Ultimamente virou moda inventar motivações "justificáveis" para os vilões, especialmente nos filmes de super-heróis. Um grande exemplo foi o Thanos, que queria salvar o universo numa espécie de holodomor cósmico. Ele era um extremista com um plano totalitário e cruel, mas pelo menos as intenções eram boas, não é mesmo?
Aquaman é levemente contaminado por esta fórmula. No começo vemos o Manta, que era um pirata e invadiu um submarino. De cara vemos como ele é cruel, pois sem piedade mata o capitão enfiando uma espada em seu peito. Ok, está estabelecido que ele é o vilão. Maaas...
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Cabeção bem fiel ao design dos quadrinhos. |
O Aquaman invade o submarino para resgatar a tripulação e dá uma boa surra nos piratas, enfrentando no final o Manta e seu pai Jesse (Jesse não parece um nome muito badass para um pirata). Os socos, balas e lâminas dos piratas nem fizeram cócegas no Aquaman, mas o Jesse tinha um lança-granadas que pelo menos conseguiu derrubar por alguns segundos o herói marinho.
Em resposta, Aquaman atirou um cano no ombro do Jesse, perfurando-o, mas não fez nada além disso. Em nenhum momento ele teve intenção de matar os piratas e apenas os nocauteou. Quando ouviu que Jesse era pai do Manta, até teve misericórdia e removeu o cano e deu as costas para sair em busca da tripulação. Ou seja, ele deu uma chance aos dois piratas de se salvarem, pois a intenção dele era apenas resgatar os inocentes.
Em vez de ficar "na moral", Jesse pegou o lança-granadas e deu outro tiro no Aquaman, mas este se desviou e a granada abriu um buraco no casco, inundando o submarino. A explosão também derrubou um torpeno nas pernas do Jesse que ficou preso. Aí nessa hora o Manta ficou mansinho, implorou pro Aquaman ajudar a salvar o pai dele, mas o herói deu as costas e saiu.
Pronto, foi criada uma motivação "justificável" para o vilão. A culpa foi do Aquaman que não ajudou a salvar o pai dele, mesmo que toda a situação tenha sido provocada pelo próprio Jesse. O Jesse é o grande monstro da história. Ele que criou o Manta e fez dele um pirata, ele que continuou provocando o Aquaman, mesmo depois de ganhar uma chance de escapar, ele que provocou a própria tragédia, atirando a granada e, enquanto o Manta tentava tirar o torpedo de cima dele, Jesse acionou uma bomba pra forçar o filho a sair dali e se vingar do Aquaman. Foi o Jesse quem plantou o ódio no Manta.
Mas a omissão do Aquaman em salvar um assassino psicopata de uma situação em que ele mesmo se meteu acaba passando esta ideia de que o Manta foi vítima de uma injustiça do herói. Manta não será o grande vilão do filme, mas tem seu próprio arco de história, que basicamente consiste em sua obcessão em matar o Aquaman. Aquaman é a Moby Dick do Manta.
Tirando este clichê, o filme acerta em outras coisas. A ambientação marinha é excelente, cheia de criaturas fantásticas, as cenas de ação são boas e, diferente do Aquaman do Zack Snyder, que precisava de uma bolha de ar debaixo da água pra poder falar, aqui os personagens marinhos conversam na água de boa. É inverossímil, de fato, mas é uma daquelas coisas que merecem a suspensão de descrença, afinal é um filme de super-heróis e falar embaixo dágua é o superpoder dos atlantes.
Foi curiosa a escolha de James Wan para ser o diretor. Ele tem uma carreira mais voltada ao terror. Fez fama como produtor da longa série de filmes Saw, The Nun, Anabelle, entre outros. No Aquaman ele deixou o terror de lado e se concentrou na ação e muitos efeitos especiais. Neste caso, o mérito é obviamente mais dos studios de CGI e suas centenas de designers, do que do diretor. O forte do filme é a ambientação fantástica e, portanto, mérito da galera do CGI.
O Manta sai de cena por um tempo e acompanhamos o drama da família real atlante. Para evitar que o seu irmão Orm se torne o rei de Atlantis e declare guerra à superfície, Aquaman o desafia para uma disputa pelo trono que é feita simplesmente na forma de um quebra pau entre os dois. Pois é, bem ao estilo Black Panther versus Killmonger.
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Quem imaginaria um dia ver o Willem Dafoe de coque samurai? |
Inclusive Atlantis tem essa coisa meio Wakanda: um reino isolado do mundo e extremamente avançado, mas que ao mesmo tempo tem uns costumes arcaicos¹. Só que, em termos de ambientação, a DC caprichou bem mais que a Marvel. A galera do CGI realmente se dedicou em criar um mundo submarino cheio de criaturas, cores e tecnologia. Eu diria até que foi o melhor mundo submarino já criado no cinema, ao menos em termos estéticos. Não é fácil representar uma cidade futurista embaixo da água e este foi um grande feito do filme.
A luta acaba interrompida pela Mera, que então foge com o Aquaman em busca de um mítico e poderosíssimo tridente.
Quanto ao Manta, ele está longe de ser um vilão na história. Ele é apenas um contratempo, um breve antagonista. O vilão mesmo é o irmão de Arthur (Aquaman), o ambicioso rei Orm que acaba empreendendo uma grande guerra submarina para conquistar todos os reinos atlantes e depois atacar a superfície.
Aquaman e Mera, em sua busca pelo tridente lendário, acabam entrando em um fosso abissal e vão parar na Terra oca. Isso mesmo, bem no estilo verniano, eles encontram um mundo no interior da Terra e lá também está a mãe de Arthur, Atlanna, que sobreviveu quando foi lançada no fosso pelos atlantes.
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Contemplem a Nicole Kidman no auge dos seus 50 e tantos anos. |
Curioso que tanto o Jason Momoa quanto a Nicole Kidman (que interpreta a mãe dele) são havaianos. O Zack Snyder levou isto em conta ao escolher Momoa para ser o Aquaman, já que sua descendência havaiana-polinésia cria uma identificação do ator com o mar, pescadores, etc.
Agora o Aquaman entra numa cripta onde está o tridente, preso nas mãos do esqueleto do mítico rei Atlan. O guardião da cripta é um gigantesco monstro chamado Karathen (obviamente inspirado no Kraken). Simplesmente não tem como o Aquaman vencer este bicho, mas ele nem precisa. Pra que brigar, quando uma conversa resolve?
O Aquaman há décadas é motivo de piada, principalmente por causa da imagem que ele ganhou na série animada dos Superamigos. Aquaman ganhou a pecha de super-herói que conversa com peixes, o que tem um tom pejorativo, implicando que, na Liga da Justiça, ele é o que tem o poder mais ridículo.
Zack Snyder, no seu filme da Liga da Justiça, já veio com a intenção de mudar a imagem do Aquaman. Este foi outro motivo porque ele escolheu o Momoa, um brutamontes de 1,93 m de altura, um pouco mais alto que o Superman do Henry Cavill (1,85 m). O porte do Momoa naturalmente ajudaria a quebrar a imagem ridícula que o Aquaman tinha até então.
Eis que, no filme do Aquaman, o roteiro caprichou bastante em reconstruir a imagem do herói, especialmente a partir deste encontro com o Karathen, pois de uma forma bem esperta explorou justamente o poder mais ridicularizado do personagem.
Já no começo do filme vemos o Arthur criança sofrendo bullying porque conversava com peixes. Quando está na cripta, ele conversa com Karathen, que fica bastante surpreso, pois nenhum atlante demonstrou esta capacidade há séculos. É uma cena até um tanto meme, pois o monstrão assume uma atitude meio carante quando diz que ninguém fala com ele há muito tempo. O coitado do monstro só precisada de um papo e um abraço que ele liberava o tridente.
Enfim, o fato é que foi o poder telepático do Aquaman que lhe garantiu acesso ao majestoso tridente e ao reino de Atlantis. A esta altura, o rei Orm estava travando sua batalha submarina, que é apenas interrompida quando Arthur brota das profundezas montado no gigantesco Karathen e usa sua telepatia para fazer que todas as feras usadas como máquinas de guerra desobedeçam os comandos dos atlantes. Neste momento ele se torna o verdadeiro rei dos mares.
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O siri gigante foi a cereja do bolo na batalha submarina. |
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Dolph Lundgren como sempre faz um personagem de poucas palavras, mas muita presença. |
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É clichê, mas não podia faltar o beijo do par romântico no final. |
O tridente que Aquaman usou na Liga da Justiça e no começo do seu filme era herança de sua mãe e tinha certo poder, mas agora, com o tridente primordial de Atlan, ele ganha um bom upgrade em seu poder de batalha. Teria sido interessante ver este Aquaman buffado numa sequência da Liga da Justiça, enfrentando o Darkseid. Mas sabemos que não vai rolar e o snyderverso acabou.
É bom mais uma vez elogiar o caprichoso trabalho de CGI na criação do fantástico e detalhadíssimo mundo submarino. A grande batalha é impressionante, vemos o oceano lotado das mais diversas criaturas, naves, feras. As armaduras atlantes são muito estilosas e convincentes enquanto tecnologia avançada. Parecem até algo alienígena.
Todo este CGI, que soma mais de 2300 cortes, foi obra de vários studios: Industrial Light & Magic (que pertence à Lucasfilm)², Base FX, Rodeo FX, Scanline VFX, DNEG, Luma Pictures, Weta Digital, Moving Picture Company (MPC), Method Studios, Digital Domain e Clear Angle Studios.
Um detalhe que deu um trabalhão para o studio do George Lucas foi a animação dos cabelos dos personagens embaixo dágua, o que é feito com um software específico de simulação de movimento e provavelmente nada com este nível de detalhismo foi feito antes no cinema, em se tratando de cenas aquáticas. Foram cerca de 700 cortes de cenas em que os cabelos dos atores precisaram ser animados digitalmente.
Notas:
1: No mito platônico de Atlântida, esta avançada civilização foi para sempre extinta com uma catástrofe natural. Este mito acabou ganhando versões mais fantásticas e os quadrinhos e cinema adoram explorar a ideia desta civilização ter continuado a existir no fundo do mar.
Por mais interessante que eu ache este conceito, fico a matutar uma coisa. Ora, se os atlantes eram tão avançados tecnologicamente, por que, quando a ilha foi destruída, eles não migraram para outro lugar e construíram uma nova cidade na superfície? Era algo bem mais prático de se fazer do que evoluir biologicamente, ganhar guelras e viver embaixo da água.
O evento da catástrofe natural não me parece uma boa explicação para o fato deles terem mudado de civilização terrestre para aquática. Faria mais sentido se eles voluntariamente, ao longo de sua evolução, migrassem para as profundezas, por exemplo, por considerar que o mundo marinho tem mais recursos, é mais vasto ou mais adequado à sua evolução.
De fato, se pensarmos bem, uma civilização muito avançada, a ponto de ter domínio sobre a própria genética e que, portanto, pudesse escolher qualquer ambiente do planeta para viver, consideraria mais proveitoso adotar o oceano como habitat, justamente por ser maior que a área continental, menos sujeito a catástrofes como terremotos, furacões, meteoros, secas, etc. O ambiente submarino oferece muito mais espaço para expansão tanto vertical quanto horizontal.
Por outro lado, uma civilização submarina seria mais ensimesmada. Quem vive na superfície vive a contemplar as estrelas, pode explorar o céu com telescópios, pode enviar foguetes para o espaço. Quem vive embaixo da água tem a visão do céu turva e será incapaz de estudar o espaço com a mesma abundância de dados que se obtém na superfície. Não à toa os atlantes são tão isolados e voltados só para seu próprio mundo marinho.
2: A Lucasfilm/ILM é um studio lendário, que existe desde a década de 70, criado a princípio para a produção de Star Wars e que ao longo das décadas sempre acompanhou a evolução dos efeitos especiais, nunca ficou obsoleto, ao contrário, sempre esteve liderando esta indústria e alcançando vários marcos.
Transcrevo aqui os vários milestones do studio, segundo a Wikipédia:
"1975: Resurrected the use of VistaVision; first use of a motion control camera (Star Wars Episode IV: A New Hope)
1980: First use of Go motion to animate the Tauntaun creatures of The Empire Strikes Back
1982: First in-house completely computer-generated sequence — the "Genesis sequence" in Star Trek II: The Wrath of Khan. (Previous computer graphics in Star Wars Episode IV: A New Hope were done outside of ILM.)
1985: First completely computer-generated character, the "stained glass man" in Young Sherlock Holmes
1988: First morphing sequence, in Willow
1989: First digital compositing of a full-screen live action image during the final sequence in Indiana Jones and the Last Crusade
1989: First computer-generated 3-D character to show emotion, the pseudopod creature in The Abyss
1991: First dimensional matte painting — where a traditional matte painting was mapped onto 3-D geometry, allowing for camera parallax, in Hook.
1991: First partially computer-generated main character, the T-1000 in Terminator 2: Judgment Day
1992: First time the texture of human skin was computer generated, in Death Becomes Her
1993: First time digital technology used to create a complete and detailed living creature, the dinosaurs in Jurassic Park, which earned ILM its thirteenth Oscar
1994: First extensive use of digital manipulation of historical and stock footage to integrate characters in Forrest Gump.
1995: First fully synthetic speaking computer-generated character, with a distinct personality and emotion, to take a leading role in Casper
1995: First computer-generated photo-realistic hair and fur (used for the digital lion and monkeys) in Jumanji
1996: First completely computer-generated main character, Draco in Dragonheart
1999: First computer generated character to have a full human anatomy, Imhotep in The Mummy
2000: Creates OpenEXR imaging format.
2006: Develops iMocap system, which uses computer vision techniques to track live-action performers on set. Used in the creation of Davy Jones and ship's crew in the film Pirates of the Caribbean: Dead Man's Chest
2011: First animated feature produced by ILM, Rango
2019: First use of real time rendering (with Unreal Game Engine) and digital LED displays as a virtual set (known as StageCraft or The Volume), The Mandalorian".