Qaligrafia
Séries, livros, games, filmes e eteceteras 🧙‍♂️

Hipergraficamente

Eu preciso escrever porque não posso falar. Meus pulmões não conseguem dar vazão a meus pensamentos represados. O verbo vale mais que a voz, assim como o símbolo supera a sílaba. É a grafia, a ideia em sua encarnação gráfica, que melhor comunica a mente. O som se perde no ar, a língua é caótica e imprecisa, usada apenas para falar às emoções. O código tem o poder mágico e duradouro que a efemeridade da magia falada não alcança. Que minha alma seja impressa, seja gravada em código. Que minhas inquietações sejam aliviadas na atividade táctil. Chegará ainda o dia em que os dedos não mais serão necessários para a escrita, mas mesmo lá, neste futuro, teremos mãos simbólicas, mãos espectrais construídas em nosso mundo cyberpsíquico, aptas a escrever em papiros digitais. Tudo o que já escrevi até agora é apenas um ensaio comparado ao universo de palavras que hei de construir neste mundo mental. A palavra é meu grande tesouro, um tesouro cuja fonte jamais seca, que contraria a lógica da escassez dos tesouros, pois quanto mais palavras eu uso, mais outras nascem em minha fonte. 

(30,04,2024) 

O terror da super empatia em Last Night in Soho

Last Night in Soho (2021)

Empatia é basicamente a capacidade de se colocar no lugar dos outros, e é sobre isso que trata o filme Last Night in Soho (2021), porém de uma maneira macabra.

Para analisar este filme, será preciso entrar em grandes spoilers, mas acho que é justo neste caso, porque a trama já arruína a si mesma no fato de ter muitos plot twists. Plot twist é aquela coisa: um já tá bom demais, dois também pode ser legal, mas acima de três já é demais e avacalha a história, porque cada novo twist diminui a importância e o impacto do anterior.

O filme começa de uma forma curiosa, mostrando a jovem Eloise (Thomasin McKenzie) em seu quarto ouvindo músicas antigas em um toca discos. Toda a ambientação dá a entender que ela vive nos anos 60 e que veremos um filme de época, até que a garota viaja para Londres e a vemos comprar uma latinha de Coca-Cola, uma latinha com seu design moderno e não aquele de décadas atrás. Estamos nos tempos atuais, a protagonista é que é deslocada no tempo, uma amante da estética dos anos 60.

Também notamos outra peculiaridade em Eloise. Ela em certo momento conversa com a falecida mãe. Será ela uma médium? Ou é apenas uma alucinação? Quando ela se muda para Londres a coisa fica ainda mais estranha, pois ela sai para uma noitada e a vemos se transformar em outra garota, uma loira que se apresenta como Sandy (interpretada pela Anya Taylor-Joy) e que tem um forte carisma, além da beleza e talento para performance musical.

Anya Taylor-Joy; Last Night in Soho (2021)

Ao longo da história vemos Eloise e Sandy se alternando, o que dá a entender que ela tem algum tipo de dupla personalidade ou talvez Sandy seja a sua sombra jungiana, pois esta outra persona é muito inconsequente e, em sua ambição por virar uma celebridade, acaba se envolvendo com um cafetão e trabalhando para ele, sabotando a si mesma, destruindo a inocência de Eloise, entrando numa espiral de decadência.

Até que em certo ponto Sandy morre. Mas como assim? Quer dizer então que Sandy não era outra personalidade de Eloise? Ou era de fato e a morte foi apenas simbólica? Aí a história muda de uma garota supostamente com dupla personalidade para alguém com sexto sentido que vê gente morta o tempo todo. Quer dizer então que Sandy era outra pessoa, uma garota que existiu nos anos 60 e cujas memórias Eloise resgatou de alguma forma empática. 

Ingênua, Eloise até procura a polícia para reportar o assassinato de Sandy que teria ocorrido nos anos 60 e que ela tem conhecimento por visões. Obviamente ninguém acreditou nela e ela foi tentar desvendar a coisa toda por conta própria. Aí tem outro plot twist, pois Eloise descobre da pior forma que Sandy na verdade não morreu, mas ainda existe como a senhorinha que alugou um quarto para Eloise. 

Esta senhora revela que após toda a decepção e os abusos na vida de prostituição, matou o cafetão e passou a matar os clientes e esconder seus corpos na casa. Como a casa não ficava fedendo a ponto de chamar atenção dos vizinhos? Eu não sei e o filme nunca explica.

Só então tudo fica claro. Eloise é uma empata. Ou melhor, uma super empata. Ela tem uma capacidade sobrenatural de se colocar no lugar dos outros. Quando ela se mudou para o quarto da senhorinha, seu poder empático a fez ter acesso às memórias dela em tal intensidade que até parecia que ela própria, Eloise, estava vivendo aquilo que Sandy viveu.

Esta empatia transcende o mundo dos vivos, pois ela também tem visões dos mortos, ela vê todos os clientes assassinados por Sandy e a princípio acha que eles a querem fazer mal, mas na verdade são almas penadas desesperadamente buscando ajuda, já que são mortos que foram dados como desaparecidos, esquecidos pelo mundo.

Matt Smith, Thomasin McKenzie, Anya Taylor-Joy; Last Night in Soho (2021)

A forma como Eloise vê a realidade, misturando o mundo real com memórias e elementos simbólicos, ficou bem apresentada no filme. Ela vive neste limbo entre fantasia e realidade, ou melhor, entre o mundo físico e o mundo psíquico. O uso de espelhos para representar este limiar entre os dois mundos é bem apropriado, uma figura que já é consagrada desde o conto de Alice.

Este é o problema da empatia: o empata sofre como se estivesse no lugar dos outros. Uma super empata como Eloise, então, sofreu ao ponto da loucura e desespero. Não fosse este seu sexto sentido, ela teria sido apenas uma garota comum e sonhadora, estudando moda e sem se meter em problemas. A empatia a envolveu em uma espiral de terror, em problemas que ela não causou, absorvendo um karma que não era dela.

Ó, empatas, pobres empatas! Aprendam a dizer não às vezes. Não aceitem em suas costas os fardos alheios.

Thomasin McKenzie, Compadre Washington

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Sobre galinhas e frenemizades

Creio que já comentei certa vez (oh, este blog tem mais de 1200 posts, de modo que já está ficando difícil lembrar tudo o que já escrevi) sobre observações que fiz no comportamento das galinhas que crio. 

Algumas delas são pacíficas e focadas em viver a vida delas. Outras são implicantes e vivem comprando briga. Quando levo comida para elas, as pacíficas se concentram em comer, enquanto as implicantes ficam correndo pra lá e pra cá, tentando espantar as outras, tentando ficar com toda a comida. Mas então quem come mais? No fim das contas, são as pacíficas, pois as implicantes perdem muito tempo neste esforço por incomodar e espantar as outras.

A violência e a rivalidade têm seus propósitos evolutivos, mas isto não significa que sejam sempre a melhor opção. Quanto mais desenvolvido é um grupo, menos necessária se torna a violência direta, pois este grupo saberá calcular o custo-benefício da violência em relação à paz (mesmo que seja uma paz armada).

As bestas se estranham por qualquer tolice. Basta um olhar ameaçador para iniciar uma luta mortal. Na sociedade humana, quando duas pessoas se esbarram na rua, elas podem até sentir em seu íntimo primitivo um desejo de reagir como as bestas, mas geralmente chegam à conclusão que não vale a pena, que é um desperdício de energia e tempo. Falam um rápido "desculpe" e seguem em frente.

Obviamente há aqueles que optam pelo caminho das bestas, pois são verdadeiras bestas, pessoas que vivem buscando problemas.

Na maioria das vezes, a inimizade e implicância não valem a pena. Poupe a violência para quando ela for de fato necessária, para a autodefesa. Não desperdice sua vida em implicâncias gratuitas. Viva e deixe os outros viverem.

Não é preciso nenhuma cartilha listando todas as coisas que você não deveria fazer contra outras pessoas. Não é preciso uma lista de "ismos" que você deve evitar. Basta saber isto: viva sua vida e deixe os outros viverem a delas.

É curioso como a implicância afeta até mesmo as relações supostamente mais pacíficas como as amizades. Existem amigos que passam do ponto ao provocar uns aos outros. Nunca sabem elogiar ou conversar amenidades, antes preferem ficar em um ciclo de insultos velados e tentativas de tirar o outro do sério ou encontrar algo para debochar de forma repetida, o chamado bullying.

Muitas pessoas acabam se rendendo a este tipo de relacionamento porque temem ser rejeitadas, ser consideradas chatas, que "não sabe brincar", ou porque também querem ter o direito de provocar os outros, aceitando as regras do jogo. O fato é que quem se comporta assim ainda não chegou à maturidade.

Implicâncias são inúteis. Elas não têm realmente um propósito no estabelecimento das relações. Elas não são mais eficientes em estreitar os laços do que demonstrações pacíficas de afeto. Muitas vezes são apenas o reflexo de uma personalidade ácida que não é capaz de tecer um elogio ou ter um sentimento de puro bem-querer, sempre misturando a sua simpatia com uma obscura antipatia, um desejo de causar incômodo.

Relações assim não duram. Pessoas implicantes vão passar a vida trocando de amizades, sugando vampirescamente as pessoas e jogando fora para buscar sangue novo. O frenemy é a galinha que, em vez que pacificamente comer ao lado das outras, fica bicando as vizinhas e no fim das contas nem come o suficiente, nem desenvolve uma boa relação no galinheiro. 

Anticorpos

A cada arranhão 
com suas garras venenosas
mais se aprimoram 
os meus anticorpos.

Agora identifico 
o soro antiofídico
adequado para cada 
um de teus artifícios.

(27,04,2024)


Frenemy

Qual a diferença entre o inimigo e o frenemy? O inimigo deseja a sua infelicidade, mas no fundo também não a deseja o frenemy? As motivações do inimigo, como o ódio e a inveja, existem no frenemy, só que mascaradas, dissimuladas. Talvez no fim das contas ele seja simplesmente um inimigo, porém covarde, incapaz de assumir abertamente a inimizade.

(27,04,2024)

O bosque e a komorebi

Eu sou o bosque e você é a komorebi.
O verde é meu, o amarelo é seu.
Com minhas folhas eu te enverdeci.
Com sua réstia você me amareleceu.

(21,04,2024)

A presunção dos vinte anos

Nos tempos de faculdade tive um certo professor que era muito culto e inteligente e, numa conversa com ele, me mostrou o encadernado de um livro que ele estava escrevendo. Eu peguei o volume e dei uma folheada, devolvendo com o comentário: "Muito bom". Percebi no rosto dele o sentimento de desconforto, mas na verdade na época eu não entendi completamente aquela expressão. Só muitos anos depois.

Ah, a presunção dos vinte anos. Eu tinha esta atitude de quem acha que sabe mais do que realmente sabe. E a forma como folheei o livro, fazendo um lacônico comentário, transpirava esta arrogância da juventude. Não posso dizer que hoje eu não tenha minha dose de arrogância. Pelo menos hoje tenho ciência dela e de tantas outras coisas. 

Na juventude nos falta este olhar crítico de si mesmo, o que é irônico, pois também há muita insegurança e uma constante autodepreciação no íntimo, mas isto é diferente da autocrítica e percepção de seus limites que a maturidade pode trazer (e ainda assim há muitos que jamais desenvolvem isto no passar dos anos).


Bateria social

Como um cacto que nasceu e cresceu em um deserto de solitude, o excesso de água não me traz saúde. Minha atenção e minha companhia são um elixir destilado e decantado, depositado a conta-gotas num pequeno frasco. Por favor, não me desperdice, não desgaste a minha bateria social. E, se eu me retirar, entenda: voltei para o deserto a fim de me recarregar.

(19,04,2024)

Grace O'Malley e Isabella, as duas principais figuras femininas do New World

Grace O'Malley; New World

Grace O'Malley é um dos principais NPCs do New World. Você se depara com ela bem no comecinho da aventura do jogo e vai retornando a ela diversas vezes ao longo da história, acostumando-se com a presença e os trejeitos desta personagem que é bem aventureira, sempre em busca de tesouros como uma típica pirata e com uma personalidade solar e otimista.

New World obviamente faz muitas referências à história dos tempos das grandes navegações e Grace é uma delas, pois de fato existiu uma verdadeira Grace O'Malley, uma pirata irlandesa nascida em 1530. Ela era de uma rica família de comerciantes marítimos, teve uma educação culta, sabendo inclusive falar latim.

Valente e aventureira, após herdar os negócios do pai ela foi além do comércio, dedicando-se à pirataria, lidando com os perigos do mar. Conta-se que, poucas horas após dar à luz, o navio dela foi invadido e, mesmo estando ainda na condição pós parto, ela saiu com espada na mão para expulsar os invasores.

Quando seu parceiro, Hugh de Lacy, foi morto pelo clã MacMahon, ela e seu bando partiram numa jornada de vingança, matando seus desafetos um a um e ainda capturando o castelo do clã. Estas e outras peripécias ela viveu por décadas, acumulando fama, inimigos, admiradores e riqueza, até falecer aos 73 anos.

A Grace do New World é uma versão mais amistosa, pacífica e menos trágica, dedicada apenas à diversão de encontrar tesouros e buscar grandes feitos. Pode-se dizer que ela é a segunda personagem feminina mais importante na lore, depois de Isabella, a grande estrela do jogo.

Isabella; New World

Isabella é um grande contraste com a Grace. Grace é solar, Isabella é lunar, sombria, séria e obscura. Outrora uma jovem pura e inocente, em sua busca por aventura no mundo fantástico de Aeternum ela se corrompeu, descobriu forças sinistras, perdeu a fé e passou a liderar a horda de corruptos com o objetivo utópico-distópico de transformar o mundo com o poder da corrupção.

Os players do New World costumam comentar muito sobre a Isabella devido ao fato dela ser a mais bela (e mais gostosa, diga-se de passagem) personagem do jogo. Enquanto a maioria dos personagens são bem feinhos, os designers capricharam na aparência da Isabella, uma espécie de gótica de dois metros de altura, vestida como uma dominatrix.

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O dia em que joguei Palia

Palia

Palia está no meu radar há um ano¹ e agora finalmente foi lançado na Steam. Quando tomei conhecimento deste MMO, fiquei bastante curioso, pois ele tem uma proposta diferenciada e voltada ao tipo de conteúdo que mais gosto em MMOs: coleta, exploração, construção e colecionismo.

Neste aspecto se assemelha bastante ao Stardew Valley, ainda mais no fato de que há um rico sistema de interação com os NPCs, o que transmite uma ideia de vida no ambiente. Os NPCs não servem apenas para dar missões, antes são seres com os quais você pode interagir com frequência, ter conversas sobre a lore daquele mundo e com o tempo seu relacionamento vai evoluindo, eles vão se tornando mais amigáveis e há até a opção de estabelecer relacionamentos amorosos (mas não em um nível NSFW hein).

Confesso que esta parte não me interessa muito. O que me interessa é o mundo, explorar, encontrar locais interessantes, colecionar itens, decorar a casa com objetos raros, etc. Isto também é um dos pontos fortes do jogo.

Até o momento joguei pouco mais de uma hora, de modo que pouco evoluí. Foi apenas um tour básico, conhecendo a jogabilidade e o mapa inicial. Cortei árvores, quebrei pedras, coletei flores e cacei alguns animais. Até aí tudo ok, mas tem um detalhe que pra mim foi importante na formação da minha primeira impressão: os gráficos.

Palia tem um visual estilo cartunesco, algo que lembra a estética do The Sims. Confesso que isso me desanimou a continuar jogando, pois acho enjoativo este tipo de design. É certo que já joguei por um bom tempo jogos assim, especialmente Runescape que até hoje é o MMO em que mais acumulei horas de jogo. Só que foram outros tempos, foi a minha infância gamer, quando conhecia poucos jogos de gráficos mais complexos e realistas.

A verdade é que uma vez que você experimenta gráficos mais ricos, você acaba estabelecendo um padrão e já não consegue se acostumar com algo mais simples, com gráficos "de massinha". E foi o New World que fez isto comigo. New World é lindo, com cenários caprichadíssimos (só os personagens e NPCs que são bem feinhos, salvo exceções, como a Isabella). Dá gosto caminhar pela floresta ou admirar o por do sol com sua luz atravessando a folhagem das árvores.

Palia está bem longe disso e de fato nunca será assim, pois a proposta estética é ser algo cartunesco. Vi então que este jogo não é para mim. Bom, pode ser uma questão de gosto do momento. Eu gostava do visual 2D isométrico do Tibia, por exemplo, e do estilo cartunesco de Borderlands, mas o fato é que atualmente quero ser deslumbrado pelo cenário. É algo que agora levo em conta. Além disso, com o Throne and Liberty aí batendo à porta, parece que não tenho interesse em nenhum outro MMO (além do New World, que ainda jogo).

Então me desculpe, Palia, mas não foi dessa vez.

Notas:


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Bola de neve

Existem sentimentos que são bola de neve. Começam como uma ideia banal, desimportante. Às vezes um pequeno desentendimento, um insignificante insulto, no ruminar da mente, na hermenêutica feita pela consciência, ganha sua real dimensão. O que estava por trás do ato trivial se revela e a bola de neve desce a ladeira. Quanto mais a mesma cena, as mesmas palavras, os mesmos gestos que despertaram o sentimento se repetem na memória, mais camadas esta bola de neve vai somando. Uma pequena contrariedade pode se tornar um ultraje; uma breve antipatia pode transformar-se em ranço; um tapa ganha o valor simbólico de uma facada, pois por trás de toda ação há um símbolo e o símbolo, uma vez revelado, expressa o verdadeiro peso de cada ação.

(17,04,2024)

The Continental, as origens do hotel da franquia John Wick

The Continental (2023)

John Wick, desde o primeiro filme, já se tornou um fenômeno pop e pode-se até mesmo dizer que ele deu início à renascença do gênero de ação¹.

A franquia se tornou bastante produtiva. Um filme que vira trilogia é certamente um sinal de sucesso. Se ele vai além da trilogia, então o sucesso está mais do que consolidado. Até o momento John Wick já possui uma quadrilogia e um filme spin-off, Ballerina, está previsto para 2025.

Além dos filmes, tivemos também uma série, The Continental (2023), focada no personagem Winston Scott (Colin Woodell). A série tem apenas 3 episódios, mas cada qual contando com uma hora e meia de duração, o equivalente, portanto, a uma temporada de 6 episódios de 45 minutos.

A trama se passa na década de 70 e mostra como Winston se tornou o gerente do hotel Continental, um braço em Nova York de uma vasta rede internacional. Na época, quem gerenciava o hotel era o egocêntrico Cormac (muito bem interpretado pelo Mel Gibson), que já contava com a presença do fiel mordomo Charon (interpretado em sua versão jovem pelo Ayomide Adegun).

Já nos primeiros 10 minutos a série mostra a que veio, com uma excelente cena de ação. Teremos muitas outras cenas no mesmo nível, fazendo jus a um produto da franquia John Wick. 

A série tem elementos de heist movie, o que inclui a presença de personagens bem peculiares, cada qual com seu jeitão. Um dos mais legais é o Jenkins (Ray McKinnon), um sniper muito tranquilo e amistoso. Ele invade um apartamento ao lado do hotel para ficar matando a bandidagem pela janela, mas a dona da casa aparece, uma indefesa senhorinha. Ele com muita cautela faz ela de refém e continua seu trabalho de sniper enquanto amistosamente conversa com ela.

Hansel and Gretel; The Continental (2023)

Bem diferente do Jenkins, temos os gêmeos, chamados de Hansel e Gretel (Mark Musashi, Marina Mazepa). Eles têm um jeito bem esquisito, o olhar fixo, gestos sincronizados e parecem ser os mais habilidosos em todo aquele mundo do crime. Seria interessante ver o John Wick lutando contra estes dois, o que não será possível porque eles acabam morrendo.

Notas:


Palavras-chave:

Mansomean


Existe um certo conflito
de atitudes em mim.
Metade de mim é mansa,
metade de mim é mean.

(09,04,2024)

Cocozuda

A galinha, a galinha cocozuda¹
tá fazendo, tá fazendo um cocozão.
Não é um cocozinho que faz essa galinha,
não é um cocozinho, é cocozão.

(14,04,2024)

Notas

1: Eu crio umas galinhas muito gordas e gulosas. Elas comem de tudo e tanto comem que acabam fazendo uns toletes enormes. Estes dias, ao me deparar com uma dessas monstruosidades, acabei improvisando esses versinhos. Achei curioso que "cocozuda" pode tanto se referir ao fato de que ela faz muito cocô, quanto à onomatopeia de cocoricó. A galinha é duas vezes cocozuda: no constante cacarejo que ela faz e na pilha de adubo que produz. E sim, às vezes tenho meus momentos de besteirol.

Oppenheimer

Oppenheimer (2023)

Nolan é um cineasta peculiar. Como um Hermes trafegando entre o Olimpo e a Terra, ele consegue conciliar o cult e o pop. Não é tão hermético e complicado como o cinema cult, nem tão raso e banal como o cinema pop. Algo que o torna atraente para a cultura pop é o fato de que ele mistura papo cabeça com ação e deslumbrantes cenas que combinam efeitos práticos e especiais. De certa forma, pode-se dizer que Nolan é um Michael Bay erudito.

Em Oppenheimer (2023), porém, ele foge desta fórmula. Não há cenas de ação, os efeitos especiais são raros e resumem-se aos breves momentos de exibição da bomba atômica. O filme é em sua maioria composto de diálogos, muitos e longos diálogos. Isto pode entediar uma parte do público, inclusive fãs do Nolan que não estavam esperando algo assim.

Caso você desligue a expectativa por aquele Nolan dos efeitos especiais e da ação, então vai poder desfrutar melhor o longa. Assistir Oppenheimer é como ler um livro biográfico onde os diálogos importam mais que os eventos.

A cena em que ele se reúne com militares, políticos e cientistas para escolher qual cidade do Japão devem atacar tem um diálogo tenso e profundo. Imagine que isto de fato aconteceu, que pessoas no fim da Segunda Guerra tiveram que travar esta conversa e tomar a decisão de lançar a bomba no seio de duas cidades repletas de civis.

Ao contrário do que se espera, porém, não é um filme sobre a guerra ou sobre a criação da bomba atômica. Estas coisas estão no contexto da história que é focada em um evento específico, a Audiência de Segurança de Oppenheimer, que ocorreu em 1954 e resultou na revogação das credenciais elevadas do cientista junto ao governo dos EUA, reduzindo sua influência política e sua participação em decisões estratégicas envolvendo o programa atômico do país.

Nolan costuma trafegar entre gêneros cinematográficos. Já fez filme de assalto, como Inception (2010)¹, sci-fi espacial em Interstellar (2014)², filme histórico de guerra em Dunkirk (2017)³ e de guerra futurista em Tenet (2020)⁴. Até mesmo se aventurou pelo gênero de super-heróis de quadrinhos na trilogia Batman.

Em Oppenheimer ele envereda pelo gênero biográfico misturado com julgamento. No caso, não se trata de um julgamento de tribunal, pois Oppenheimer não cometeu um crime. Tratava-se mais de uma demissão. Os EUA viviam o auge da Guerra Fria e da tolerância zero para com qualquer tipo de relação com o comunismo. Na juventude, Oppenheimer participou de associações comunistas e tinha amigos declaradamente comunistas. 

É bom notar que o comunismo antes e durante a Segunda Guerra não era visto pelos EUA da mesma maneira que foi na Guerra Fria. De fato, Stalin aliou-se aos EUA contra o inimigo comum do Eixo. Após a guerra, porém, rapidamente se formou uma rivalidade entre as duas potências e a corrida nuclear intensificou ainda mais esta rivalidade, com espiões de ambos os lados rondando por toda a parte.

O passado de Oppenheimer, discordâncias entre ele e as autoridades americanas e outras picuinhas políticas resultaram na audiência que "demitiu" o cientista, encerando o seu reinado na política nuclear.

O filme de fato é baseado em um livro biográfico, American Prometheus, escrito por Kai Bird e Martin J. Sherwin. A trilha sonora, embora pareça lembrar algo de Hans Zimmer, é de autoria de Ludwig Göransson, que inclusive já compôs para Nolan em Tenet (2020). Com um orçamento de 100 milhões de dólares, o longa chegou perto do bilhão, arrecadando, até o momento, 967 milhões.

O fenômeno Barbenheimer

Barbenheimer

Algo curioso no lançamento é que Oppenheimer foi exibido nos cinemas na mesma época que Barbie⁵. Dois filmes tão distintos. Um com temática lúdica e infantil, o outro totalmente sério e adulto; um com estética colorida, solar, cheia de rosa, o outro sombrio e evocando a morte. Ambos, porém, falam de guerra. Esta rivalidade de ambos os filmes gerou o meme Barbenheimer.

Enquanto Oppenheimer se passa durante a Segunda Guerra Mundial, Barbie narra o conflito, uma verdadeira guerra civil, que estoura no mundo da Barbie, a Barbieland, depois que os Kens que ali vivem tomam consciência de um negócio chamado "patriarcado" e resolvem tomar o poder. 

Narcisismo e a mente universal

Einstein and Oppenheimer; Oppenheimer (2023)

Na versão do filme, o grande responsável pelo processo que derrubou Oppenheimer foi um dos membros da Comissão de Energia Atômica, Lewis Strauss (interpretado pelo Robert Downey Jr.). Ele teria mexido os pauzinhos para levar Oppenheimer a julgamento.

Ao longo da trama vemos como Strauss criou uma espécie de ranço contra Oppenheimer e muitas vezes por causa de situações banais. Tudo começou quando Oppenheimer se encontrou brevemente com Einstein e, após poucos minutos de conversa, Einstein se retirou com uma feição circunspecta, passando por Strauss sem sequer falar com ele.

A partir daí Strauss passou a suspeitar que Oppenheimer inflamava os outros cientistas contra ele. Ele ficou a vida toda curioso sobre o que foi dito para que Einstein não falasse com ele naquela ocasião. No final do filme vemos que este foi de fato um momento chave, pois é revelada a conversa dos dois grandes cientistas.

Acontece que Oppenheimer contou vagamente para Einstein sobre o projeto nuclear e que agora a humanidade tinha o poder de destruir o mundo. Einstein obviamente ficou abalado com esta notícia e se retirou perdido em pensamentos, ignorando a presença de Strauss.

O narcisista Strauss esse tempo todo só pensava em si mesmo e na sua carreira no programa nuclear americano. Com o sentimento de que tudo gira ao seu redor, típico de narcisistas, ele achava que Oppenheimer tinha manipulado Einstein para odiá-lo, mas a verdade é que tanto Oppenheimer quanto Einstein não tinham o menor interesse em Strauss, pois estavam ocupados em algo maior: o futuro da humanidade.

Essa é a diferença entre a mente narcisista, que só pensa em si, e a mente universal, que se ocupa em problemas maiores, que está sempre pensando na humanidade, na civilização, no planeta. Einstein e Oppenheimer tinham este tipo de mente, enquanto Strauss (na versão do filme, pelo menos), era apenas um narcisista carreirista. 

A filosofia da era atômica

A história humana não é tão simples como a ficção. No mundo real não existem heróis perfeitos e o próprio conceito de herói é questionável. O que dizer então da bomba atômica? Foi a pior coisa já criada pela humanidade, ou a melhor?

Sim, convido-o a atravessar a fronteira do senso comum e imaginar além do óbvio. A princípio é fácil pensar que "bombas são ruins, logo a bomba atômica é uma péssima ideia e isso é inquestionável". Pensemos, porém, na humanidade e em seu histórico milenar de conflitos. O conflito faz parte da raça humana desde sempre. As tribos mais primitivas brigavam com paus; os paus viraram espadas; as espadas, fuzis; os fuzis, foguetes; enfim, a bomba atômica.

Se a bomba atômica não tivesse sido criada, o mundo continuaria com seus conflitos da mesma forma e podemos até supor que os conflitos seriam ainda piores do que os que hoje presenciamos. Sabe por quê? Isso mesmo, porque não haveria um instrumento de dissuasão poderoso o suficiente para manter as nações sob certos limites.

Se não existisse uma arma do juízo final, as nações mais poderosas poderiam atacar umas às outras com ferocidade e poderio cada vez maior, sem que houvesse nenhuma força poderosa o suficiente para convencê-las a recuar. 

A bomba atômica estabeleceu um impasse mexicano no mundo. Sim, as nações continuam promovendo guerras, mas existe um limite tácito nelas. Nenhuma nação ousa ultrapassar este limite, pois todos os líderes e generais do mundo sabem que, ao fazer isto, vão condenar a si mesmos e a toda humanidade. Ninguém sai vencedor se toda a superfície da Terra for destruída.

Uma guerra nuclear seria o fim de todas as guerras e também o fim da civilização. Ninguém em sã consciência desejaria isto. Políticos, militares, mega corporações... por mais que haja pessoas extremamente ambiciosas, inescrupulosas e mesmo malignas nas altas esferas de poder do mundo, nenhuma delas deve desejar viver em um planeta devastado e envenenado por radiação.

Desta forma, a bomba atômica ao mesmo tempo se tornou a mais perigosa arma da humanidade bem como o seu mais eficiente e persuasivo instrumento de paz. Não significa, obviamente (e convém salientar mais uma vez o que já falei acima), que as guerras acabaram, mas elas agora estão presas dentro de certas fronteiras que nenhum general ousará ultrapassar.

Provavelmente as gerações futuras encontrarão formas mais sofisticadas de garantir a paz mundial, mas até lá, a bomba atômica é o que temos de melhor, é a coleira que segura a ferocidade humana até um limite suportável. É a ironia das ironias. Para garantir a sobrevivência da civilização, estamos sob a ameaça de uma arma que pode facilmente aniquilar a civilização.

Nuclear War simulation

Notas:






Palavras-chave:


Oceano da solitude

Acostumado a ter espinhos, já não me surpreendo quando espeto quem se aproxima. Já se tornou uma sina, algo que eu aceito como parte de minha senda. Duro e suave, casca e miolo. Sinto espetar em mim a mesma ponta com a qual espeto os outros. Aprendi então a arte da distância, a arte de evitar a colisão das almas, pois a minha é pesada demais. Navego como um leviatã no oceano da solitude. Quando ocasionalmente cruzo o caminho de alguém, receio a colisão e busco uma órbita segura. O oceano, de toda forma, é vasto, e as ilhas são poucas. Passo pelas ilhas a longos intervalos e, mesmo deixando todas elas para trás, ficam gravadas para sempre no meu mapa.

(06,04,2024)

The Northman, a lenda nórdica que inspirou Hamlet

The Northman (2022)

The Northman (2022)

A tragédia grega, ou melhor, todo o folclore e mitologia grega, está repleta de dramas envolvendo famílias disfuncionais, relações problemáticas e até mesmo pervertidas entre parentes, sejam humanos, deuses ou semideuses. Esta temática sombria, porém, não é exclusiva dos gregos.

The Northman (2022) é baseado em uma antiga lenda nórdica do herói Amleth, relatada na obra do historiador Saxo Grammaticus. No filme, a narrativa se passa no século IX, quando o rei Aurvandill é morto por seu irmão bastardo Fjölnir, que ainda rouba sua esposa Gudrún. 

Amleth, filho do casal real, consegue fugir e passa anos sonhando com a vingança. Já adulto, forte e guerreiro, ele se deixa levar como escravo a fim de encontrar Fjölnir e dar início à sua vingança, numa série de ataques que vão semeando o terror e a superstição, até que enfim ocorre o embate final entre os dois. 

Só que nesta jornada Amleth tem seu destino e seus planos interferidos por eventos inesperados. Ele se apaixona pela escrava e feiticeira Olga, descobre que sua mãe não era uma mera donzela em perigo, mas a grande mente pervertida por trás de toda sua tragédia, e tem de escolher entre salvar Olga e sua futura prole ou seguir com seu plano de vingança até as últimas consequências.

Robert Eggers é um daqueles diretores que têm poucos filmes, mas que foi bem elogiado em todos. Ele tem seu estilo peculiar, um ar místico e sombrio, com forças malignas pagãs pairando no ar, como se vê em The Witch (2015) e mesmo em The Lighthouse (2019)¹.

O próprio Eggers comentou sobre seu interesse por paganismo em entrevista: 

"Witch mythology, folklore, occult, I’m perhaps more interested in that stuff than film itself. Before even writing this movie, I'd spend most of my time reading that stuff, anyway. I’ve been very interested in reading about the past and witches ever since I was a kid, even though I didn’t know nearly as much as I do now. In most of the work I’ve done in the past and screenplays I wrote that no one wanted to make, they all sort of aligned within that. I wanted to make an archetypal New England horror story, and that was always the goal."²

O animismo permeia a visão de mundo mística dos personagens, com rituais que invocam espíritos de animais e a sensação de forças sobrenaturais em todo o ambiente. Em uma visão, Amleth toma conhecimento de uma espada lendária que é guardada pelo esqueleto de seu primeiro dono. Ao encontrar o esqueleto com a espada, Amleth trava uma batalha mental, psíquica, com aquele cadáver, até enfim se apoderar da espada.

The Northman é a obra mais mais visceral e bruta de Eggers, com cenas de batalhas sangrentas e cabeças rolando. Há um certo ar teatral na performance dos atores, uma espécie de homenagem ao teatro shakespeareano, uma vez que a lenda de Amleth foi a inspiração para a obra Hamlet, de Shakespeare. 

É comum os diretores trabalharem repetidas vezes com os mesmos atores que se tornam seus queridinhos. Aqui temos o retorno da Anya Taylor-Joy, com quem Eggers trabalhou em The Witch, e do Willem Dafoe, que atuou em The Lighthouse.

Alexander Skarsgård; The Northman (2022)

Notas:



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