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In the Year 2889, um fantástico conto que inspirou um péssimo filme

In the Year 2889 (1969)

O sci-fi do início do século XX era extremamente limitado em recursos visuais e não à toa podemos encontrar muitos filmes toscos e datados, mas não precisa ser assim quando há boas mentes criativas por trás da obra.

Viagem à Lua¹ é um filme de 1902 (isso mesmo, de 1902!) e, apesar de obviamente datado, continua interessante e agradável de assistir. Metrópolis (1927), mais ainda. Até a série clássica de Star Trek (que nos rendeu muitos memes por causa de algumas cenas toscas, como a luta de Kirk contra o cara vestido de lagarto), apesar de limitada em recursos, continua fascinante em termos de sci-fi.

O filme de 1969

E temos esta lástima chamada In the Year 2889 (1969). O título deriva de um conto de mesmo nome escrito por Jules Verne e seu filho Michael Verne (1889). Apesar de inspirar-se no pai do sci-fi da literatura, o filme nada aproveita do livro e desenvolve uma história própria bem mal acabada. 

Após um apocalipse nuclear, um grupo de pessoas consegue sobreviver em uma região relativamente protegida das nuvens radioativas. Todavia, alguns humanos que tiveram contato com a radiação se tornaram mutantes de aparência grotesca e uma ferocidade animal. 

Desta forma o longa se torna quase um slasher movie, mas pega leve na violência e nada realmente assustador acontece. Enfim, ele falha como sci-fi e também falha como terror. É água de salsicha e uma perda de tempo assistir.

In the Year 2889; Jules Verne (1889)

O conto de 1889²

A história não tem exatamente uma trama, antes pretende ser uma espécie de documentário futurista mostrando a rotina de um homem no ano 2889, Fritz Napoleon Smith. Este homem é o CEO de uma empresa chamada Earth Chronicle, que é uma espécie de editora de notícias, porém com um poder de nível global, talvez comparável ao que seria uma fusão das big techs de hoje em dia.

Neste brevíssimo conto, os Vernes fazem previsões avançadíssimas, como a invenção de dois dispositivos chamados "accumulator" e "transformer", que podem absorver e transformar qualquer forma de energia da natureza, tornando-se uma fonte praticamente gratuita de energia infinita.

O conto é utópico, otimista. Há um deleite em descrever as tecnologias e melhorias da sociedade futura. Tem de tudo, inclusive os famosos carros voadores. 

Eles previram também uma espécie de internet feita pela evolução do telefone que então iria além da transmissão de som, para também transmitir imagens. Esta previsão primeiramente se cumpriu cerca de 4 décadas depois do conto, com o surgimento da televisão, mas também foi previsto que este telefone futurista serviria não apenas para enviar imagens, mas para enviar e receber, algo que só com a internet se tornou possível em um nível global.

"Every one is familiar with Fritz Napoleon Smith's system—a system made possible by the enormous development of telephony during the last hundred years. Instead of being printed, the Earth Chronicle is every morning spoken to subscribers, who, in interesting conversations with reporters, statesmen, and scientists, learn the news of the day. Furthermore, each subscriber owns a phonograph, and to this instrument he leaves the task of gathering the news whenever he happens not to be in a mood to listen directly himself. As for purchasers of single copies, they can at a very trifling cost learn all that is in the paper of the day at any of the innumerable phonographs set up nearly everywhere".

"The telephote! Here is another of the great triumphs of science in our time. The transmission of speech is an old story; the transmission of images by means of sensitive mirrors connected by wires is a thing but of yesterday".

É curiosa a perspectiva que eles tinham quanto a melhorias na expectativa de vida, pois o conto diz que neste futuro utópico, graças a aprimoramentos no processamento de alimentos e até uma atmosfera limpa de micróbios patógenos, a vida humana subiu de uma média de 37 para 52 anos.

"Very fortunately for him, thanks to the progress of hygiene, which, abating all the old sources of unhealthfulness, has lifted the mean of human life from 37 up to 52 years, men have stronger constitutions now than heretofore. The discovery of nutritive air is still in the future, but in the meantime men today consume food that is compounded and prepared according to scientific principles, and they breathe an atmosphere freed from the micro-organisms that formerly used to swarm in it; hence they live longer than their forefathers and know nothing of the innumerable diseases of olden times".

Daí vemos como era breve e sofrida a vida das pessoas no século XIX, a ponto de pensarem que viver 52 anos era um avanço formidável. Sobre o conceito de uma atmosfera livre de microrganismos, nota-se uma certa ingenuidade na compreensão que eles tinham sobre saúde e natureza. 

Verne podia ser uma mente brilhante, mas não entendia na época (inclusive muitos ainda hoje não entendem), que a mera existência de micróbios não significa que eles sejam uma ameaça à vida humana. Hoje entendemos bem melhor a importância dos probióticos e o fascinante fato de que o nosso próprio corpo é um vasto ecossistema onde nossas células convivem com trilhões de vírus e bactérias, alguns nocivos, de fato, mas uma boa parte trabalhando em harmonia com nosso organismo. Na verdade, um ser humano criado em um ambiente demasiado esterilizado acabaria por ter um desenvolvimento inferior aos demais, pois não contaria com a importante parceria dos probióticos.

Mas enfim, o conceito de uma atmosfera limpa é de toda forma interessante, no sentido em que seria realmente mais saudável se respirássemos um ar puro e livre de certos agentes tóxicos, agentes estes que têm mais a ver com substâncias químicas, como a fuligem dos carros, do que os micróbios em si.

Há uma curiosa especulação sobre astronomia. No conto, astrônomos estudavam os planetas em busca de vida e de fato havia civilizações vivendo em Marte e Júpiter. Também se fala em um planeta Olympus, que existia além de Netuno. Lembrando que Plutão só seria descoberto em 1930, de modo que coube a Verne especular sobre um possível nono planeta.

Outro conceito bem futurista é o de "publicidade atmosférica", ou seja, anúncios enormes que são projetados nas nuvens como hologramas, tão grandes que podem ser vistos por vários quilômetros. A limitação é que estes anúncios não funcionam em um céu sem nuvens, mas também havia um departamento trabalhando na criação de nuvens artificiais.

"Then, the two men bowing to him, Mr. Smith passed into the next hall, an enormous gallery upward of 3200 feet in length, devoted to atmospheric advertising. Every one has noticed those enormous advertisements reflected from the clouds, so large that they may be seen by the populations of whole cities or even of entire countries".

Sobre as "maravilhas" da guerra, ele previu poderosas tecnologias de destruição, incluindo guerra biológica. Ele só não imaginava que o futuro traria algo como a bomba atômica.

"Is war possible in view of modern inventions—asphyxiating shells capable of being projected a distance of 60 miles, an electric spark of 90 miles, that can at one stroke annihilate a battalion; to say nothing of the plague, the cholera, the yellow fever, that the belligerents might spread among their antagonists mutually, and which would in a few days destroy the greatest armies?"

Várias pesquisas miraculosas estão sendo realizadas, como a possibilidade de transferir uma cidade inteira de um local para outro, manipular as estações do planeta, derreter as calotas polares para criar uma área habitável e, por fim, também há uma pesquisa sobre animação suspensa (hibernação prolongada) de um ser humano.

Enfim, os Vernes parece que se divertiram bastante neste minúsculo conto, fazendo praticamente um brainstorm de conceitos futuristas, imaginando os rumos que a tecnologia tomaria mil anos no futuro. Quão empolgados eles ficariam ao saber que parte destas tecnologias que eles sonharam já se tornou real pouco mais de um século depois.

Notas:



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