Antes de mais nada, devo reiterar aqui o que considero óbvio: este texto não tem qualquer intenção de ofender algum indivíduo ou grupo. Trata-se apenas de um humilde ensaio filosófico, mais precisamente, ontológico. Creio, porém, que pode ser inevitável que pessoas se ofendam com alguns raciocínios aqui desenvolvidos, caso não se encaixem em seus próprios pontos de vista.
Aliás, isto é algo que merece também um comentário: o fato de que corremos um risco de confundir o ato de discordar ou de expor uma opinião diferente com uma ofensa. A fronteira que separa a ofensa da opinião é tênue, como tudo na vida, mas nada que não se resolva com uma pitada de boa-fé, de disposição para aceitar que as pessoas podem discordar. Discordar não é ofender.
Pois bem, vamos ao assunto. A androginia sempre existiu na espécie humana e mesmo em outros seres. É curioso ver que até mesmo em ícones religiosos milenares, como algumas divindades gregas e hindus, podemos observar uma caracterização que mistura traços masculinos e femininos.
Em todas as culturas do mundo, os conceitos de homem e mulher sempre foram de senso comum por um motivo simples: o imperativo da natureza. Cientificamente é sabido que a espécie humana, assim como outras espécies assexuadas, possui dois tipos de configuração cromossômica que geralmente resultam em dois tipos de humanos, macho e fêmea, cada qual com suas respectivas características fenotípicas.
A princípio não é um grande mistério fazer esta distinção. Desde sempre, as pessoas identificavam um homem pela presença do pênis e a mulher pela vagina. Esta era a principal característica usada para saber o sexo de um bebê logo quando nascia. De fato, até para identificar se alguns animais são machos ou fêmeas, como um cão, um gato, um bezerro, é usado este critério. Se tem "pipi", é macho, se não tem, é fêmea.
Como as civilizações foram desenvolvendo certos costumes e tabus, como o uso de roupas, não se tornou tão comum identificar um homem ou mulher olhando para suas genitálias. Como então saber o sexo de uma pessoa que está vestida? Aí temos outras características. Mulher tem seios, homem não tem; homem tem barba, mulher não tem. Estas características não são tão precisas, uma vez que só se desenvolvem depois da puberdade e mesmo assim as pessoas já identificavam o sexo das crianças simplesmente ao olhar para elas. Por quê? Por que o próprio corpo de meninos e meninas é um pouco diferente, bem como a voz.
Bebês e crianças na primeira infância são indistinguíveis em termos de sexo. Eles parecem todos iguais. Após alguns anos, porém, alguns traços começam a se manifestar, o formato do corpo e do rosto vai se moldando de uma maneira que facilmente as pessoas olham para uma criança e pensam: este é menino, aquela é menina. Em geral, mas há suas exceções.
Há meninos cuja aparência parece indistinguível de uma menina e há meninas que se parecem com meninos. É algo um tanto relativo, até subjetivo, pois envolve também o comportamento, a voz, etc. É aí que começa o conceito de androginia, de uma pessoa ter traços tanto masculinos quanto femininos em uma dosagem, uma proporção que foge ao padrão da maioria das pessoas.
Depois da puberdade, fica bem mais fácil identificar as características masculinas e femininas, e mesmo homens que não desenvolvem barba acabam sendo identificados como homens por outros detalhes e mesmo pelo formato do corpo. De uma maneira bem simplista, podemos dizer que o corpo dos homens é mais quadrado, enquanto o das mulheres é mais curvilíneo. Homens têm músculos e ossos mais proeminentes, rosto mais quadrado, enquanto mulheres parecem mais delicadas.
Esta é, obviamente, uma impressão geral da coisa, pois todo padrão tem suas exceções. Vemos homens com corpos mais femininos, mulheres com corpos mais masculinos... enfim, não vou me delongar sobre inúmeros detalhes que observamos no corpo das pessoas que nos fazem perceber se são masculinos ou femininos.
Aliás, tenho uma curiosa lembrança a respeito. Quando era adolescente, estava voltando de ônibus para casa e entrou um velhinho cego com uma bengala. Claramente se podia perceber que ele era cego. Ele sentou do meu lado, estendeu a mão apalpando o ar até que tocou em meu braço. Então disse: "ah, é homem".
Fiquei surpreso com a percepção dele. Ele nem tinha ouvido a minha voz, apenas tocou em meu braço magrinho de adolescente, e foi o suficiente pra identificar meu corpo. Deduzi que ele sentiu os pelos no meu braço, que também não eram muita coisa. Mas enfim, voltemos ao assunto.
A diferenciação entre masculino e feminino vai além do físico e chega ao comportamento. Já na Grécia antiga havia a palavra "malakos" para descrever homens que se comportavam de uma maneira delicada e que hoje traduzimos como "afeminados". Também antigos termos surgiram para definir pessoas que tinham práticas sexuais fora do padrão heterossexual, alguns destes termos com uma forte carga pejorativa, como "sodomita".
A heterossexualidade sempre foi a norma no comportamento humano pelo próprio imperativo da natureza, afinal é por meio desta relação que a nossa espécie se reproduz. Se a maioria da humanidade não tivesse o interesse básico em copular com o sexo oposto, jamais teríamos chegado aos bilhões de humanos que temos hoje.
É curioso que há milênios já havia textos religiosos enfatizando que o "certo" é o sexo entre homem e mulher e nada além disso. Ora, se havia textos sagrados, se havia sermões e até leis falando sobre isto, significa que havia gente que se comportava de maneira diferente deste padrão. A homossexualidade e a bissexualidade são tão antigas quanto a humanidade, mas sempre foram um fenômeno de minoria, uma exceção à regra. Ainda hoje é assim.
A civilização levou milênios para começar a aceitar isto. Bem recentemente, até passamos a desenvolver termos que definem este grupo de pessoas. Os mais clássicos são homossexual, bissexual, gay e lésbica.
Há algumas décadas estava na moda aqui no Brasil a sigla GLS, que definia gays, lésbicas e simpatizantes. Depois ela foi substituída para LGB (lésbicas, gays e bissexuais), depois LGBT (incluindo transexuais) e recentemente esta sigla saiu do controle e tem se ampliado com mais e mais letras a ponto de ficar desatualizada em questão de meses, quando uma nova letra aparece. No momento, se não me engano, ela está como LGBTQIAPN+.
Chegamos então a um ponto em que tem se tentado ser cada vez mais específico a respeito da característica sexual de grupos e indivíduos, criando-se termos como transgênero, não-binário, pansexual, demissexual, agênero, etc. Existem até bandeiras que simbolizam cada tipo. Perguntei ao ChatGPT quantas bandeiras existem e ele disse apenas que existem "muitas". Insisti que fosse mais preciso e falou que há cerca de 200. Isto até o momento.
Não sei quem cria estas bandeiras e definições, mas o número crescente delas me faz perceber algo: o ser humano, o indivíduo, é muito complexo e multifacetado. Será mesmo que é possível definir alguém, o todo de uma pessoa, usando estes rótulos?
Vejamos: em termos biológicos, uma pessoa é macho ou fêmea, mas mesmo biologicamente estas características se manifestam em graus diversos, o que depende, por exemplo, da quantidade de hormônios masculinos ou femininos. Uma mulher com muita testosterona naturalmente terá um corpo mais masculinizado, a voz mais grossa. Todavia, ela pode ser feminina no comportamento, nas roupas, pode ser heterossexual. Da mesma forma, um homem pode ter baixos níveis de testosterona, ter poucos pelos, o corpo esbelto e delicado, voz fina, e, ainda assim, comportar-se de uma maneira tida como masculina e ter interesse sexual apenas pelo sexo oposto. Inversamente, pode ter mulher fisicamente muito feminina, mas com modos de machão, ou que não gosta de homens; pode ter homem peludo, musculoso, um verdadeiro brucutu, e que tem maneirismos femininos e interesse sexual homoafetivo.
Estes são apenas alguns exemplos rasos de como a combinação de características masculinas e femininas varia de pessoa para pessoa. Ninguém é 100% masculino ou feminino. Há uma gradação, uma fórmula que varia em cada indivíduo e que em certo ponto chega ao nível da androginia.
Mesmo com as mais de 200 bandeiras, no fim das contas ainda é possível identificar as pessoas apenas por dois elementos clássicos: o masculino e o feminino. Estes elementos existem em uma fórmula única em cada pessoa e geralmente um deles prevalece, de modo que temos a visão geral de uma pessoa como sendo masculina ou feminina. Quando não há a prevalência de um dos dois, mas uma combinação incomum, temos o andrógino.
Desta forma, qualquer que seja a classificação e a bandeira aplicada a uma pessoa, ela sempre pode ser resumida em um de três tipos: masculino, feminino ou andrógino. Isto se refere ao comportamento, aparência e até o papel social que a pessoa assume. Ultimamente tem se falado em não-binário, mas o não-binário nada mais é do que um andrógico cuja combinação de elementos masculinos e femininos é bem fora do padrão, tornando difícil a sua identificação.
Podemos de fato fazer uma distinção entre sexo biológico e a tríplice característica sexual. Biologicamente, uma pessoa é macho ou fêmea. Isto é algo que não se pode negar, não sem colocar em risco a própria integridade da ciência e da biologia. Há obviamente exceções no hermafroditismo, mas são raríssimas. Bom, por enquanto são raríssimas, mas num futuro relativamente próximo isto pode mudar com a normalização da edição genética.
Pois é, um dia chegaremos a um ponto em que as pessoas vão editar os próprios genes. Neste caso, as convenções da natureza, que existem há milhões, bilhões de anos, vão ser desafiadas. Se uma mulher quiser ter um pênis natural brotando de seu corpo, virando uma verdadeira futanari, isto será possível. Parece fantasia pensar isto agora, mas a tecnologia capaz de editar genes já existe, hein. Com o toque mágico da edição genética, uma fêmea pode virar macho e vice-versa.
Eu sei, muitos podem pensar que isto é algo absurdo, herético, que estaremos brincando de Deus. O fato é que vai acontecer. Já estamos correndo neste trilho em alta velocidade. Como as religiões e as opiniões das pessoas vão lidar com esta nova realidade, é algo que o tempo vai resolver.
Acho improvável, porém, que ultrapassemos os limites do humano, pois a própria humanidade vai reagir a isto, vai regular esta tecnologia. Uma coisa é um homem mudar seus cromossomos de XY para XX e outra coisa é ele se transformar literalmente em um sapo. Creio que algumas pessoas vão fazer algumas "brincadeiras" com fins estéticos. Por exemplo, se alguém acha bonito ter orelhas pontudas de elfo ou dentes de vampiro, será possível com edição genética. Mas haverá limites e laboratórios serão proibidos de ultrapassá-los. Claro que, na obscuridade, nos porões secretos de governos e laboratórios, todo tipo de experiência bizarra será feita. O que não vem ao caso.
O que vem ao caso é que, hoje em dia e mais ainda no futuro, é impossível resumir uma pessoa a um rótulo que identifique seu grau de masculinidade, feminilidade e androginia. Por que então não voltamos ao simples e prático?
O simples e prático é: biologicamente existe macho e fêmea; em termos comportamentais existe masculino, feminino e andrógino; em termos de interesse sexual existe heterossexual, homossexual, bissexual e assexual. Todo mundo pode se encaixar numa combinação destas definições.
Sim, são definições generalizadas e não muito específicas, mas o generalismo é importante para respeitar o fato de que o ser humano é holístico, é complexo e multifacetado e não pode ser resumido, reduzido a uma definição extremamente específica. Dizer que alguém é demissexual, por exemplo, pouco diz sobre esta pessoa, sobre quem ela de fato é como um todo. Rótulos reduzem a riqueza que é o indivíduo.
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