Qaligrafia
Séries, livros, games, filmes e eteceteras 🧙‍♂️

Liberdade e limite

Freedom

Limite significa existência. Nada poderia existir em si mesmo sem estar limitado. A ausência completa de limites, que seria a liberdade absoluta, também é a ausência completa de identidade. O nada absoluto, esse é completamente livre, a não ser por uma exceção: o nada está livre de todas as limitações que as coisas existentes possuem, sendo que a única limitação do nada é não estar sujeito a limites. 

Se o nada em algum momento "quer" existir, ele abdica de sua liberdade absoluta e limita-se dentro das dimensões de algo que existe. Isto se pensarmos que é possível algo surgir do nada, ou seja, o nada tornar-se algo, mas até o momento não se tem provas disso e o que parece mais natural no mundo é que "nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". 

Com base nesse axioma que parece universal, o próprio universo então é eterno e não surgiu do nada? Exatamente. É uma hipótese. Se houve um princípio, como o Big Bang, este na verdade partiu de alguma matéria prima anterior. Talvez outro universo que entrou em colapso formando a partícula inicial. Talvez haja um ciclo de vida eterno do universo ou de vários universos que estão sempre inflando, implodindo e reiniciando o processo em sucessivos big bangs. Talvez a partícula do Big Bang tenha surgido de uma fonte eterna que está além do universo. 

Talvez Deus ou deuses eternos tenham criado o universo ou o fenômeno simplesmente espontâneo e absurdo do surgimento do nada pode ter acontecido apenas naquele momento inicial do Big Bang e desde então isto não mais acontece, pois agora reina a lei natural de que nada surge do nada. Neste caso, o nada vir tornar-se algo é uma exceção, uma gigantesca exceção. Todo esse nosso imenso universo e nós nele seriamos fruto de uma exceção primordial.

Mas especular sobre as origens do mundo é uma digressão. Apenas chegamos a isto para exemplificar o fato de que a própria existência em si do que quer que seja implica em uma limitação da liberdade. A liberdade absoluta é algo impossível de se aplicar a qualquer coisa que exista além do nada. Dito isto, devemos superar a ideia ingênua de que liberdade é o bem e restrição é o mal. Há liberdades e liberdades, restrições e restrições. 

Há restrições boas e que nos são desejáveis, que tornam a vida possível. O próprio fato de termos vontades é uma restrição. Por que não somos totalmente isentos de vontades? Ou por que não temos todas as infinitas vontades possíveis? No primeiro caso, seríamos absolutamente apáticos e no segundo caso seríamos atormentados por uma torrente de vontades conflitantes. Nossas vontades têm limites, logo, mesmo tendo vontades, elas não são livres no sentido mais superior. Todavia, ainda que sejam limitadas, são nossas e relativamente espontâneas. Então como classificar os limites de nossa liberdade? Não é difícil, de fato, se entendermos uma noção simples: a gradação.

O dualismo é um conceito presente em toda parte. Luz e treva, frio e calor, vida e morte, bem e mal. Há coisas que são facilmente classificadas em um sistema dualista, mas ficamos confusos ao tentar classificar de maneira tão rígida certas ideias mais complexas. Se aprendemos que existe preto e branco, como podemos classificar o cinza? É preto ou branco? É aí que entra a noção de gradação. O cinza possui graus de composição que misturam tanto o preto quanto o branco. Há infinitos tons, variando conforme as infinitas possibilidades de combinação das cores. Se misturamos 99,9% de preto com 0,1% de branco, temos certo grau de cinza. E assim, fazendo diversas misturas, teremos a paleta infinita das gradações. Assim é com a liberdade e a restrição.

Não podemos nos considerar 100% livres, muito menos 100% restritos. Em termos de liberdade de movimento somos mais livres que uma pedra estática que sequer pode escolher se mover, mas somos menos livres que uma partícula de luz que pode atravessar milhões de galáxias no percurso de sua existência, enquanto passamos a vida toda aqui na Terra e apenas em uma pequena porção geográfica dela. Entre a pedra e a partícula de luz há uma gradação de liberdades e nós nos encontramos ali em algum lugar da paleta

Quando pensamos na grandeza do universo e das estrelas e galáxias, concluímos que somos partículas insignificantes. mas esta conclusão só é possível se olharmos para o que é fisicamente maior que nós, mas e se olharmos para o que é menor? Existe uma infinidade de coisas tão menores do que nós, como somos menores que estrelas. Logo, somos imponentes diante destas coisas minúsculas. Onde está a insignificância agora? 

Além disso, podemos nos considerar insignificantes diante das estrelas em relação a tamanho, mas e quanto a outros atributos? Nós temos intelecto, enquanto as estrelas (até onde sabemos) são tão burras quanto uma porta. Não é fantástico o nosso potencial de pensar, de imaginar e observar o universo? Mas sem as estrelas nunca teríamos nascido. Elas moldaram os planetas e sua luz alimenta a vida. Enfim, é infindável esse pingue pongue de comparações. Somos melhores nisso, piores naquilo, mais nisso, menos naquilo. 

Somos livres, em certo grau, bem como limitados, em certo grau. Há limites necessários, fundamentais para nos dar existência, substância, propriedade. Há limites supérfluos e até prejudiciais. Há liberdade necessária e há liberdade que dilui e dissolve. Cabe a cada um discernir e buscar o seu peculiar grau de limite e liberdade.

O fetiche pelo exagero em Dragon Ball

Goku "cyotto"
"Só um pouquinho" (em japonês: cyotto) é uma expressão bastante usada por Goku. É até uma ironia, já que para ele nada é pouquinho, como seu poder exagerado.

A fórmula dos animes de luta sempre foi a evolução do poder dos personagens e Dragon Ball é o mais famoso exemplo: começa-se com um nível básico, humano, e vai-se superando a ponto de alcançar graus de poder cada vez mais absurdos. E sempre que os protagonistas ficam absurdamente fortes, aparecem novos adversários ainda mais fortes e esse ciclo segue a cada temporada.

Então era de se esperar que em algum momento os principais personagens chegassem a um nível divino de força e é disso que Dragon Ball Super se trata. Eis o Super Sayajin Deus! Dragon Ball Super leva a fórmula do exagero, típica dessa franquia, ao limite máximo.

Mas a grandiloquência de Dragon Ball não se limita ao poder dos personagens. O anime inteiro brinca com o exagero. Os títulos dos episódios sempre são cheios de exclamações e ênfases. Até os pratos de comida são enormes. E que melhor exemplo dessa "exageirização" toda senão as próprias esferas do dragão? Agora temos esferas do tamanho de planetas!

Super dragon balls

O fetiche por comida em Dragon Ball

Dragon Ball Super (2015)

Um dos elementos mais frequentes em toda a série Dragon Ball é a comida. Talvez seja um fetiche do Akira Toriyama, ou tenha uma propósito educacional, algo tipo "estão vendo, crianças, é importante comer pra ficar forte". 

Goku

Cenas dos personagens devorando pratos e mais pratos de comida existem aos montes. Praticamente em todos os episódios há algum momento de comilança. Uma das cenas mais memoráveis é a do jovem Gohan caçando e comendo uma enorme cauda de dinossauro.

Gohan

E não houve apocalipse mais digno desse fetiche gastronômico do que o dia em que Madimbu usou seu imenso poder para transformar as pessoas do planeta em doces. Alegremente e assustadoramente cantava: "Vou te comer, vou te comer...".

Madimbu

E aí após três décadas de comilanças, veio uma nova série da franquia, Dragon Ball Super, e já começa apresentando Bills, ou Birusu, o onipotente Deus da Destruição que invade planetas e exige que seus habitantes preparem para ele deliciosos pratos. Pois é, o passatempo preferido do fantástico Deus da Destruição é comer. Quando vem à Terra o que faz? Continua comendo. Até mesmo um ser divino declara que a coisa mais importante de todas é a comida.

Bills and Goku

Na verdade a ênfase à comida vai além do comportamento dos personagens. Até mesmo muitos dos nomes têm algum significado alimentício. Saiyan, o sayajin, deriva do japonês yasai que significa "vegetal"; Vegeta é literalmente "vegetal"; Kakarotto deriva do inglês carrot, "cenoura"; Gohan significa "arroz", Goku também significa uma quantidade de arroz. E há dezenas de outros nomes relacionados a comida.

Aliás, o apetite voraz dos personagens parece ser tão impressionante quanto seus poderes. Como é possível que uma criatura de tamanho humano consiga devorar um animal cinco, talvez dez vezes maior? Onde vai parar toda essa comida? Talvez caiba aí uma explicação einsteineana, aquela coisa de que massa gera energia. Estaria aí o segredo de tanta energia e poder dos sayajins. Vem tudo da comida.

Vegeta

Aho-Girl, um anime errado e engraçado

Aho-Girl (2017)

Pessoas levando bofetadas sempre foram uma coisa engraçada em shows de humor. Palhaços fazem isso nos circos há séculos. Talvez o exemplo mais clássico de comédia em que os personagens se espancam à vontade seja o grupo Os Três Patetas, que começou na década de 1920 e seguiu até a década de 70 nessa brincadeira. 

The Three Stooges

Dito isto, vamos para Aho-Girl. A protagonista Yoshiko aparentemente tem um Q.I. abaixo da média e sua principal peculiaridade é o fato de ser viciada em bananas. Isso mesmo, bananas (Freud explica). Ela tem uma paixão platônica por Akuru, um garoto estranhamente sério que não quer nada com garotas e o máximo de afeto que ele chegou a demonstrar foi a amizade por um cachorro.

Acontece que Akuru parece ter ódio pela Yoshiko (algo que é explicado no finalzinho do anime) e vive espancando ela ao estilo Os Três Patetas. Um garoto batendo numa garota, pode isso? Pois é, esse anime não tem medo de brincar com isso e de fato as cenas de bofetadas na coitada da Aho Girl (numa boa tradução: "Garota Idiota") são mesmo engraçadas. Mas calma que também tem garotas batendo em garotas, então não há discriminação. Todo mundo se esbofeteia nesse anime.

Aho-Girl (2017)

Aho-Girl (2017)

Aho-Girl (2017)

Aho-Girl (2017)

Claro que a graça não está só nestas cenas masoquistas. A personalidade da Yoshiko é muito divertida e a história flerta com o nonsense, acontecendo coisas nada a ver que acabam sendo engraçadas por serem absurdas. Além disso, tem o humor da safadeza e muita pagação de calcinha! Como não amar?

Aho-Girl (2017)

Aho-Girl (2017)

Aho-Girl (2017)

Joguinhos roguelike

Crypt of the Necrodancer

Os chamados jogos roguelike têm esse nome por se basearem no clássico Rogue, de 1980, um joguinho de dungeon (masmorra) dos primórdios da computação. Basicamente tem duas características: a morte permanente e a geração aleatória dos cenários.

Ou seja, em cada partida você começa do zero, ou quase isso. Você entra na primeira fase ou cenário e à medida que avança os cenários vão ficando mais difíceis. Normalmente os cenários são dungeons que você explora enquanto enfrenta monstros e encontra tesouros e itens que vão tornando o personagem mais poderoso. No entanto, independente de até onde você consiga chegar e de quanto tenha evoluído seu personagem, se morrer já era. Perde tudo, todos os itens, toda evolução, vai ter que começar com o personagem noob. É um jogo para masoquistas.

Quanto à geração aleatória do cenário, é um recurso que acrescenta dificuldade extra, já que você nunca vai poder decorar a dungeon e sempre terá surpresas. Isto também pode tornar o jogo menos entediante pelo mesmo motivo da imprevisibilidade.

No entanto essa rigorosa penalidade da morte geralmente é compensada com alguns progressos que sobrevivem a cada partida. Por exemplo, você pode acumular certos pontos especiais que serão usados pra comprar melhorias, como aumentar a vida ou acrescentar novos itens ao cenário, então a cada partida você não começa exatamente do zero, mas com um personagem noob levemente melhorado.

Não sou lá muito fã de roguelike porque gosto de curtir uma build de personagem, como acontece em MMORPGs ou RPGs. É prazeroso perceber que as horas investidas em um jogo são recompensadas com um personagem cada vez melhor, que avança em nível, em poder, em habilidades, em riqueza e coleciona itens e conquistas e cada vez que você entrar no jogo vai poder usar esse personagem com tudo que ele tem direito. No roguelike você é um eterno noob e são poucos os progressos permanentes.

Rogue Legacy (2013)

Mas vez ou outra descubro um roguelike que acaba me agradando. Geralmente são joguinhos indie e que trazem alguma proposta inovadora, algum detalhe diferente que torna o seu estilo único. Um deles foi Rogue Legacy (2013). Como em todo roguelike, o começo é bem sofrido, você morre bastante e passa muita raiva, mas se persistir em jogar vai acumulando melhorias em árvores de habilidades e realmente consegue voltar mais poderoso em cada partida. A princípio você tem a sensação de que está no jogo mais difícil do mundo, porque o iniciante sofre mesmo. Mas acredite, com o tempo você vai conseguir personagens bem fodões.

A ideia inovadora é a forma como os personagens são gerados. Se seu personagem morre, morre mesmo e jamais você vai voltar a usá-lo. O que acontece é que estes personagens têm descendentes e você passa a usar os filhos, netos, bisnetos, com direito a alguma herança deixada pelos anteriores. Além disso cada personagem tem seu próprio conjunto de peculiaridades, de qualidades, defeitos e trejeitos, de modo que a ideia de aleatoriedade própria do roguelike chega aqui a outro nível, afetando os próprios personagens.

Risk of Rain (2013)

Risk of Rain (2013) é pura chuva de balas, realmente frenético. O primeiro jogo é um plataforma 2D pixelado, um visual bem simples e retrô. Em 2019 lançaram o Risk of Rain 2 totalmente remodelado, agora como um TPS 3D.

Hero Siege (2014)

Hero Siege (2014) foi um dos roguelikes mais divertidos que conheci. Joguei por umas 50 horas e ainda posso voltar a jogar qualquer dia porque ainda faltou muita coisa pra fazer. Possui diversas classes de personagens, algumas desbloqueáveis via DLC, e uma jogabilidade hack 'n slash estilo Diablo, com muuuito loot e bichos pra todo lado. É mais difícil no começo, quando seu personagem ainda é fraquinho, mas com o tempo vai evoluindo e se tornando um verdadeiro badass, chacinando os monstros e bosses.

Crypt of the Necrodancer (2015)

Outro que experimentei recentemente foi Crypt of the NecroDancer (2015), um trocadilho com necromancer (necromante, bruxo) e dancer (dançarino). O grande diferencial é a forte integração da trilha sonora com a ação. De fato, você tem que se mover no ritmo da música, saltando a cada batida. Se você fizer isso direitinho, é recompensado com bônus, se caminhar desajeitado e fora do ritmo, perde os mesmos.

Também tem que aprender o ritmo de movimento de cada monstro de modo que a luta é como uma dança em que você e o monstro vão se aproximando, saltando nos quadradinhos, e você deve saber o salto correto para poder atacar o monstro sem ser atacado no turno dele. É realmente divertido. Com o tempo você vai desbloqueando melhorias e também personagens, cada qual com suas próprias características. Os controles são bem simples. Nada mais que as quatro setas de direção e algumas combinações delas para usar poderes.

Steredenn (2015)

Eu adoro joguinhos de nave no formato 2D clássico. É o caso de Steredenn (2015), que tem um belo visual e jogabilidade satisfatória, maaas é roguelike, o que pra mim é um tanto chato, pois não há um acúmulo de progressos, os upgrades se perdem todos na morte e é preciso começar as fases tuuudo de novo. A única vantagem é que com o progresso você desbloqueia naves melhores.

Dungeon Souls (2016)

Dungeon Souls (2016) tem um visual pixelado bonitinho e parece uma versão minimalista de Diablo. Há diversas classes de personagens, mas você precisa ir desbloqueando à medida que joga. O que desequilibra bastante a dificuldade é um boss que aparece sempre que você completa os portais de um cenário. Ele muitas vezes surge em cima de você e mal dá tempo pra fugir, aí é morrer e começar tudo de novo.

Minit (2018)

Minit (2018) tem um visual bem minimalista, preto e branco e pixelado. É um RPG básico em que você sai explorando o cenário, realiza missões para NPCs e encontra itens que vão facilitando sua aventura. O elemento roguelike está no fato de haver um timer e sempre que o tempo acaba você morre, mas não perde as missões e itens que conseguiu até então, apenas volta para casa e tem que repetir todo o percurso que estava fazendo. Isso logo se torna bem repetitivo, que é justamente o que não curto em roguelikes.

Neon Abyss (2020)

Neon Abyss (2020) tem um belo visual pixelado com temática cyberpunk e música eletrônica. A jogabilidade é relativamente simples: você explora salas em uma dungeon, até enfrentar o boss. Nas salas vai coletando itens, armas e companions que começam na forma de ovo até chocarem. Estes companions são acumuláveis e realizam funções diversas, ajudando bastante no combate. Sendo roguelike, você perde tudo isso ao morrer, mas com o progresso pode ir desbloqueando bônus e personagens permanentemente, fazendo com que a cada nova aventura você comece mais preparado.

Vampire Survivors (2021)

Vampire Survivors (2021) é um jogo pixelado bem feinho, mas que mal foi lançado e já é uma espécie de cult, com uma comunidade dedicada de players, uma wiki e tutoriais e gameplays no Youtube. É extremamente viciante.

Bem no estilo Hero Siege, você vai enfrentando ondas de bichos, aquirindo e evoluindo seus itens, de modo que no endgame de uma partida a tela está lotada de criaturas e seu personagem também está poderosíssimo, spamando projéteis pra todo lado. 

As partidas duram cerca de meia hora, que é quando está programada a chegada do último boss, um reaper super apelão que te mata quase instantaneamente. Mesmo assim, basta você sobreviver até a chegada do reaper para zerar a fase. 

É possível matar o reaper, o que exige muita estratégia e paciência, de modo que você desbloqueia uma versão jogável dele. Como um bom roguelike, você vai desbloqueando personagens, cada qual com suas peculiaridades. 

Os achievements não são nem muito fáceis nem impossíveis, de modo que com alguma dedicação é possível zerar todas as conquistas. Afinal, um roguelike, como é baseado em morrer e recomeçar várias vezes, precisa estimular a jogabilidade. Tentar zerar os achievements é um bom motivo pra jogar de novo e de novo.

Não costumo gostar de roguelike, mas eventualmente encontro exceções. Este aí eu cheguei a jogar por quase 30 horas, até dar minha missão por encerrada. 

Rob Liefeld, tão ruim que é bom

Nos anos 90 a indústria de quadrinhos passou por duas grandes mudanças: 1) o crescimento do gênero de histórias adultas, densas e sombrias, com autores como Frank Miller, Alan Moore e Neil Gaiman; 2) o surgimento de um novo estilo de desenho, mais detalhista, exagerado e graficamente aprimorado com as recém surgidas ferramentas de colorização digital. 

Neste segundo fenômeno se destacaram desenhistas como Jim Lee e Todd McFarlane. Tanto se destacaram que terminaram criando uma editora própria, a Image, com a ousadia de bater de frente com Marvel e DC e enfatizar esse aspecto gráfico das revistas, caprichando nas cores e traços. Os coloristas de fato são pouco lembrados, mas tiveram um papel importantíssimo. Basta dar uma comparada entre os quadrinhos dos anos 80, que tinham uma colorização mais simples e artesanal, e estes dos anos 90 com uma paleta de cores mais explorada, com fades e degradês, enchendo as páginas de muita cor, tornando-as visualmente mais atraentes e, claro, lucrativas.

Note a diferença nas cores das figuras abaixo. Nos anos 80 o Capitão América e o Ciclope tinham um azul puro no uniforme e a única marcação de sombra e tom era feita pelo nanquim da arte final, com as áreas pretas e hachuradas. Nos anos 90 veio a colorização digital e nota-se no azul do Fera e do Ciclope uma variedade de tons que ampliam a impressão de luz e sombra.

Marvel 80s

X-Men by Jim Lee

E então temos Rob Liefeld. Na época dessa revolução visual dos anos 90 ele era um garoto iniciante que teve a sorte de conseguir trabalhar para a Marvel e foi um dos mais controversos desenhistas da época, pois ele vendia bem, mas tinha um traço notavelmente tosco, uma anatomia bizarra dos corpos masculinos e femininos e tantos outros exageros. Mesmo sendo o cara que todos amavam odiar, o fato é que ele fez sucesso e foi um dos líderes na fundação da Image.

Liefeld era como uma versão turbinada, anabolizada e psicodélica de Jim Lee. Mas pensando bem, talvez ele seja o melhor símbolo para aquele estilo dos anos 90, quando se valorizou bastante heróis super musculosos com as fibras trincando e mostrando mais de 40 dentes na boca numa expressão dramática. O desenho era tão ruim que acabava sendo bom porque é impossível olhar para uma capa cheia de brucutus carregando 50 armas nas costas e não ficar curioso. Não à toa foi um sucesso de vendas. O exagero vende.

Quando eu era garoto partilhava do mesmo ódio ao desenho tosco do cara que qualquer outro leitor comum da época tinha, mas mesmo assim comprava lá minhas revistinhas da X-Force porque né, essas drogas viciavam. Agora, décadas depois, parece que alcancei uma compreensão diferente da coisa. Liefeld era ruim sim, era tosco, não entendia nada de anatomia, mas tinha algo nesse estilo que fez dele tão popular. Ele foi uma espécie de expressionista.

Apreciemos alguns desenhos.

Warchild by Rob Liefeld

Cable by Rob Liefeld

X-Force by Rob Liefeld

E convenhamos, Liefeld merece uns créditos extras porque ele foi o criador de um dos personagens mais penetrantes da cultura nerd, um cara que virou um dos líderes do mundo dos memes, que é homenageado em cosplays por todo o mundo, que rendeu um dos melhores filmes de super heróis já feitos. Ele mesmo: Deadpool.

Deadpool

Crossing Time, fragmentos do dia a dia

Crossing Time (2018)

Em termos de tamanho, a variedade de animes é enorme. Tem animes com episódios de 10, 20, 30, 40 minutos; alguns com apenas uma temporada e uma dúzia de episódios, outros com dezenas de temporadas e centenas de episódios; algumas histórias têm apenas um punhado de personagens e uma linha do tempo simples, outras envolvem uma multidão de seres e uma complexa narrativa abrangendo até mesmo séculos de eventos. E temos em Crossing Time (Fumikiri Jikan) um caso ainda mais peculiar: algo que eu chamaria de anime-pílula.

Cada episódio nem chega a três minutos (isso mesmo, 3 minutinhos, quase o tempo da música de abertura e encerramento da maioria dos animes) e mostra um breve momento em um cruzamento de ferrovia, quando personagens ocasionalmente se encontram enquanto esperam o trem passar. Nesse curto instante, uma pequena história acontece, misturando humor e um pouco de erotismo.

Crossing Time (2018)

Armazenando dados no cérebro

Ghost in the Shell

Em 2017 tive um sonho curioso que de certa forma é até profético. Eu via um garoto num hospital tirando um Raio-X ou tomografia da cabeça. Viu-se que ele tinha uma área que parecia inflamada, danificada e então descobriram que aquela região estava sendo usada por hackers para armazenar dados, vários gigabytes. A forma como os dados entravam no cérebro seria por meio dos fones de ouvido ou quem sabe até mesmo wireless.

A possibilidade de se criar uma interface que permita a troca de dados entre cérebro e computador já é estudada atualmente, então sonhar  com isso não chega a ser uma novidade. De toda forma, é bizarro pensar que um dia algo assim possa acontecer, nosso cérebro sendo usado como um HD ou pen drive orgânico para guardar dados digitais no estilo Neuromancer ou Johnny Mnemonic.

Bom, provavelmente coisas muito mais surreais que essa serão possíveis nas próximas décadas.

O z da transa

Existe uma regra básica da fonética portuguesa que é: o s intervocálico tem som de z. Ou seja, se temos o s entre duas vogais, sua pronúncia será como z. E isto ocorre somente nesta ocasião. Caso o s esteja ligado a apenas uma vogal, ou a uma consoante, ou entre uma vogal e uma consoante, seu som será sempre de s. A palavra "transa", porém, é uma exceção.

Vejamos primeiro alguns exemplos.

S com som de s

Saudade: o s está ao lado de uma vogal e seu som é simplesmente de s.
Abster: aqui o s está entre duas consoantes.
Abismo: o s está entre uma vogal e uma consoante.

S com som de z

Casa: um caso (ops) bem conhecido de s entre duas vogais.
As asas: note aqui que mesmo entre palavras separadas, nós acabamos por pronunciar o s como z se ele for intervocálico. Por isso nós falamos "azazas" e não "assazas". O s do final do artigo as, quando falado junto da letra a de asas, naturalmente ganha a pronúncia de z. E fazemos muito isso. Experimente observar quantas vezes as pessoas falam o s com som de z.

S que vira dois ss para fugir do som de z

Assassino: por que diabos essa palavra tem tantos s? Justamente porque se o s entre vogais fosse único, teria som de z, então a palavra "asasino" seria pronunciada como "azazino". O ss duplo sempre aparece entre vogais por este motivo, para deixar claro que não se deseja a pronúncia de z. E também por isso não existe ss duplo entre consoantes, pois é desnecessário.

Então chegamos à palavra "transa". Ela se pronuncia "tranza", certo? Mas como, se o s está entre uma consoante e uma vogal? Não deveria se pronunciar "transsa"? Veja, por exemplo, as palavras "pense", "tenso", "censo". Em todas elas temos o s depois da letra n e antes de uma vogal e sua pronúncia é de s.

Acontece que a letra n ao lado da vogal a cria um fenômeno curioso de pronúncia. O n como que é absorvido pelo som da letra a que se torna, na pronúncia, um ã. Então imagine que ao pronunciar transa, você está falando "trãsa". O "an" ou "ã", é o som único de uma vogal de modo que nesta palavra o s é tecnicamente intervocálico, daí ter som de z.

Curiosamente, a solução que a língua portuguesa encontrou para determinar a pronúncia de s em casos semelhantes foi usar, não o ss duplo, mas o cedilha. Por isso há cedilha na palavra "dança", pois se fosse escrita "dansa", seria pronunciada como "danza".

Maaas... o desenvolvimento de uma língua não é uma ciência exata e existem arbitrariedades, casos anômalos. Por exemplo, na palavra "cansa", que tem uma estrutura semelhante a "transa", o s tem som... de s mesmo. Isso é a língua, meus amigos. Tem hora que não adianta tentar entender mesmo.

Darling in the Franxx, a mistura de Evangelion com Elfen Lied

Darling in the Franxx (2018)

A produção de animes é vastíssima, maior que qualquer outro mercado de animação do mundo. E uma vez que esta indústria e arte possui décadas de existência, é natural que as produções atuais recebam influências das anteriores. No caso de Darling in the Franxx (2018), qualquer pessoa que tenha um conhecimento razoável de animes notará a influência de Evangelion (1995).

Evangelion (1995)

Evangelion é um daqueles clássicos obrigatórios para quem realmente quer conhecer a história dos animes. É um dos principais do gênero mecha (animes de robôs) e que foi além da simples luta de máquinas gigantes, enveredando pelo mistério, a engenharia genética e até a filosofia.

Nos mechas convencionais, os personagens simplesmente "vestem" ou pilotam seus robôs como se fossem veículos de braços e pernas. Em Evangelion a relação entre o piloto e o robô era mais íntima, orgânica. Há uma conexão neural entre o robô e o usuário. Aliás, aquelas criaturas gigantes nem eram robôs propriamente ditos, mas seres orgânicos gigantescos revestidos por uma armadura robótica.

Pacific Rim (2013)

Essa coisa então de se controlar um robô gigante por meio da própria conexão neural inspirou anos depois o filme americano Pacific Rim (2013), que tem uma visível influência do gênero mecha. A novidade é que os robôs deste filme são sempre controlados por duas pessoas que precisam estabelecer uma conexão entre elas e a máquina, uma sincronização de suas redes neurais. Em Darling in the Franxx esta ideia está de volta. Desta forma, podemos dizer que Darling in the Franxx tem uma influência de Evangelion por tabela, passando por Pacific Rim.

Diferente de Evangelion e Pacific Rim, em Darling in the Franxx é necessário uma compatibilidade sexual entre os dois usuários do robô, por isso se costumam formar casais. Na verdade, este anime está sempre sutilmente (ou nem tanto sutil assim) se referindo a sexo e afirmando o caráter especial desta relação entre duas pessoas.

Pra começar, a posição em que a dupla fica dentro da máquina é bem safadinha. A pessoa da frente, geralmente uma garota, fica como que de quatro, e atrás o outro piloto segura uns manches fixos na bunda da colega. Convenhamos, não tem como não pensar besteira vendo isso.

Darling in the Franxx (2018)

Darling in the Franxx (2018)

Darling in the Franxx (2018)

Darling in the Franxx (2018)

Darling in the Franxx (2018)

E os diálogos com duplo sentido, falar sobre "eu estou crescendo dentro de você" e os gemidos dos personagens enquanto pilotam. Sem contar os ângulos bem safadinhos feitos pelos desenhistas. É o que se chama fan service, ou melhor, ecchi, quando se explora a sensualidade nos animes.

Particularmente gosto do fan service (why not?), mas o anime em si é muito bonito esteticamente, tem um desenho com um belo traço. Além disso a trama é interessante, desenvolvendo aos poucos a história daquele mundo, dos monstros e das cidades com sua avançada tecnologia. Neste caso o anime peca justamente por ser curto demais e acaba precisando acelerar a história no momento em que vai ficando mais interessante.

Darling in the Franxx (2018)

Há ainda um detalhe interessante. O nome do cientista que criou os pilotos dos robôs é Werner Frank e seus robôs recebem o nome de Franxx. É obviamente uma referência ao cientista Frankenstein que no século XIX desenvolveu o primeiro ser vivo artificial na ficção. Tem ainda um detalhezinho aí que nem todos perceberam: no título do anime, os dois xx de Franxx se entrelaçam formando uma espécie de hélice de DNA, uma referência à engenharia genética. 

Darling in the Franxx (2018)

Enfim, nada tenho do que reclamar desse anime. Até os fillers, poucos de fato, são legais porque desenvolvem a relação dos personagens. A única coisa que achei estranho mesmo é o fato dos robôs gigantes mexerem a boca quando falam, o que fica infantil demais, mas ok.

Darling in the Franxx (2018)

A influência de Evangelion também se nota no fato dos pilotos serem nomeados com números, mas tem outra influência que é menos percebida: a de Elfen Lied.

Darling in the Franxx (2018)

Elfen Lied (2004)

Existe um garoto comum, sem grandes atributos, mas que atraiu a atenção de uma garota especial. Essa garota tem o cabelo rosa, uns chifrinhos na cabeça, poderes sobre humanos e desde a infância foi tratada como um monstro, vítima de experimentos de laboratório e por isso desenvolveu uma personalidade muito agressiva e até psicopata. A redenção desta garota se dá pelo elo emocional dela com o garoto, que assim restaura sua humanidade. Estamos falando da Lucy de Elfen Lied, mas essa mesmíssima descrição se encaixa na Zero Two de Darling in the Franxx.

Darling in the Franxx (2018)