio Larry Flynt fez um cameo no filme, interpretando um dos juízes que o condenou, o que é uma espécie de zombaria irônica.

Larry Flynt

A verdade é que o filme ameniza bastante os fatos sobre Larry Flynt. Os escândalos na sua vida não se resumem à pornografia da revista e ao seu comportamento irreverente diante dos oficiais de justiça, políticos e religiosos. Em 1998, Sua filha Tonya publicou o livro Hustled: My Journey from Fear to Faith, em que ela o acusa de tê-la abusado sexualmente na infância. 

A história destes magnatas da indústria pornográfica de fato é cheia de relatos sinistros. O filme de 1996 resolveu aproveitar a melhor parte da vida deste controverso sujeito, focando em sua batalha judicial pelo direito à livre-expressão. 

A Hustle é uma revista obscena, segundo o julgamento do senso comum, mas censurar esta revista seria uma ataque à clássica Primeira Emenda, que constitui um dos fundamentos da civilização americana. Sobre isto Flynt disse: "If the First Amendment will protect a scumbag like me then it will protect all of you, because I'm the worst".

A história das sociedades humanas é feita de uma constante batalha entre forças antagônicas. Flynt fez parte daqueles que levaram adiante a revolução sexual iniciada nos anos 60, que veio como uma força antagônica para balancear a sociedade americana fortemente controlada pelo conservadorismo religioso. 

Não cabe a mim aqui fazer um julgamento dos lados. O mundo estaria melhor sem a revolução sexual ou teria alcançado um grau tirânico de repressão social e moralismo? O mundo hoje perdeu a medida da liberação sexual e está se degradando na falta de limites? Julgue o leitor. O fato é que este conflito de forças sempre existirá ou pelo menos sempre deve existir em uma sociedade minimamente livre.  

Narcisismo, o novo mal do século

Narciso by Caravaggio (1594-1596)

O narcisismo é algo facilmente encontrado em governantes, imperadores, políticos em geral, bem como em celebridades e artistas que ficam muito famosos. Não que necessariamente todas estas pessoas sejam narcisistas, mas as narcisistas costumam procurar os ambientes e carreiras que possa satisfazer as suas necessidades de autoglorificação.

Todo mundo tem uma dose de narcisismo, o que não é per si um problema, todavia existe o narcisismo como traço de personalidade, algo profundamente instalado na psique e, neste caso, assemelha-se bastante à psicopatia. 

De fato, há quem diga que o narcisista é nada menos que um psicopata e talvez até o pior tipo, já que ele não tem qualquer empatia pelos outros e enxerga tudo e todos como coisas que ele pode vampirizar para sua própria satisfação.

Eis que a tecnologia tornou o mundo um cenário ideal para as personalidades narcísicas, já que tais pessoas amam a exposição. Privacidade não é algo que interessa a quem vive alimentado pela vaidade, de modo que se exibir, ser visto, ser notado, é tudo o que este tipo de pessoa deseja.

Há pessoas que ficam famosas, mas se mantêm discretas e humildes, não se deixando iludir pelo veneno da fama. Já as narcisistas são fortemente contaminadas e, quando por acaso se tornam famosas, aí é que se perdem de vez.

O narcisista famoso ou pseudofamoso passa a acreditar que é tudo de grandioso que seus fãs projetam nele. Ele se ilude com o status de "formador de opinião", "influencer", e acredita que é mesmo capaz de influenciar a opinião pública, mesmo que não tenha o menor preparo e conteúdo acerca daquilo que se meta a opinar. Ele acredita que a enorme quantidade de seguidores valida a sua autoridade e suas opiniões vagas e mal fundamentadas.

Talvez a forma mais leve e inofensiva de narcisismo seja a vaidade, a vontade de ser visto e admirado por sua aparência. Sempre existiram pessoas assim, mas agora a internet ofereceu um amplo palco para os exibicionistas, onde podem postar selfies e receber elogios. Até aí, convenhamos, não há problema algum.

A coisa piora quando narcisistas querem ir além da admiração estética e tentam ganhar atenção por meio da sinalização de virtude. Não raro narcisistas costumam se tornar santarrões, puritanos ou hiper-religiosos, exibindo sua santidade, sua espiritualidade, o que acaba levando-os ao caminho da hipocrisia, pois ninguém pode ser tão santo quanto afirma. 

O hipócrita desenvolve uma capacidade de mentir para os outros e também para si mesmo, pois ele precisa acreditar na própria ilusão. É aí que a coisa vai ficando perigosa, pois o hipócrita pode prejudicar as pessoas julgando que não está fazendo nada de errado.

Por outro lado, existe o narcisista que, averso à religião, adota um puritanismo em formato mundano. Eis o politicamente correto, o lacrador, o cancelador. Por meio desta postura de constante julgamento dos outros, o narcisista atrai atenção para si. 

Alguns vão admirá-lo, acreditando em seu ilusório modelo de virtude, outros irão odiá-lo por causa de sua hipocrisia ou de seus julgamentos. Em ambos os casos, o narcisista vence, pois para ele o importante é ser o alvo da atenção, seja positiva ou negativa. "Falem bem ou falem mal, mas falem de mim".

O episódio Nosedive, da série Black Mirror, ilustra perfeitamente a condição do narcisista na sociedade moderna. Vivemos em um sistema de crédito social, onde as pessoas ganham pontos, estrelinhas, por meio da aprovação social, de seguir determinadas regras que misturam sinalização de virtude com popularidade e fama. 

É o mundo dos sonhos para o narcisista que vê todo este sistema como um jogo e ele sente-se estimulado a competir por mais pontinhos, mais estrelinhas, mais likes, tendo como fim ser alvo de constante atenção. Atenção é a grande moeda do narcisista.

De Zorro a John Wick, um resuminho dos brucutus e heróis de ação


Clint Eastwood ; The Good, the Bad and the Ugly (1966)

Guy Williams; Zorro (1957)

Na história do cinema, houve diferentes fases e tipos de heróis de ação. Logo no comecinho teve os heróis de "capa e espada", bem como de "bang bang", o famoso western. Dois bons exemplos destes tipos são o Zorro e os personagens do Clint Eastwood.

Aí a influência da guerra fria inspirou os heróis militares e espiões, como James Bond, e os tipos mais futuristas, chegando ao auge da popularidade com os jedi de Star Wars, que curiosamente eram uma versão futurista dos clássicos capa e espada. O jedi é um Zorro do espaço.

Sean Connery; Dr. No (1962)

Charles Bronson; Death Wich 3 (1983)

Um ator que marca a transição do western para os heróis urbanos é o Charles Bronson. Ele teve sua fase western, por exemplo, em Era uma vez no Oeste (1968) e Sete Homens e um Destino (1960) e se tornou bastante popular na pentalogia Desejo de Matar (1974-1994), sendo uma inspiração para outros brucutus com uma pegada mais policial.

Arnold Schwarzenegger; Commando (1985)

Chuck Norris; Braddock (1984)

Eis que, no finalzinho dos anos 70 e especialmente nos anos 80 e 90, reinou a era dos brucutus. Eram os caras fortões, cheios de músculos e armas, resolvendo as coisas no tiro, porrada e bomba. Os atores desta fase ficaram milionários. Aí temos o Stallone, Schwarza, Van Damme, Jet Li, etc. 

Pois bem, foi no Rambo que esta fórmula se consagrou, lá em 1982. É curioso que os tais filmes de brucutu se tornaram famosos pela superficialidade de seus personagens e o absurdo das cenas de ação, com marmanjos cobrindo o corpo de granadas e atirando com metralhadoras nas duas mãos, mas o primeiro Rambo foi bem diferente disto. Rambo era profundo, pode-se dizer que foi um filme cult. 

Sylvester Stallone; Rambo: First Blood II (1985)

Rambo é o primeiro brucutu. Ele é o cara que sozinho dá uma surra em um bando de marmanjos, o exército de um homem só. A cena de fuga em uma moto, perseguido por uma viatura, será bem comum em diversos outros filmes de ação. Escondido na floresta, ele se torna o survivalista, se virando com o que acha no cenário. Fabrica de improviso uma manta de frio com uma lona, usa o cenário da floresta para criar armadilhas contra seus perseguidores, tática repetida em 1987 por Schwarzenegger contra o Predador.

Foi depois de Rambo que veio a versão sci-fi do brucutu, no Terminator (1984) do Schwarza. Chuck Norris seguiu o caminho inverso no tempo e voltou para o passado em Braddock (1985). Braddock é como uma prequel de Rambo, pois conta a história de um soldado ainda nos tempos do Vietnã.

Com estes três, Stallone, Arnold e Chuck Norris, estava criado o gênero de brucutus, produzindo uma grande safra de filmes genéricos de guerra focada no soldado fodão, o exército de um homem só, o brucutu.

A fórmula seguiu recebendo novos ingredientes. Van Damme, em O Grande Dragão Branco (um título bem mais chamativo que a versão original em inglês Bloodsport, 1988), optou por seguir a influência do gênero de ação asiático de artes marciais, especialmente a inspiração de Bruce Lee. 

Nem todo brucutu, porém, era uma montanha de músculos. Foi o caso do já citado Jet Li que, seguindo o modelo do Bruce Lee, era um artista marcial que se destacava não pela força bruta, mas pelo talento na arte da luta. 

Jet Li; Once Upon a Time in China (1991)

Jet Li consolidou o gênero de artes marciais em Hollywood, um gênero que no oriente era bastante popular há décadas e que ganhou alcance mundial com o Bruce Lee. 

Chuck Norris foi outro que conseguiu ser o fodão do cinema de ação sem precisar exibir um corpo gigantesco. Também é o caso do Bruce Willis. Enfim, pra ser brucutu não necessariamente é preciso ser uma montanha de músculos, mas tem que ser durão.

Bruce Willis; Die Hard (1988)

Em Duro de Matar (1988), Bruce Willis encarna o brucutu, mas não como soldado ou artista marcial, e sim um policial das ruas. Ele é o cara que enfrenta sozinho toda uma máfia e "escapa fedendo", mas vivo.

Keanu Reeves; The Matrix (1999)

Em 1999 somos apresentados a um tipo bem peculiar de brucutu, em Matrix. Neo, bem como seus parceiros Morpheus e Trinity, são os rambos do mundo virtual, enfrentando agentes e travando uma guerra contra toda aquela realidade digital. Ora usando "guns, lots of guns", ora lutando kung fu, Neo e os demais são uma mistura de Rambo com Van Damme, em um cenário sci-fi

Tom Cruise, na franquia Missão Impossível, reviveu o gênero de espião (o filme foi baseado na série dos anos 60), mas dando ares de brucutuzice ao personagem. Diferente de um James Bond, que atuava mais com foco em gadgets tecnológicos e seu charme, o Ethan Hunt, embora recorresse muito à tecnologia, se destacava mais pelas suas habilidades atléticas e seu impressionante intelecto. 

Tom Cruise; Mission: Impossible (1996)

Matt Damon; The Bourne Identity (2002)

Assim, o Tom Cruise criou o brucutu gênio. É um cara que tem as habilidades básicas dos brucutus, sabe lutar, usar armas diversas, etc, mas seu forte mesmo é a inteligência fora do comum. Ele consegue memorizar números gigantescos, uma lista inteira de telefones, consegue devendar enigmas, enfim, é quase um Batman.

Já nos anos 2000, surgiu a série de filmes Bourne, começando por Identidade Bourne (2002), depois outros tantos títulos com "Bourne alguma coisa". Jason Bourne, interpretado por Matt Damon, é bem no estilo Ethan Hunt, um cara com uma inteligência fora do normal e que ele direciona em atividades como espionagem e caçada a criminosos.

Tom Cruise; Jack Reacher (2012)

Alan Ritchson; Reacher (2022)

Em 2012, foi a vez do Tom Cruise reviver o tipo de herói brucutu-gênio com o Jack Reacher. Reacher até que é bom de briga, mas não é fortão e em algumas cenas de luta ele vence mais pela malandragem do que pela força. Seu negócio mesmo é o intelecto. 

O segundo filme, Jack Reacher: Never Go Back (2016), investe mais no aspecto emocional do personagem, quando ele conhece uma garota que supostamente é sua filha e com a qual logo desenvolve um laço afetivo, quebrando a sua casca durona e aparentemente sem sentimentos.

Por fim, agora em 2022 o personagem ganhou uma série, mas não interpretada pelo Tom Cruise e sim pelo gigante de 1,88 m Alan Ritchson. Ritchson acabou criando um híbrido de brucutu dos anos 90, alto e fortão, com o brucutu-gênio do tipo do Ethan ou do Bourne. 

Aliás o Reacher da série tem uma mente bem mais afiada que a versão do Tom Cruise. A série segue mais o modelo de programa de investigação criminal, de modo que este Reacher parece uma versão musculosa do Sherlock, da série Elementary. Só que ele não fica só na investigação e deduções brilhantes baseadas em mínimos detalhes. Quando é preciso, este Reacher cai na porrada e manda um monte de gente pro hospital ou pro cemitério.

Há, porém, um detalhe no personagem Reacher (que originalmente surgiu numa série de livros do autor Lee Child) que o torna peculiar: ele é um andarilho. O cara simplesmente não tem casa, nem veículo, nem família, nem mesmo telefone (mas tem uma conta bancária por meio da qual recebe uma pensão, pois ele é um ex-militar).

Reacher anda pelo mundo sem nem mesmo levar uma mochila. Ele literalmente só tem a roupa do corpo e leva uma vida minimalista, viajando de ônibus e hospedando-se em motéis de beira de estrada. É o brucutu mais desapegado de todos.

Broforce (2014)

O gênero de brucutus se tornou um dos mais marcantes e influentes do cinema, oferecendo ao mundo um panteão de memoráveis figuras. O game Broforce (2014) faz uma interessante homenagem a diversos destes personagens, incluindo homens, mulheres, aliens e robôs.

É bom notar que Rambo não foi o "primeiro filme de brucutu" no sentido de ter sido ele o primeiro personagem desse estilo. Ora, anos antes tivemos o Mad Max (1979) ou a Ellen Ripley de Alien (1979). Rambo, porém, consagrou o gênero, se tornou seu grande símbolo e sinônimo.

O gênero de ação desde o início dos anos 2000 foi sendo gradativamente dominado pelos filmes de super-heróis, começando com Blade (1998) e os X-Men (2000) e chegando ao auge em Vingadores Ultimato (2019). 

Assim, os filmes de brucutu foram perdendo espaço, se resumindo a continuações de antigas franquias, como é o caso do próprio Rambo, ou homenagens em tom de paródia, como a série de filmes Os Mercenários, a partir de 2010.

Até que o gênero renasceu. Não mais como o mainstream do cinema de ação, agora ocupado maciçamente pelos super-heróis, mas com um ar mais cult. Eis que surge John Wick (2014).

Keanu Reeves; John Wick 3 - Parabellum (2019)

John Wick traz tudo que os filmes dos anos 80-90 tinham: muitas armas, luta corporal e um cara que sozinho enfrenta o mundo. A isso se acrescenta uma estética visual noir neon, criando uma ambientação para aquele mundo fictício em que as ruas parecem estar cheias de mafiosos disfarçados, vivendo em uma sociedade paralela.

Outro diferencial é que John Wick não é um honorável veterano de guerra ou um homem da lei. Ele é um mafioso aposentado, um matador de aluguel. Não que antes não houve casos semelhantes. Leon, em O Profissional (1994) é um bom exemplo de brucutu que não é exatamente um mocinho.

Diferente de um Reacher, que leva uma vida simples, John Wick é um cara rico, com uma fortuna acumulada após vários serviços prestados à máfia. Ele não é um brucutu fortão e também não é um gênio, mas é um cara focado em apenas uma habilidade: matar. Ninguém mexe com John Wick, pois ele é uma força imparável quando estabelece um alvo.

John Wick não tem lado, não está lutando pela pátria ou por ninguém, nem mesmo está vingando a morte de algum ente querido. Ok, pode-se dizer que ele vinga o cachorrinho, mas a verdade é que ele não vingou o cachorro. O fofo bichinho foi a última lembrança deixada por sua falecida esposa, de modo que, quando mataram o cachorro, despertaram a fúria adormecida do assassino Wick que teve seu luto perturbado. Ele não estava se vingando, mas se irando. John Wick era o demônio adormecido que arde em fúria quando algum aventureiro o desperta de seu sono.

Nisto John Wick se diferencia de todos os outros brucutus. Ele assemelha-se um pouco com Mad Max, no sentido que seu objetivo, sua missão enquanto personagem, é simplesmente sobreviver. Mas até o Mad Max tentou salvar pessoas, praticar atos heroicos, enquanto Wick só queria extravasar a fúria e, depois disso, sobreviver àqueles que tentarão dar o troco.

John Wick é o mais individualista dos brucutus e o menos heroico. Isto não o torna menos honrado, inclusive ele age seguindo certos protocolos da etiqueta da máfia e até demonstra algum tipo de piedade para alguns adversários. Mas no fim das contas, a mensagem que John Wick passa é: não quero fazer inimigos, quero seguir em paz, mas quem se meter no meu caminho eu vou atropelar. Afinal brucutus nunca levam desaforo pra casa.

John Wick foi a grande renascença do filme de ação baseado em armas e pancadaria, uma homenagem aos velhos tempos antes de toda esta pirotecnia de CGI e heróis com superpoderes.

No mesmo ano em que saiu John Wick 3 (2019), também fomos surpreendidos com o retorno de Rambo em Last Blood (2019). Há uma notável semelhança em ambos, pois o Rambo de Last Blood já não é mais um soldado e sim uma força vingativa imparável. 

Nota-se, portanto, que o gênero brucutu está de volta, após alguns anos de dormência. O herói que é o exército de um homem só voltou a brilhar no cinema e agora munido com muito mais qualidade técnica, melhores efeitos práticos e CGI do que as tosqueiras dos anos 90.