Além, obviamente, da presença marcante de Keanu Reeves e da direção rica em ação e efeitos práticos do Chad Stahelski, a franquia John Wick se destaca pelo "universo dos assassinos" que foi criado, um submundo com suas próprias regras, economia, rituais e até um código de ética.
Em John Wick 4 (2023), este código de ética ficou ainda mais evidente e em diversas situações vemos que mesmo o mais psicopata dos assassinos segue certos princípios, como uma espécie de bushidô da máfia. Eles não matam por matar, especialmente outros assassinos. Há um respeito mútuo e a arte do assassinato segue regras como um jogo.
De fato, este submundo dos assassinos em John Wick se mostra com a fineza da civilidade que a distingue da barbárie. O terno, usado praticamente como um uniforme, mas também como uma armadura (literalmente uma armadura, já que é revestido com kevlar), é um símbolo desta civilidade. Eles não são apenas matadores de aluguel, são "gentlemen", cavalheiros que têm ética e etiqueta.
Um bom exemplo disto é o personagem Caine (interpretado por Donnie Yen, mundialmente conhecido pelo papel do mestre Ip Man), um assassino aposentado que tem impressionantes habilidades, mesmo sendo cego. Ele é recrutado pela Alta Cúpula para caçar John Wick, mas encontra em seu caminho um amigo de Wick, Shimazu Koji.
Na cena em que Caine mata Koji, vemos uma amostra da ética dos assassinos e até mesmo de uma espécie de misericórdia e aceitação das consequências. A filha de Koji insinua atacar Caine para se vingar, mas ele simplesmente diz: "Viva". Ou seja, ele está dizendo que pretende poupá-la, deixando-a viva para sepultar o pai, então aconselha que ela não se precipite em atacá-lo. E vai além, pois também diz que esperará por ela, assim reconhecendo o direito que ela tem de se vingar. É a consequência natural dele ter matado o pai dela.
Caine é um velho amigo de John Wick, mas a Alta Cúpula o obriga a cumprir a missão, ameaçando matar sua filha. Ao longo do filme, Caine e Wick ora estão se enfrentando, ora estão civilizadamente conversando. Em certo momento ambos se encontram no interior de uma igreja, tendo uma conversa amistosa, mesmo sabendo que logo depois devem se enfrentar em um duelo mortal.
Outro caso curioso é o do Tracker (Rastreador), um assassino de nome desconhecido que é pura e simplesmente um caçador de recompensa. Como John Wick está com a cabeça a prêmio, o Tracker vai atrás dele e, assim como Caine, eles cruzam caminhos várias vezes, mas como sempre Wick consegue escapar.
O Tracker se mostra um homem obstinado em seu objetivo. Ele quer a grana e para ele esta caçada não é nada pessoal, é puro negócio, uma oportunidade de ouro para fazer seu pé de meia. Só que acontece algo. Em meio a um embate, um dos enviados da Cúpula chega perto de matar o cachorro do Tracker e isto no exato momento em que Wick e o Tracker estão cara a cara. Em vez de aproveitar a chance que teve para matar o Tracker, John Wick atira no capanga, assim salvando o cachorro.
Naquele momento, a coisa se tornou pessoal para o Tracker. Ele reconheceu a honradez de John Wick, um assassino frio como todos os outros, mas capaz de apiedar-se de um cachorro, mesmo arriscando a própria vida para salvá-lo. Foi este gesto que convenceu o Tracker a desistir da recompensa. Ele renunciou a quase cinquenta milhões de dólares em uma atitude de gratidão.
Assassinos com honra e que jogam conforme as regras do jogo. No final, as intrincadas regras desta sociedade permitem que John Wick resolva de vez sua dívida com a Cúpula em um duelo de cavalheiros, bem no clássico estilo de duelo de pistolas.
Todo este código de conduta, os ternos, as tradições da sociedade dos assassinos, a maneira ritualística com que resolvem suas desavenças, serve como uma forma de distinguir a barbárie da civilização. Certos problemas humanos perduram mesmo em uma sociedade civilizada, o conflito de interesses, a luta armada.
O que distingue a barbárie da civilização é o método, a existência de regras, mesmo ao matar. Pode não ser uma maneira de resolver completamente o problema da violência na sociedade, mas é uma forma de amenizá-lo, evitando que mesmo assassinos se tornem meras bestas animalescas que matam indiscriminadamente.
A presença da igreja, assim como do hotel, representa a ordem civilizada em meio ao caos violento da sociedade dos assassinos. |
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