Nolan é um cineasta peculiar. Como um Hermes trafegando entre o Olimpo e a Terra, ele consegue conciliar o cult e o pop. Não é tão hermético e complicado como o cinema cult, nem tão raso e banal como o cinema pop. Algo que o torna atraente para a cultura pop é o fato de que ele mistura papo cabeça com ação e deslumbrantes cenas que combinam efeitos práticos e especiais. De certa forma, pode-se dizer que Nolan é um Michael Bay erudito.
Em Oppenheimer (2023), porém, ele foge desta fórmula. Não há cenas de ação, os efeitos especiais são raros e resumem-se aos breves momentos de exibição da bomba atômica. O filme é em sua maioria composto de diálogos, muitos e longos diálogos. Isto pode entediar uma parte do público, inclusive fãs do Nolan que não estavam esperando algo assim.
Caso você desligue a expectativa por aquele Nolan dos efeitos especiais e da ação, então vai poder desfrutar melhor o longa. Assistir Oppenheimer é como ler um livro biográfico onde os diálogos importam mais que os eventos.
A cena em que ele se reúne com militares, políticos e cientistas para escolher qual cidade do Japão devem atacar tem um diálogo tenso e profundo. Imagine que isto de fato aconteceu, que pessoas no fim da Segunda Guerra tiveram que travar esta conversa e tomar a decisão de lançar a bomba no seio de duas cidades repletas de civis.
Ao contrário do que se espera, porém, não é um filme sobre a guerra ou sobre a criação da bomba atômica. Estas coisas estão no contexto da história que é focada em um evento específico, a Audiência de Segurança de Oppenheimer, que ocorreu em 1954 e resultou na revogação das credenciais elevadas do cientista junto ao governo dos EUA, reduzindo sua influência política e sua participação em decisões estratégicas envolvendo o programa atômico do país.
Nolan costuma trafegar entre gêneros cinematográficos. Já fez filme de assalto, como Inception (2010)¹, sci-fi espacial em Interstellar (2014)², filme histórico de guerra em Dunkirk (2017)³ e de guerra futurista em Tenet (2020)⁴. Até mesmo se aventurou pelo gênero de super-heróis de quadrinhos na trilogia Batman.
Em Oppenheimer ele envereda pelo gênero biográfico misturado com julgamento. No caso, não se trata de um julgamento de tribunal, pois Oppenheimer não cometeu um crime. Tratava-se mais de uma demissão. Os EUA viviam o auge da Guerra Fria e da tolerância zero para com qualquer tipo de relação com o comunismo. Na juventude, Oppenheimer participou de associações comunistas e tinha amigos declaradamente comunistas.
É bom notar que o comunismo antes e durante a Segunda Guerra não era visto pelos EUA da mesma maneira que foi na Guerra Fria. De fato, Stalin aliou-se aos EUA contra o inimigo comum do Eixo. Após a guerra, porém, rapidamente se formou uma rivalidade entre as duas potências e a corrida nuclear intensificou ainda mais esta rivalidade, com espiões de ambos os lados rondando por toda a parte.
O passado de Oppenheimer, discordâncias entre ele e as autoridades americanas e outras picuinhas políticas resultaram na audiência que "demitiu" o cientista, encerando o seu reinado na política nuclear.
O filme de fato é baseado em um livro biográfico, American Prometheus, escrito por Kai Bird e Martin J. Sherwin. A trilha sonora, embora pareça lembrar algo de Hans Zimmer, é de autoria de Ludwig Göransson, que inclusive já compôs para Nolan em Tenet (2020). Com um orçamento de 100 milhões de dólares, o longa chegou perto do bilhão, arrecadando, até o momento, 967 milhões.
O fenômeno Barbenheimer
Algo curioso no lançamento é que Oppenheimer foi exibido nos cinemas na mesma época que Barbie⁵. Dois filmes tão distintos. Um com temática lúdica e infantil, o outro totalmente sério e adulto; um com estética colorida, solar, cheia de rosa, o outro sombrio e evocando a morte. Ambos, porém, falam de guerra. Esta rivalidade de ambos os filmes gerou o meme Barbenheimer.
Enquanto Oppenheimer se passa durante a Segunda Guerra Mundial, Barbie narra o conflito, uma verdadeira guerra civil, que estoura no mundo da Barbie, a Barbieland, depois que os Kens que ali vivem tomam consciência de um negócio chamado "patriarcado" e resolvem tomar o poder.
Narcisismo e a mente universal
Na versão do filme, o grande responsável pelo processo que derrubou Oppenheimer foi um dos membros da Comissão de Energia Atômica, Lewis Strauss (interpretado pelo Robert Downey Jr.). Ele teria mexido os pauzinhos para levar Oppenheimer a julgamento.
Ao longo da trama vemos como Strauss criou uma espécie de ranço contra Oppenheimer e muitas vezes por causa de situações banais. Tudo começou quando Oppenheimer se encontrou brevemente com Einstein e, após poucos minutos de conversa, Einstein se retirou com uma feição circunspecta, passando por Strauss sem sequer falar com ele.
A partir daí Strauss passou a suspeitar que Oppenheimer inflamava os outros cientistas contra ele. Ele ficou a vida toda curioso sobre o que foi dito para que Einstein não falasse com ele naquela ocasião. No final do filme vemos que este foi de fato um momento chave, pois é revelada a conversa dos dois grandes cientistas.
Acontece que Oppenheimer contou vagamente para Einstein sobre o projeto nuclear e que agora a humanidade tinha o poder de destruir o mundo. Einstein obviamente ficou abalado com esta notícia e se retirou perdido em pensamentos, ignorando a presença de Strauss.
O narcisista Strauss esse tempo todo só pensava em si mesmo e na sua carreira no programa nuclear americano. Com o sentimento de que tudo gira ao seu redor, típico de narcisistas, ele achava que Oppenheimer tinha manipulado Einstein para odiá-lo, mas a verdade é que tanto Oppenheimer quanto Einstein não tinham o menor interesse em Strauss, pois estavam ocupados em algo maior: o futuro da humanidade.
Essa é a diferença entre a mente narcisista, que só pensa em si, e a mente universal, que se ocupa em problemas maiores, que está sempre pensando na humanidade, na civilização, no planeta. Einstein e Oppenheimer tinham este tipo de mente, enquanto Strauss (na versão do filme, pelo menos), era apenas um narcisista carreirista.
A filosofia da era atômica
A história humana não é tão simples como a ficção. No mundo real não existem heróis perfeitos e o próprio conceito de herói é questionável. O que dizer então da bomba atômica? Foi a pior coisa já criada pela humanidade, ou a melhor?
Sim, convido-o a atravessar a fronteira do senso comum e imaginar além do óbvio. A princípio é fácil pensar que "bombas são ruins, logo a bomba atômica é uma péssima ideia e isso é inquestionável". Pensemos, porém, na humanidade e em seu histórico milenar de conflitos. O conflito faz parte da raça humana desde sempre. As tribos mais primitivas brigavam com paus; os paus viraram espadas; as espadas, fuzis; os fuzis, foguetes; enfim, a bomba atômica.
Se a bomba atômica não tivesse sido criada, o mundo continuaria com seus conflitos da mesma forma e podemos até supor que os conflitos seriam ainda piores do que os que hoje presenciamos. Sabe por quê? Isso mesmo, porque não haveria um instrumento de dissuasão poderoso o suficiente para manter as nações sob certos limites.
Se não existisse uma arma do juízo final, as nações mais poderosas poderiam atacar umas às outras com ferocidade e poderio cada vez maior, sem que houvesse nenhuma força poderosa o suficiente para convencê-las a recuar.
A bomba atômica estabeleceu um impasse mexicano no mundo. Sim, as nações continuam promovendo guerras, mas existe um limite tácito nelas. Nenhuma nação ousa ultrapassar este limite, pois todos os líderes e generais do mundo sabem que, ao fazer isto, vão condenar a si mesmos e a toda humanidade. Ninguém sai vencedor se toda a superfície da Terra for destruída.
Uma guerra nuclear seria o fim de todas as guerras e também o fim da civilização. Ninguém em sã consciência desejaria isto. Políticos, militares, mega corporações... por mais que haja pessoas extremamente ambiciosas, inescrupulosas e mesmo malignas nas altas esferas de poder do mundo, nenhuma delas deve desejar viver em um planeta devastado e envenenado por radiação.
Desta forma, a bomba atômica ao mesmo tempo se tornou a mais perigosa arma da humanidade bem como o seu mais eficiente e persuasivo instrumento de paz. Não significa, obviamente (e convém salientar mais uma vez o que já falei acima), que as guerras acabaram, mas elas agora estão presas dentro de certas fronteiras que nenhum general ousará ultrapassar.
Provavelmente as gerações futuras encontrarão formas mais sofisticadas de garantir a paz mundial, mas até lá, a bomba atômica é o que temos de melhor, é a coleira que segura a ferocidade humana até um limite suportável. É a ironia das ironias. Para garantir a sobrevivência da civilização, estamos sob a ameaça de uma arma que pode facilmente aniquilar a civilização.
Notas:
3: Dunkirk
Palavras-chave:
Christopher Nolan, Cillian Murphy, Emily Blunt, Ludwig Göransson, Matt Damon, Robert Downey Jr., Syncopy, Universal Pictures
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