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A inevitabilidade do transumanismo

Kevin Warwick

O transumanismo é um conceito que está se tornando cada vez mais notável, tanto na ficção quanto na vida real. Na ficção já é algo bem comum, como vemos nas histórias de super-heróis, no Capitão América, que foi fisiologicamente modificado lá na década de 40, e no sci-fi cyberpunk em que vemos pessoas com implantes cibernéticos. Na vida real, temos o caso recente do Neuralink, um produto ainda em desenvolvimento, mas que promete levar a humanidade definitivamente para uma era estilo cyberpunk.

É um tema controverso, que tem entusiastas fanáticos, bem como críticos ferrenhos que tecem teorias conspiratórias (ou, pelo menos, são assim chamadas até que um dia percebemos que a coisa é real) sobre o uso da tecnologia para desfigurar o ser humano e transformá-lo literalmente num ciborgue.

Bom, mesmo que evitemos enxergar o assunto com o ultrapessimismo das teorias conspiratórias, ainda assim o chamado transumanismo nos dá muitos motivos para preocupações. Uma das preocupações mais consistentes tem a ver com o fato de que grandes empresas, detentoras das tecnologias de aprimoramento humano, movidas pela tão conhecida ganância, violem direitos básicos das pessoas por meio destas tecnologias.

Ou seja, uma vez que uma empresa colocou um chip na sua cabeça ou implantes no seu corpo e estes dispositivos geram big data, o seu corpo terá a privacidade roubada por tais empresas, sedentas de dados sobre você. 

Já experimentamos esta monitoração nos dispositivos que usamos para acessar a internet e estamos tão acostumados que normalmente nem nos importamos mais. No futuro, porém, a coisa vai ficar bem bizarra, pois o monitoramento vai chegar literalmente aos nossos corpos.

Transumanismo implicará em intervenções físicas em nosso corpo. Chips, próteses, dispositivos contendo circuitos, emitindo sinais eletromagnéticos, feitos de substâncias estranhas ao nosso organismo. Estas coisas vão ficar dentro de nós ou anexadas ao nosso corpo. Eventualmente haverão falhas e problemas de saúde provocados por estas partes cibernéticas. 

Transhumanism

E se uma pessoa tiver implantes hackeados? E se os implantes pifarem após a garantia e a pessoa não puder comprar peças novas? Diferente dos órgãos naturais, que são projetados pela natureza para se regenerar e viver por décadas, um implante artificial provavelmente terá uma breve vida útil. 

Ora, as pessoas hoje em dia trocam de celular a cada 2 ou 3 anos, até menos, porque o aparelho simplesmente fica obsoleto, perde o suporte a atualizações ou se torna incapaz de rodar certos aplicativos. No caso de um chip tipo Neuralink, haverá algum programa de fidelidade que permita ao usuário substituir o dispositivo regularmente sem custo extra?

A obsolescência de dispositivos implantáveis é algo que afeta muito o usuário. Um celular obsoleto não vai afetar sua saúde, mas um braço mecânico, um olho biônico, um chip na cabeça, quando fica obsoleto e começa a pifar traz consequências graves para sua qualidade de vida.

Enfim, há problemas que surgirão à medida em que o transumanismo se tornar mais comum. O fato, porém, é que o transumanismo é um caminho sem volta. Já estamos nele há um bom tempo.

A intervenção tecnológica no corpo humano é algo que existe desde os primórdios da medicina. A perna de pau do pirata era um dispositivo, um transumanismo primitivo. Os óculos, as próteses de plástico, as chapas metálicas que substituem ossos quebrados, as próteses dentárias, os aparelhos auditivos, os marca-passos, os implantes de silicone, até mesmo as perucas. Há um bom tempo, nós há somos transumanos.

Todos estes exemplos de coisas que já consideramos tão comuns nada mais são do que a tecnologia complementando e às vezes até superando a natureza. Entre as críticas ao transumanismo existe este argumento de que a tecnologia irá macular nossa humanidade, a natureza, a criação de Deus. Bom, se este é o caso, tal perversão já vem sendo feita há séculos com os exemplos que já citei. 

Pirate
Pirata, o transumano raiz.

Se um pirata perdeu uma perna e a substituiu por uma perna de pau, já estava com isto interferindo no curso da natureza e da criação. Enxergar a tecnologia como algo anti-natureza é um erro ontológico, uma vez que a tecnologia surgiu da própria evolução natural da espécie humana. A natureza fez que o cérebro evoluísse a ponto deste desenvolver a tecnologia. Tecnologia é filha da natureza e não um intruso em sua casa.

Se pensarmos em termos cósmicos, a tecnologia deve ser o curso natural do ciclo de vida de inúmeras civilizações. É a ordem natural do universo. Na máquina cósmica, a natureza segue o seguinte curso: os gases cósmicos se aglomeram e formam uma estrela a "espuma" desta aglomeração forma os planetas. 

Aqueles planetas que tiverem condições ideais vão desenvolver moléculas e depois formas de vida que se ramificarão em formas cada vez mais complexas, evoluindo ao longo de milhões de anos, até que surgem criaturas extremamente complexas e com uma inteligência capaz de produzir, armazenar, transmitir e aprimorar o conhecimento. 

Estes seres, fruto da natureza, fruto de um curso natural de progresso planetário, vão aprender a lidar com instrumentos primitivos e com o tempo vão criar novos instrumentos e esta habilidade seguirá evoluindo a ponto de tais criaturas construírem máquinas, computadores, naves, até mesmo uma colossal esfera de Dyson.

Dyson Sphere Program (2021)

Se pensar bem, a esfera de Dyson nada mais é do que uma versão mais evoluída da fogueira. Um ser primitivo com certa inteligência aprende a juntar gravetos e fazer uma fogueira para se aquecer, cozinhar, etc. Esta fase, a da descoberta do fogo e da tecnologia da fogueira, é um grande salto evolutivo em uma espécie. Trata-se de um método para conseguir energia. A esfera de Dyson é uma fogueira em nível interplanetário.

Nada disso é estranho à natureza. É fruto dela, de sua própria evolução. A natureza criou o homem, criou o cérebro, fez ele ser capaz de projetar, de calcular, de construir máquinas e até mesmo de realizar intervenções no próprio corpo, dando uma "mãozinha" à natureza. Se a natureza não nos dotou da habilidade de regenerar um braço amputado, ela nos dotou da capacidade cerebral para desenvolver uma prótese. A prótese continua, portanto, sendo um produto da natureza.

Vendo desta forma, o futuro cibernético não parece tão "antinatural". Isto não significa, obviamente, que a tecnologia age sempre em concordância com a natureza. Se um dispositivo faz uma pessoa adoecer (se um chip causar um câncer, por exemplo), significa que esta tecnologia não está cumprindo seu propósito de ser um complemento à natureza.

Enfim, há casos e casos. A questão é que o transumanismo em si não é bem nem mal e não é nenhuma novidade ou coisa estranha e alienígena que de repente está surgindo no mundo. Ele existe desde quando inventamos a roda e naturalmente foi se tornando mais e mais complexo com o tempo.

É preciso também entender a natureza mista do ser humano. Quando se fala em "essência humana", "natureza humana", dá-se a entender às vezes uma noção vaga de que o ser humano é um organismo totalmente independente e "lacrado", feito de um DNA humano e nada mais além disso. A verdade é que o nosso corpo é um misto de vários códigos genéticos e vários organismos vivendo em certa cooperação.

É óbvio que podemos distinguir bem o nosso DNA humano, nosso corpo, nossas células, mas tudo isto convive com trilhões (sim, trilhões) de bactérias e até mesmo vírus que moram em nosso corpo e têm uma pouco compreendida relação de mutualismo ou mesmo de simbiose. 

Nossa digestão nem mesmo funcionaria direito sem a presença das chamadas bactérias probióticas, da flora intestinal. Esta flora intestinal nada mais é do que um monte de bactérias vivendo em nosso intestino e que nos ajudam na digestão.

As bactérias da flora intestinal não são células humanas, não têm o nosso DNA, são criaturas vindas de fora, alienígenas ao nosso corpo e que desde a tenra infância começam a desenvolver esta parceria que nos permite viver. Sem elas simplesmente adoeceríamos até a morte.

É curioso isto. Se conseguíssemos tornar um ser humano "puro", feito 100% de DNA humano e células humanas, sem nada além disso dentro dele, este sujeito morreria, pois a vida humana depende desta relação simbiótica com outras inúmeras criaturinhas.

Pode-se dizer, portanto, que, assim como somos feitos de diversos sistemas celulares (sistema respiratório, vascular, digestivo, etc.), também temos um sistema microbiano. O que o transumanismo vem fazendo ao longo dos séculos é desenvolver um terceiro sistema que se integrará cada vez mais ao corpo, um sistema tecnológico, mecânico, cibernético.

Esta terceira camada da composição humana se tornará cada vez mais complexa e nos dotará de novas habilidades e aprimoramentos. Ainda está longe de ser algo tão rico quanto os sistemas biológicos, mas ao longo dos séculos e milênios a tendência é que este terceiro sistema se integre de tal forma à nossa biologia que se torne indistinguível dela.

Frankenstein
O monstro de Frankenstein é um exemplo fictício de transumanismo que deu errado.

Metropolis (1927)
O clássico Metropolis parece associar o transumanismo ao satanismo ou à perversão da forma humana (o pentagrama invertido).

Além das questões éticas e existenciais envolvendo toda essa evolução tecnológica do ser humano, também existe a questão ética e talvez esta seja a que mais preocupa as pessoas que param pra pensar no assunto.

Nós gostamos da aparência humana. Tanto gostamos que nos esforçamos por mantê-la. Pessoas que perdem os dentes costumam se importar em recuperá-los mais por uma questão de aparência do que pela necessidade mecânica de ter aqueles dentes. 

Ninguém gostaria de viver sem um rosto ou ter o rosto substituído pela cara de uma barata (se alguém sinceramente deseja se parecer com uma barata na certa sofre de algum transtorno kafkiano e é uma exceção).

A longo prazo, é possível que o transumanismo desfigure a aparência humana que temos desde nossas origens. Claro que ao longo dos milênios fomos nos tornando menos troglodíticos, mais bonitos, podemos até dizer, mas há uma semelhança básica entre um ser humano de hoje e um troglodita. Os traços gerais continuam os mesmos.

Num futuro remoto, tais traços podem ser radicalmente alterados. E se no curso de nossa evolução biotecnológica adotarmos formas que forem mais apropriadas às necessidades do mundo futuro? E se por meio da engenharia genética e cibernética nos tornarmos realmente baratas humanas? Se um humano de hoje viajar para o futuro, para milhares ou milhões de anos no futuro, a fim de visitar seus descendentes, pode se assustar com o que vai encontrar.

Por outro lado, esta nossa preocupação estética em permanecer com aparência humana poderá guiar o curso do transumanismo. É certo que há pessoas peculiares que desejam fazer alterações físicas bizarras, como implantar chifrinhos ou ter uma língua bifurcada, mas são casos raros e não refletem o que acontecerá com a humanidade em geral. 

Vitruvian Man; Leonardo da Vinci
O Homem Vitruviano é considerado um modelo clássico do padrão de beleza humana, especialmente nas proporções do corpo.

Levando em conta a questão estética, é possível que o ser humano do futuro seja ainda mais bonito, mesmo para nosso gosto atual. As chamadas imperfeições, detalhes em nossos corpos que não achamos bonitos, vão ocupar a indústria transumanista. Hoje já temos uma lucrativa indústria cosmética, mas ainda falta aprimoramento tecnológico. 

Ora, convenhamos que certos procedimentos estéticos têm desfigurado as pessoas e não é que elas queiram ser desfiguradas ou que os cirurgiões queiram desfigurá-las. É a limitação tecnológica do procedimento que faz isto e aí o coitado do cirurgião faz o que pode e o coitado do cliente se ilude com o resultado, mas no fundo ele sabe que não era aquilo que vislumbrou em sua imaginação.

A estética é relativa, claro, mas tem suas fronteiras. Parecer-se com uma barata definitivamente é algo que vai contra o ideal de beleza humana. Há, porém, vários tipos de ideal de beleza, o que podemos constatar observando as pinturas e esculturas ao longo dos séculos. 

Anastasiya Shpagina

Quem sabe no futuro o ideal de beleza seja ter uma aparência de anime. Aí, neste caso, o cara que viajar pro futuro vai se deparar com pessoas literalmente semelhantes a bonecos de anime. Se bem que nos dias de hoje isso já existe.

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