Bom, este ensaio não será exatamente sobre a Galadriel, mas foi ela (no caso, a Galadriel da série Rings of Power) que me despertou o interesse em escrever sobre algo que está cada vez mais comum na ficção: a anulação da feminilidade como uma forma de criar personagens femininas fortes. Pois é. Senta que lá vem história.
Uma introdução aleatória. Vamos falar de forró
O grande Luiz Gonzaga, um dos verdadeiros fundadores da chamada música popular brasileira, compôs uma melancólica e ao mesmo tempo debochada canção que hoje em dia seria massacrada pela cultura do cancelamento, chamada Paraíba.
A letra possui um tema frequente na obra de Gonzaga, que é a seca do sertão nordestino, os sofrimentos do homem do campo, a necessidade de migrar, de ir pra cidade grande, levando no peito saudades da terra natal e das pessoas amadas que lá ficaram. Diz a primeira estrofe:
"Quando a lama virou pedra
E mandacaru secou,
Quando a ribaçã de sede
Bateu asa e voou,
Foi aí que eu vim me embora
Carregando a minha dor.
Hoje eu mando um abraço
Pra ti pequenina."
O curioso é que, em meio a esta letra melancólica, de uma forma aleatória ele insere um inesperado refrão que diz:
"Paraíba masculina,
Muié macho, sim sinhô."
Este refrão era sempre motivo de risadas. É uma brincadeira com as mulheres do sertão que, devido às condições duras de vida, uma vida sofrida de muito trabalho e esforço, de andar quilômetros até o açude levando uma trouxa de roupas para lavar batendo os panos molhados contra as pedras, de quebrar galhos nos joelhos, de trabalhar na roça, curtindo a pele no sol escaldante, de não poder se dar ao luxo de usar roupinhas femininas, maquiagem, cuidar da aparência, enfim, esta mulher guerreira do sertão paraibano acabava se tornando uma mulher de mãos grossas, de jeito másculo.
As pessoas que vivem nas facilidades da vida urbana não conhecem essa realidade e podem simplesmente se ofender, no conforto de seus sofás, com a brincadeira do Gonzagão, sem entender como o sertanejo sabe brincar e fazer piada a respeito de suas próprias questões. A piada do Luiz, em meio a uma letra triste sobre seca e saudade, esconde um lamento do tipo: que triste que nossa dura realidade privou as mulheres das condições para que elas tenham conforto e possam cultivar sua feminilidade.
O processo evolutivo da divisão de papéis entre masculino e feminino
A feminilidade está relacionada à maciez, assim como a masculinidade à dureza. E isto tem uma história evolutiva. Desde os tempos primitivos, os homens tendiam a se dedicar a tarefas que envolviam mais esforço físico e com mais risco de se machucarem, tornando-se "duros", enquanto as mulheres, cuidando de tarefas mais delicadas, mantinham uma condição física menos calejada, mais "macia".
As mudanças sociais na história não acontecem simplesmente em linha reta, mas em espiral, ou seja, à medida em que a civilização avança, ela vai repetindo ciclos, girando em torno das mesmas questões, revisitando antigos problemas.
Também há uma tendência destes ciclos girarem cada vez mais rápido. Assim, se em tempos antigos certos costumes e a ordem social duraram séculos, até que se completasse um ciclo, hoje em dia a sociedade pode experimentar mudanças radicais em apenas uma geração e às vezes até em poucos anos.
A humanidade desde sempre vivenciou o problema do ajuste social entre suas diversas classes. As classes podem se distinguir de diversas maneiras: governo, clero, comerciantes, militares, acadêmicos, nobres, párias, ricos, pobres, nativos, imigrantes, raças diversas... Todavia, desde o início da humanidade, sempre houve a mais fundamental das distinções de classes: homem e mulher. Adão e Eva.
Não que estes dois seres estejam fadados a uma guerra dos sexos, mas o fato é que, uma vez que a própria natureza realizou esta distinção fisiológica dentro da humanidade (bem como em diversas outras espécies de animais), o que vemos na prática é que homens e mulheres têm uma experiência de mundo diferente, influenciada por suas peculiaridades físicas.
Um exemplo bastante simples é o fato das mulheres (salvo raras exceções) conviverem ao longo de toda sua juventude e vida adulta com o fenômeno da menstruação e o desconforto relacionado. É uma condição que oferece limitações esporádicas que os homens nunca vivenciaram.
Nas sociedades primitivas, era o macharal que saía pra caçar, por razões óbvias. |
Em uma sociedade primitiva de caçadores, uma mulher sangrando e com cólicas não podia sair para caçar e praticamente todo mês as mulheres tinham de lidar com esta limitação. Já os homens nunca tinham de se preocupar com isto, de modo que eram mais apropriados para sair à caça.
Desnecessário é lembrar também o importante papel do hormônio testosterona na formação da estrutura física do homem e como, geralmente, a maioria dos homens sempre foi fisicamente mais forte do que as mulheres.
Sendo mais fortes, correndo mais rápido, tendo uma psique mais agressiva e livres de cólicas e da limitação imposta pela gravidez, era mais do que natural que nos povos primitivos as tarefas fossem divididas com base nos sexos. Não à toa, em praticamente todas as comunidades primitivas, os homens saiam para caçar, enquanto as mulheres se ocupavam das tarefas nas imediações da aldeia.
Isto explica, por exemplo, o fato da culinária ter se consagrado como uma atividade majoritariamente feminina. Os homens traziam a caça e as mulheres a preparavam para ser consumida e/ou armazenada.
Óbvio que, de acordo com a necessidade, havia mulheres caçadoras e homens cozinheiros, mas convenhamos que isto era a exceção à regra. O mais comum eram mulheres coletoras, que saiam da aldeia para colher frutas e pescar, mas, como ficou preservado até hoje nos costumes das tribos indígenas ainda existentes, vemos que são os homens os principais caçadores, que lidam com feras e situações mais perigosas.
Naturalmente, também os homens se tornaram mais guerreiros, afinal, quando saiam em grupo para caçar, eventualmente se deparavam com concorrentes, com outro grupo disputando a mesma caça, de modo que as armas e ferramentas desenvolvidas para matar animais também acabaram ganhando uso e se aprimorando na "arte" de matarem outros humanos. Assim nasceu a guerra como uma atividade majoritariamente masculina.
Curiosamente, mesmo no ambiente urbano moderno, que está milênios distante dos antigos costumes tribais, é bastante conspícuo o fato de que a maioria das tarefas que exigem mais esforço físico e que são mais perigosas é atribuída a homens.
Isto vemos no trabalho de pedreiros, carvoeiros, mineradores, pescadores em alto mar, estivadores e açougueiros que passam o dia carregando pesados fardos de carne nas costas. Até mesmo na coleta de lixo, nota-se uma distinção de tarefas, pois é mais comum vermos mulheres naquele contingente responsável por percorrer as ruas com um lixeiro portátil, fazendo a limpeza fina das ruas com vassoura, enquanto os homens correm na maratona de pegar os sacos de lixo para jogar no caminhão. Em toda minha vida, nunca vi, por exemplo, um entregador de gás ou de botijão de água que não fosse homem. É uma atividade majoritariamente masculina e que requer muita força física.
Esta distinção fisiológica entre homens e mulheres, que a princípio condicionou a separação de tarefas, também levou ao desenvolvimento de um sistema cada vez mais complexo, envolvendo costumes, valores e até a ética de uma sociedade. Para bem ou para o mal.
No caso das mulheres, o sistema foi para o mal de diversas maneiras. Sociedades em que as mulheres se tornaram posse de seus maridos, reis e sultões; onde foram privadas da participação nas decisões do grupo (o voto, por exemplo); onde eram dadas em casamento bastante jovens e sem direito a escolher ou dizer não...
Por outro lado, nos ciclos de ajuste das sociedades, também se estabeleceram sistemas visando proteger as mulheres, como a regra do "mulheres e crianças primeiro". Existe uma lógica evolutiva nesta regra tácita presente há séculos em diversas sociedades: em situações extremas que envolvem o risco da extinção ou genocídio de uma população ou grupo, a esperança de perpetuação deste grupo reside nas mulheres, uma vez que elas podem ter filhos.
"Mulheres e crianças primeiro!" |
Imagine uma situação hipotética em que ocorra um apocalipse zumbi. Você é um dos poucos sobreviventes que consegue se refugiar em uma ilha com outras pessoas, um grupo de 10 homens e 5 mulheres. Mas como se não bastasse a tragédia que todos viveram, eis que uma tempestade no horizonte anuncia um furacão que vai dizimar a ilhazinha.
É preciso fugir, mas só existe um barco funcional e com espaço para apenas 7 pessoas e com muito aperto. Mais do que isto e o barco sequer teria velocidade suficiente para fugir a tempo. Reunidos, estes sobreviventes terão de fazer uma sábia decisão envolvendo a salvação de uma parte e o sacrifício de outra. Eles sabem que têm nas mãos o destino do que resta da humanidade. Qual seria a escolha mais lógica?
A escolha mais bárbara seria a disputa pela força. Neste caso, provavelmente só entrariam homens no barco, depois de uma luta grotesca. A escolha mais passional seria o sorteio, uma forma de satisfazer a consciência de todos, pois ninguém teria a responsabilidade de tomar uma decisão. Que a sorte decida. Imagine se a sorte decidisse que 7 homens entrassem no barco. Acabou aí o futuro da humanidade.
Então temos a escolha lógica. Se precisamos garantir a maior chance de sobrevivência não só daqueles indivíduos, mas da espécie humana, todas as mulheres deveriam entrar no barco, assim elevando ao máximo as chances de perpetuação. Seriam 5 mulheres e 2 homens a partir.
Ok, é um exemplo bem extremo, mas serve para ilustrar de maneira simples a lógica do "mulheres e crianças primeiro". No filme Titanic (1997), uma das cenas mais marcantes é justamente a do momento em que é preciso evacuar o navio e a prioridade é dada às mulheres e crianças.
O personagem do DiCaprio, o Jack, inclusive se sacrifica num último gesto de cavalheirismo, cedendo o espaço da tábua de salvação para Rose (esta cena também acabou virando objeto de memes, pois abre espaço para a especulação jocosa de que na verdade cabiam os dois na tábua).
Isto nos leva ao tema do cavalheirismo medieval, um curioso sistema de divisão de tarefas, direitos e deveres baseado nas diferenças entre os sexos. O cavalheirismo criou uma ética e também uma etiqueta social para a maneira como os homens deveriam se portar com as mulheres. Era um código de respeito e proteção.
Evidente que este código exigia que ambas as partes assumissem seus papéis. O homem se tornava cavalheiro, praticando o respeito e a proteção. Num exemplo bem pitoresco: tirando o próprio casaco e colocando na lama para que a mulher possa atravessar a calçada sem se sujar. A mulher, por sua vez, se tornava dama, cultivando os atributos ditos femininos da delicadeza, doçura, os cuidados cosméticos, etc.
Obviamente hoje em dia este modelo não funciona de forma idêntica ao medieval, mas ainda tem os seus resquícios, às vezes em gestos bem banais, como no ato do homem abrir a porta do carro para a mulher ou de pagar a refeição, quando saem em um encontro no restaurante.
Como em toda regra, sempre houve suas exceções e em alguns casos surgiam até figuras romantizadas de pessoas que agiam à revelia do modelo cavalheiresco. O cafajeste, por exemplo, é a deturpação do cavalheiro. Ele pode ser comparado ao trovador que tinha uma vida errante e gostava de galantear as damas com suas canções, enquanto o cavalheiro, o marido da dama, estava ocupado arriscando a vida na guerra ou em uma longa viagem.
O cafajeste curiosamente exerce atração pela sua forma não convencional de tratar as mulheres, até com certo desrespeito, mas em uma medida que alcança o sensual, sem chegar ao limite do repulsivo. Da mesma forma existe a garota rebelde, a messalina, a mulher arredia que não aceita ser uma dama. E, como diz o ditado, para toda tampa há uma panela, de modo que tanto cafajestes quanto moças rebeldes sempre tiveram seus fãs.
No cinema, o cafajeste sempre chamou mais atenção do que os tipos cavalheiros. Os personagens do Harrison Ford, por exemplo, desde o Han Solo até o Indiana Jones e o Deckard de Blade Runner, faziam o tipo cafajeste. Ele agia com certa rudeza com o par romântico e a verdade é que as moçoilas dos anos 70-90 adoravam este tipo de personagem.
Há, porém, uma clara distinção entre o cafajeste o o homem abusivo, pois nos momentos de perigo o cafajeste assume a valentia cavalheiresca para proteger a mulher. Se ele fugir como um covarde e abandonar a mulher ao perigo, perde todo o seu sex appeal no imaginário do público.
No primeiro filme do Esquadrão Suicida (2016), o Coringa beira o limite entre o cafajeste e o abusivo, mas "passa no teste" quando a Arlequina está em perigo e ele vai resgatá-la. É claro que o Coringa não é o melhor dos exemplos para tratar de relações sociais e afetivas, pois ele é literalmente um psicopata.
O fato é que o cavalheirismo foi um avanço social benéfico, em geral. Sem dúvida foi muito melhor do que a maneira grosseira e violenta com que os povos bárbaros tratavam suas mulheres.
Do cavalheirismo ao feminismo. Lá e de volta outra vez
Como se nota na romantização do cafajeste do cinema, o cavalheirismo tem se tornado obsoleto na sociedade moderna. Todo o elaborado código medieval, se fosse seguido à risca por alguém hoje em dia, seria motivo de piada.
Embora ainda se admire o homem cavalheiro, existe também a iconoclastia deste valor outrora "sagrado". Um bom exemplo é o meme do "tips Fedora", em que vemos um gordinho que representa o estereótipo de um nerd e ele acena com o chapéu Fedora, como que dando uma cantada com ar cavalheiresco. O resultado é cômico.
O feminismo sempre expressou opiniões a respeito do cavalheirismo e aqui voltamos ao tema dos ciclos. É importante notar que não existe simplesmente um feminismo, mas feminismos. Ele costuma ser classificado em "ondas". A primeira onda, por exemplo, foi o feminismo sufragista, que teve o foco na emancipação política da mulher, representada emblematicamente na luta pelo direito ao voto. Foi uma inegável e importante conquista.
Ao longo das décadas, o feminismo e suas ondas foi assumindo diversas formas, algumas mais radicais, chegando ao nível da misandria explícita, e outras mais moderadas. Existem mistos de feminismo com outras causas ou ideologias, como feminismo cristão, feminismo anarquista, etc. Há vertentes que são aliadas do chamado movimento queer, bem como vertentes que antagonizam ou rejeitam associação com o mesmo.
Assim também os feminismos reagem de maneiras diferentes ao conceito de cavalheirismo. Há quem seja crítico em relação ao cavalheirismo, chegando a considerá-lo uma atitude machista e até abusiva (não me pergunte como). Gestos como pagar o jantar ou simplesmente abrir a porta do carro são interpretados como uma forma de dominação do homem sobre a mulher.
Existem também homens adeptos desta mentalidade que agora rejeitam o papel de cavalheiro e protetor das mulheres. Todavia, ainda prevalece na sociedade em geral uma herança atávica da milenar divisão de tarefas, o que se nota nas situações práticas do cotidiano.
Tomemos um exemplo curioso. Se um casal discute na rua e a mulher começa a bater no homem, dando tapas em seu rosto, uma reação que comumente acontece nas pessoas em volta é que elas evitam intervir e pode até mesmo acontecer de ficarem rindo do "cara que apanha de mulher".
Por outro lado, se na discussão o homem começa a estapear a mulher no meio da rua, não raro haverá uma comoção pública. As pessoas vão começar a ficar alarmadas e intervir, principalmente se houver transeuntes homens, que logo se juntam para dar uma surra no cara.
As pessoas comuns têm entranhada esta milenar distinção de papéis e levam em conta o contraste físico entre homens e mulheres. Se veem uma mulher batendo em um homem, não costumam ficar chocadas, porque é de se esperar que o homem seja capaz de suportar aquilo. Já no caso contrário, um homem batendo em uma mulher causa um choque, porque se supõe que o homem "tem a mão mais pesada" e ele causa muito mais dano ao bater na mulher do que ela ao bater no homem.
Com a obsolescência do cavalheirismo, ou desta noção ancestral de que homens são mais "duros" e mulheres mais "macias", a exposição da mulher à violência tem aumentado. Esta escalada da violência tem levado o feminismo (ou uma parte dele) a repensar a importância do cavalheirismo.
Não podemos descartar o fato de que a vida moderna, com todas suas facilidades e conforto proporcionados pela tecnologia, mudou radicalmente as condições de vida dos homens e mulheres, de modo que já não é tão necessária a formação do homem como o ser duro e fisicamente apto a lidar com feras e sair para caçar.
Tanto homens quanto mulheres podem desfrutar dos mesmos confortos e até mesmo modificar seus papéis sociais, gostos e comportamentos. Características consideradas há milênios como masculinas ou femininas podem ser adotadas por qualquer pessoa. Além deste aspecto estético, também existe o aspecto funcional. Em uma família, casal ou grupo, mulheres podem assumir papéis outrora exclusivamente masculinos e vice-versa.
A humanidade está mais maleável, mesmo assim esta maleabilidade não anula o atavismo milenar de certas diferenças básicas entre homens e mulheres ou, se preferir, entre macho e fêmea. A natureza realizou esta diferenciação e ela permanece importante em diversas situações.
As mulheres, em termos gerais, continuam fisicamente mais limitadas do que os homens¹. Enfatizo aqui que estamos falando de termos gerais, ainda que haja exceções. Ora, é óbvio que existem mulheres mais fortes que muitos homens, também maiores, mais altas, mas, em qualquer amostra que se faça de uma população, constatar-se-á que os homens em sua maioria tendem a ser mais altos, mais pesados, também fisicamente mais fortes em relação à parcela feminina.
Não à toa, os homens continuam ocupando a maioria dos trabalhos braçais mais rústicos e o entregador de garrafão de água ou de botijão de gás que chega na sua porta vai continuar sendo um homem, provavelmente sendo substituído no futuro apenas por um robô, quando então os homens finalmente estarão dispensados dos trabalhos braçais.
Sendo assim, mesmo que a vida moderna possibilite a fluidez nos atributos masculino e feminino, ainda é cedo para se pensar que é possível uma sociedade funcional em que se eliminem todas as distinções dos sexos. As pessoas são diferentes em diversos aspectos e a forma como lidam umas com as outras leva em conta estas diferenças.
Nós tratamos crianças e idosos de maneiras específicas; tratamos amigos e estranhos de formas diferentes. Sutis adaptações que fazemos no trato com as pessoas com base em características como idade, familiaridade ou mesmo sexo, são inevitáveis. Logo, não existe isto de "tratar a todos igualmente". Igualdade deve existir no campo dos direitos fundamentais, sem dúvida, mas nos relacionamentos humanos há toda uma diversidade de etiquetas e condutas que variam conforme a pessoa com quem estamos lidando.
É curioso, portanto, que, após o ciclo de desconstrução de antigos valores da sociedade, haja um retorno de certos aspectos destes valores em um formato moderno. Temas como cavalheirismo e feminilidade estão sendo repensados.
Galadriel, She-Hulk e a saturação da Mary Sue
Chegamos agora ao caso das personagens femininas na indústria de entretenimento. Na recente série baseada no universo de Senhor dos Anéis, The Lord of the Rings: The Rings of Power (2022-), a protagonista Galadriel rapidamente virou motivo de comentários entre o público, a mídia e críticos em geral, sendo que alguns chamaram atenção ao fato dela estar muito caracterizada como uma Mary Sue.
Mary Sue é o termo usado para se referir a um tipo clichê de personagem feminina que é basicamente uma pessoa invencível, sem falhas e até mesmo sem um arco de desenvolvimento. Ela já existe pronta, sendo muitas vezes usada como uma espécie de Deus ex machina. Se em uma situação de crise ela precisa ficar mais forte, ela simplesmente fica mais forte e resolve a crise com relativa facilidade.
Existe também a versão masculina, chamada Gary Stu. Talvez o maior exemplo de Gary Stu seja ninguém menos que o Superman, mas no caso dele isto dependerá bastante de como o roteiro vai tratá-lo. A fraqueza a kryptonita já é um elemento que previne o Superman de se tornar um Gary Stu completo. Também o fato dele precisar proteger sua família, seus pais, sua esposa e amigos, expõe uma "fraqueza" emocional que contribui para humanizá-lo.
Eu diria que o que diferencia uma Mary Sue ou Gary Stu de um bom personagem poderoso é a construção do personagem ao longo da história. Não gostamos de personagens que já surgem prontos e imutáveis. Gostamos de acompanhar um processo, seja a típica "jornada do herói", seja qualquer outra evolução.
Para citar um exemplo inesperado, vejamos a Bella, da saga Crepúsculo². Crepúsculo ganhou a pecha de ser uma obra amadora, praticamente uma fanfic de uma escritora iniciante. Bom, de fato era algo assim, o que chama ainda mais atenção se compararmos com o que os roteiristas de grandes franquias têm feito ultimamente com as personagens femininas. Crepúsculo realmente ensina como se construir mulheres poderosas.
No começo da saga, a Bella é uma personagem bem frágil, uma humana sem poderes e que precisa da proteção do Edward e seus amigos vampiros. Bella é tão indefesa que até adoece mortalmente quando engravida de um bebê vampiro e aí vem o processo de transformação. Ela é mordida pelo Edward e começa a experimentar a mudança no organismo e lentamente se recuperar.
Somente no filme seguinte, o último da pentalogia, ela se torna poderosa a ponto de ganhar na queda de braço contra os homens vampiros. A Bella teve uma jornada que a levou de frágil garotinha a uma vampira muito forte. É esta jornada que faz que ela esteja longe de ser uma Mary Sue. Ela é uma autêntica personagem feminina poderosa.
Para pegar um exemplo mais recente no vasto mundo dos filmes e séries da Marvel e DC, temos a personagem Stargirl³. A série agora está na terceira temporada e ainda vemos a Stargirl cometendo erros e precisando treinar suas habilidades. Ela não apareceu pronta, mas está evoluindo aos poucos. Isto a torna bem mais interessante, pois acompanhar o progresso, em meio a erros e acertos, de um personagem, é mais atraente para o público do que simplesmente assistir alguém imutável e perfeito.
Diferente da Stargirl, temos visto um aumento no número de personagens Mary Sue, o que parece ter nobres intenções (oferecer à cultura pop mais personagens femininas poderosas), porém a execução é preguiçosa e afobada, pois não há o cuidado de apresentar a longa jornada de evolução. Isto mostra como os roteiristas deste ramo parecem cada vez menos cientes de que a jornada é o que importa em um personagem.
Ora, um dos maiores exemplos de personagem masculino vencedor e que inspira os homens é o Rocky⁴. Rocky era um verdadeiro saco de pancadas. Ele nunca foi o boxeador mais forte, muito menos o mais talentoso ou preparado. Em toda a franquia, o lutador mais fodão foi o Drago, que era um verdadeiro Gary Stu sem profundidade.
O Rocky era querido pelo público e se tornou uma marcante inspiração para homens, meninos e também meninas e mulheres, mas não por ser um imbatível e indefectível herói. Ele se destaca pela perseverança, pela resiliência, pelo esforço e por tentar conviver com suas limitações e defeitos. Ao longo da franquia ele vai ficando ainda mais limitado fisicamente, mais doente, calejado, e isto só o torna um personagem ainda mais interessante.
É isto que os roteiristas atuais não entendem ao criar personagens femininas aparentemente visando inspirar o público feminino. Oferecem uma Mary Sue genérica e preguiçosamente construída que até pode atrair uma parte do público feminino, mas o fato é que as mulheres mereciam coisa melhor. Mereciam um roteiro melhor.
Um dos maiores exemplos da preguiça de roteiro foi a Rey Skywalker, uma personagem que se tornou uma poderosa jedi num piscar de olhos. Compare-se com a lenta evolução do Luke na trilogia clássica.
A Capitã Marvel foi outra que em um único filme solo se tornou a personagem mais poderosa do MCU, enquanto o Thor teve uma quadrilogia cheia de altos e baixos, decadência e retomada, uma jornada rica de experiências.
O contraste na construção de personagem se nota também entre Hulk e She-Hulk. Levando em conta os filmes solo e as participações do Hulk nos Vingadores e no filme do Thor, vemos que ele passou por altos e baixos, conflitos internos, traumas e uma jornada de autoconhecimento. A She-Hulk na série instantaneamente se torna uma versão melhorada do Hulk e é isso. Não há mais nada de humano nela.
Até a Batgirl da série da CW já nasceu pronta. Ela nem mesmo precisou criar a batcaverna e os gadgets, pois os herdou todos prontos do Bruce Wayne.
No último filme do Predador, Prey (2022), temos o caso da Naru, que vence o Predador com relativa facilidade, subvertendo a própria tradição da franquia em que os protagonistas sempre são inferiores aos predadores. Já era assim no primeiro filme com o Schwarza, um brutamontes que se borrou de medo do Predador e que passou um sufoco para vencê-lo, depois que toda sua equipe foi morta.
A questão é que os roteiros ultimamente só conseguem elevar uma mulher se a desenharem como se fosse invencível. Além disto não garantir verossimilhança, também revela uma preguiça criativa e falta de compreensão de que um personagem não precisa ser o mais forte para ser o mais interessante. Bem longe disso.
Nos filmes dos X-Men, o Wolverine de longe foi o personagem que mais se destacou. Acontece que ele não era o mais forte. Do grupo principal, na verdade, ele era o menos poderoso. O Ciclope atira raios dos olhos, a Jean Grey tem poderes fucking telecinéticos, o Xavier é um telepata formidável, até o Fera é mais forte que o Wolverine. O Wolverine apenas tem garras, não aparenta ter força sobre-humana, não voa, não é veloz. Sua única vantagem mesmo é o fator de cura, o que faz dele o saco de pancadas do grupo.
O que chama atenção no Wolverine é sua estética, seu "jeitão", as garras e até o corte de cabelo dão um aspecto cool, a personalidade é interessante porque ele não é certinho demais, nem é vilão. Ele é denso, tem camadas, enfim, é um personagem bem construído. Ele foi tão bem construído que passou por um processo ao longo dos filmes, até culminar em seu último estágio no filme Logan (2017).
Em Logan, ele não está mais forte. Ao contrário, está mais fraco, decadente, "nerfado" pela velhice. E é tudo isto que faz dele um personagem ainda mais interessante do que o jovem Wolverine dos primeiros filmes. Não é a força que faz um personagem atraente, é a sua complexidade e humanidade.
É este tipo de construção que as personagens femininas precisam. Em vez disto, a indústria oferece cada vez mais personagens fisicamente super fortes e resolvem as coisas na base do Deus ex machina. O que é isto senão um roteiro preguiçoso? É um descaso para com as mulheres disfarçado de atenção. Estas Mary Sue não parecem humanas. São robóticas, máquinas projetadas para serem melhores que todos, especialmente melhores que os homens.
A indústria do entretenimento compreende errado a lacuna das personagens femininas. Entende que é preciso preencher esta lacuna com personagens poderosas, dotadas de atributos másculos, o que deixa subentendido que, lá no fundo, estes roteiristas pensam que atributos femininos são um defeito a ser rejeitado, a ser substituído pela qualidade da virilidade e da força bruta. Para fazer justiça às mulheres, querem dar a elas características geralmente associadas aos homens, descartando o valor das virtudes femininas.
A ficção não precisa de personagens que sejam extremamente poderosas e com uma casca vazia. Precisa de personagens que sejam interessantes, profundas, complexas, humanas, bem escritas.
Para ser justo, podemos citar também exemplos de boas personagens femininas de ação. Desnecessário é lembrar exemplos clássicos como a Ripley, a Sarah Connor e a Beatrix Kiddo. Pegando exemplos mais recentes, temos filmes como Atomic Blonde (2017)⁵ e Destroyer (2018)⁶, com protagonistas que são badasses, mas que ganham hematomas, cometem erros, passam por sufocos e conflitos emocionais que as humanizam.
Game of Thrones é um bom exemplo de obra repleta de ótimas personagens femininas, fruto de um roteiro primoroso. Em sua maioria, elas são fisicamente mais frágeis do que os homens, porque é isto que vemos em nosso dia a dia. Esta diferença física é verossímil.
Daenerys é visivelmente menor e mais fraca que seu marido Drogo, Sansa não é uma guerreira como seu irmão Jon Snow, a Cersei não manja de combate com espada como seu irmão Jaime. E, apesar destas mulheres serem "inferiores" aos homens em termos físicos, de combate corpo-a-corpo, elas são poderosas de uma maneira feminina, com sua capacidade intuitiva, com a maneira de liderar.
Se Game of Thones fosse escrito por um destes roteiristas de Mary Sue, a Cersei entraria num confronto corpo a corpo contra o Montanha e venceria.
A construção das mulheres é tão bem realizada em GoT que, quando temos mulheres guerreiras e com atributos físicos masculinos, há uma razão muito específica para isto. A Brienne foi dotada pela natureza com um corpo gigante. É literalmente um mulherão. A Arya recebeu o treinamento de um mestre espadachim e de uma misteriosa ordem de assassinos.
Enquanto Gimli representa a força bruta masculina, Galadriel é a delicadeza feminina, e isto não reduz em nada sua imponência. |
O caso de Galadriel, na série The Rings of Power, ilustra muito bem como existe uma espécie de desprezo por atributos femininos que então são substituídos pelos masculinos a fim de elevar (empoderar) a mulher.
Ora, a Galadriel dos filmes de Senhor dos Anéis era formidavelmente poderosa, mas não a vemos lutando com espada. Na série ela foi substituída por outra pessoa completamente diferente. Em termos de RPG, é como se um personagem mago se tornasse guerreiro.
É curioso notar que em Lord of the Rings existe uma personagem feminina que contrasta com Galadriel, a Eowyn. Eowyn é uma mulher guerreira com espada e armadura, ocupando uma posição tipicamente masculina. Só que ela não era uma Mary Sue. A Galadriel de Rings of Power parece ser uma versão Mary Sue da Eowyn.
Por que a personagem passou por uma mudança tão radical? O que fica subentendido é isto: a fim de apresentar uma personagem feminina forte, ela foi despida da feminilidade para poder se assemelhar a uma guerreira. E é aí que está o erro, pois é um equívoco achar que feminilidade é igual a fraqueza.
O poder da feminilidade
A imagem de Maria é ao mesmo tempo delicada e poderosa, o que se nota no fato dela estar pisoteando a Serpente. |
A ironia do esforço da indústria de entretenimento em empoderar as mulheres com personagens fortonas, é que este tipo de caracterização acaba menosprezando as mulheres. Sim, pois dá a entender que uma mulher só é formidável quando encarna os típicos atributos masculinos da força física e selvageria.
A feminilidade se tornou problemática por ser associada a fraqueza e submissão, então, para certos roteiristas, a forma da mulher se elevar é deixando de ser feminina e equiparando-se aos homens. Nota o erro aqui? Atacar a feminilidade é atacar as mulheres.
Como já falei acima, é óbvio que na sociedade e na ficção tanto homens quanto mulheres podem adotar atributos ditos masculinos ou femininos de formas peculiares, mas não podemos negar que existem as classes que representam com mais frequência tais atributos. Em geral, mulheres representam a feminilidade e homens a masculinidade. Duh.
Banir a feminilidade é menosprezar as mulheres em geral (e devo mais uma vez enfatizar o "em geral" para que não haja dúvidas de que não estou negando a possibilidade de pessoas que não se encaixam nestes padrões).
Uma personagem mulher construída com seus atributos femininos enfatizados em nada diminuiria as mulheres. Ao contrário, seria um enaltecimento do feminino, da mulher típica. Existem mulheres que gostariam de ser assim representadas na ficção? Com certeza muitas.
Sim, esta é uma imagem de Maria dando um soco na cara do Diabo. |
Maria pisando no Dragão com estilo. |
E já que falamos de Mary Sue, falemos de outra Mary, a Maria. Sim, a Maria bíblica. Ela é sem dúvida um dos mais poderosos e influentes arquétipos femininos da cultura humana. Em certos aspectos, assemelha-se à Deusa-Mãe das antigas religiões tanto ocidentais quanto orientais. Só que ela é humana e, portanto, uma representante das mulheres em geral e particularmente das mães.
Vemos na milenar iconografia cristã como Maria é representada com uma aparência de delicadeza, um ar de compaixão. Na escultura da Pietá⁷, é ela quem acolhe o corpo do Messias morto, como que representando sua compaixão por toda a humanidade. Ao mesmo tempo, esta Maria é tão poderosa que também é representada pisando a Serpente ou o Dragão, ou seja, ela é mais forte que o Diabo e nem por isto foi preciso representá-la como um Sansão ou um Hércules, pois ela não precisa de atributos masculinos para ser forte.
Quer dizer então que é um erro representar personagens femininas musculosas ou másculas? Óbvio que não. Arquétipos andróginos também são importantes na ficção, algo que já comentei em outras ocasiões, como na resenha do filme Baahubali⁸.
O que estou chamando atenção aqui é ao fato de que a ficção moderna tem demonstrado um receio em explorar a pura feminilidade, recorrendo com frequência à aplicação de arquétipos masculinos em personagens femininas, o que deixa subentendido que um arquétipo feminino não é bom o suficiente para fortalecer a personagem.
Pois bem, a indústria de entretenimento ocidental tem muito o que aprender com os animes. Animes conseguem explorar uma boa variedade de arquétipos e tirar o melhor de cada um deles. Para ficar em um exemplo, vejamos Nanatsu no Taizai⁹.
A personagem Merlin é a pura feminilidade, uma feminilidade mais Babalon do que Maria¹⁰, mais sensual e dominadora. Em oposição a ela, a Elizabeth é o tipo Maria, mais doce e ingênua, o que não a impede de ser uma das personagens mais poderosas da série. Seu parceiro, Escanor, é a pura masculinidade, um "homão" enorme, musculoso, com a voz grave e bigode. Escanor inclusive tem um comportamento cavalheiro, o que completa seu arquétipo de perfeita virilidade.
Ban é o tipo masculino cafajeste, sendo mais jovial que Escanor e chegando no limite da androginia, mas não se tornando andrógino. Há dois andróginos, o Harlequin, que faz um tipo garoto delicado, mas não necessariamente afeminado, enquanto Gowther é completamente andrógino, inclusive se vestindo com roupas femininas.
Diane, por sua vez, é feminina, mas possui uma dose de masculinidade na sua força física, no fato de ser uma gigante e literalmente ter a mão pesada. Quanto ao Meliodas, é um homem padrão, não tão másculo quanto o Escanor, nem tão perto do Ban ou do Harlequin. Ele está no meio do espectro.
E também nos diversos personagens secundários da série vemos uma boa diversidade de tipos, de combinações de arquétipos masculinos, femininos e andróginos. Tem para todos os gostos. O fato é que a feminilidade em sua forma clássica não é rejeitada e nem retratada como fraqueza. É esta compreensão que falta na ficção ocidental ultimamente.
Não deu certo? Use a carta do sexismo
Um curioso fenômeno que tem se tornado cada vez mais comum é o fato de que, quando determinado show com protagonistas femininas não vai bem, os responsáveis (roteiristas, diretores, atores, etc.) buscam uma explicação no sexismo. "O filme teve baixa aceitação porque o público masculino não aceita protagonistas femininas".
Este tipo de postura aconteceu, por exemplo, diante do fracasso de filmes como Birds of Prey (2020), Ghostbusters (2016) ou quando o público criticou a pobre construção da personagem Galadriel em Rings of Power (2022). "Não é que os filmes ou as personagens sejam ruins, é o público que é sexista e não admite mulheres protagonistas".
Ora, se este fosse o caso, a rejeição de tais filmes ou séries seria sistemática. Se o público masculino rejeita protagonistas femininas, como explicar filmes protagonizados por mulheres que fazem sucesso? Por que esse machismo do público só se manifesta em determinados casos?
Kill Bill, uma épica saga de vingança de uma mulher, teve tanto sucesso que rendeu uma trilogia. Jogos Vorazes, protagonizado pela heroica Katniss, rendeu uma pentalogia. Resident Evil, com a super badass Alice, rendeu uma hexalogia. A Furiosa, de Mad Max Fury Road, foi reconhecida como uma grande badass tanto pelo público feminino quanto pelo masculino. A Wonder Woman é uma das mais populares super heroínas. Lara Croft tem um vasto universo de filmes e jogos, dezenas de jogos e que por décadas tiveram um público consumidor majoritariamente masculino.
Sexismo existe no mundo, é mais que evidente, e há pessoas patologicamente misóginas, mas a verdade é que a grande massa dos homens não rejeita personagens femininas e não vai deixar de ir ao cinema só porque a protagonista é mulher, bem como não fará um julgamento da qualidade do filme com base neste fato. A prova disso são as franquias de sucesso citadas acima.
Por acaso não há pais que fazem questão de levar suas filhas ao cinema para ver a Wonder Woman? Eles não ficam felizes em ver a empolgação da menina em assistir a uma super heroína? Quantos garotos já disseram: "Não vou jogar Tomb Rider porque a personagem é uma mulher"?
Acontece que, uma vez que o sexismo é um problema sério e real no mundo, tocar neste assunto cria uma blindagem a críticas. É uma cartada. "Não critique meu filme protagonizado por mulheres, pois isto é sexismo". Convenhamos, é uma maneira preguiçosa e ardilosa de se defender contra críticas à qualidade de seu produto.
O pior é que este tipo de postura dos profissionais de cinema em nada contribui para o sucesso das produções. Tentar se desculpar pelo fracasso de um filme culpando o público não vai trazer o sucesso, não vai aumentar a audiência, ao contrário, muito provavelmente vai espantar ainda mais as pessoas, pois ninguém gosta de ser gratuitamente acusado.
Notas:
1: Talvez nada seja tão poderoso em modificar costumes e valores de uma sociedade do que a tecnologia. A tecnologia vem minando a milenar divisão de papéis, uma vez que ela facilita os trabalhos tanto de homens quanto de mulheres. Em um futuro próximo, a tecnologia irá além, modificando até mesmo a condição física das pessoas, suplantando as limitações estabelecidas pela natureza.
A ficção cyberpunk é a que mais explora e especula a respeito desta futura realidade em que as pessoas terão seus corpos modificados por implantes biônicos, se tornando "transumanas". Ora, por meio destes aprimoramentos tecnológicos, é bem possível que a clássica diferença de força física entre homens e mulheres se torne obsoleta.
No Neuromancer, de William Gibson (1984), a personagem fisicamente mais poderosa é uma mulher, a Molly, que tem o corpo modificado por implantes cibernéticos que incluem garras retráteis.
Isto na certa vai intensificar a obsolescência do cavalheirismo, pois qual a necessidade de um homem levar as malas de uma mulher, se ela é tão forte quanto ele? Sem contar o fato de que os robôs ocuparão mais e mais as atividades braçais, liberando os homens do trabalho duro. O cavalheirismo curiosamente sobreviverá nos robôs, pois serão eles os prestativos seres a se oferecer para ajudar tantos homens quanto mulheres.
Vou além e enxergo ainda outro elemento bem cyberpunk que possivelmente terá um efeito no papel da mulher na sociedade futura: o "útero artificial". Sim, este é um tipo de tecnologia que já está em desenvolvimento e que cedo ou tarde se tornará comum.
Há motivos práticos, econômicos, políticos e até de saúde pública que podem favorecer o uso de um sistema de gestação em um dispositivo, literalmente um útero artificial. É um ambiente mais controlado, que pode contar com todo um aparato de monitoramento, prevenindo possíveis danos ao feto, fornecendo uma nutrição precisamente calculada, etc. Também pode ser um recurso para lidar com problemas de infertilidade.
Logo, se esse troço se tornar comum, a condição da mulher como "salvadora da espécie humana" será minimizada. Mulheres e homens se igualarão neste aspecto, uma vez que a máquina será capaz de reproduzir humanos, obviamente por meio da coleta de material genético. Assim como os robôs herdarão o papel de cavalheirismo dos homens, também herdarão o papel de perpetuadores da espécie, que sempre foi das mulheres.
Calma que as coisas podem não acontecer assim de forma tão brusca e bizarra. O mais provável é que, ao menos pelos próximos séculos, a humanidade ainda mantenha seu velho hábito de reprodução como a natureza determinou, mas com certos auxílios artificiais. Afinal, muita gente vai continuar preferindo a gravidez tradicional, por n motivos. De toda forma, o útero artificial será uma realidade com a qual teremos de nos adaptar e que trará consequências culturais.
10: Maria e Babalon
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