Qaligrafia
Séries, livros, games, filmes e eteceteras 🧙‍♂️

Habemus The Batman

The Batman (2022)

Batman é o grande queridinho da DC e nenhum personagem de quadrinhos teve tantos filmes, séries, animações e games quanto ele. Entre as várias versões do Batman, tem umas mais cômicas, como a do Adam West, outras mais realistas, como a do Christian Bale e a mais recente, do Ben Affleck, não deu muito certo e o próprio Ben Affleck ficou desgostoso com o papel e pulou fora. Bom, pelo menos as armaduras desta última versão eram bem maneiras, como falei em outro post¹.

Agora é a vez de um novo ator assumir o manto. O famoso vampiro de Crepúsculo, Robert Pattinson, vai mais uma vez se tornar um homem-morcego. A escolha dele para o papel dividiu opiniões, obviamente, mas a verdade é que o filme promete e quem já assistiu no pré-lançamento está elogiando bastante.

Este novo Batman será literalmente o mais novo de todos os Batmans do cinema, pois a história será focada no seu início de carreira como vigilante. Pelo que já vimos nos trailers, o filme realmente promete ser bem dark, pesado e com uma bela fotografia. Tudo indica que pode ser um sucesso no nível do filme do Joker.

Notas:

Rússia x Ucrânia e o impasse tarantinesco nuclear

Pulp Fiction (1994)

O impasse mexicano é uma situação em que duas ou mais pessoas apontam armas mutuamente, de modo que temos literalmente um impasse: se uma pessoa atirar, as outras também atiram e, como todas têm armas apontadas umas para as outras, o provável resultado é que todas morrerão. Então, prevendo esta situação, os participantes do impasse ficam paralisados e o melhor que podem fazer é tentar negociar.

Os antigos filmes western popularizaram o impasse mexicano, mas posteriormente o Tarantino fez tanta homenagem a esta situação que o impasse se tornou uma assinatura tarantinesca.

Desde o início da era nuclear, o mundo inteiro passou a viver num impasse tarantinesco. O grande medo de todos durante a Guerra Fria era que acontecesse uma guerra nuclear, pois é óbvio que o resultado desta situação é uma catástrofe global.

Não é preciso uma simulação de supercomputadores pra saber o provável resultado de uma guerra nuclear. Se um país atacar outro com bombas atômicas, também será atacado em retaliação e a coisa vai escalando e saindo de controle. 

Terminator 2 (1991)

O grande problema das bombas atômicas é que elas produzem uma enorme nuvem radioativa, de modo que o estrago não vai se resumir à área onde a bomba caiu. Se acontecer de várias nações dispararem as bombas, a quantidade de fumaça radioativa jogada na atmosfera será imensa, percorrerá o planeta, afetando até os países mais distantes do epicentro das detonações.

Além disto, o efeito atmosférico será parecido com o que aconteceria se vários vulcões entrassem em erupção ao mesmo tempo, tornando os céus densamente nublados e provocando uma queda súbita da temperatura global. É o inverno nuclear.

Mesmo quem conseguir sobreviver ao inverno, vai a longo prazo sofrer os danos da radiação atmosférica. O que restar da humanidade irá lentamente morrer de câncer e fome, já que toda a produção de alimentos será gravemente afetada.

Nuclear war simulation
Simulação de uma guerra nuclear. É míssil pra todo lado.

Pois é, ninguém quer chegar a este ponto, nem mesmo os mais cruéis ditadores. Afinal, se o mundo for destruído, não haverá nada para dominar e a vida de luxo dos ditadores vai virar uma vida sem graça dentro de um bunker. É por isto que há décadas o mundo tem vivido neste impasse atômico e vivemos até relativamente seguros com base nesta lógica: mesmo que haja guerras, as nações nunca vão cometer a loucura de optar por um ataque nuclear.

Eis que agora estamos diante de uma situação que deixou todo o mundo apreensivo: a invasão russa da Ucrânia. Devido ao tom ameaçador com que Putin tem feito suas declarações públicas, o receio de uma guerra nuclear tem aos poucos se instalado na consciência coletiva. Será que o Putin teria a ousadia e a loucura de chegar a esse ponto?

Se ainda houver um pingo de racionalidade naquela cabeça, é improvável que ele aperte esse botão vermelho que nunca deve ser apertado. Após a Segunda Guerra, o mundo continuou a experimentar diversos conflitos, alguns bem tensos. Mesmo assim, os líderes mundiais nunca chegaram ao ponto de apelar para bombas atômicas.

A verdade é que bombas atômicas não são nem mesmo a melhor arma para se vencer uma guerra. Elas são caríssimas, causam muito dano colateral e, se forem interceptadas antes de atingir o alvo, não só vão dar um grande prejuízo pra quem disparou, como podem cair em cima de um aliado ou mesmo no território de quem disparou a bomba. O custo-benefício de um ataque nuclear é inviável.

Logo, bombas atômicas só existem mesmo para um propósito moral, para serem usadas como ameaça, como blefe, como o instrumento do impasse que evita que o adversário avance além de certo limite ou ceda a certas exigências.

Javelin
Pois é, esse cano de metal aí pode custar mais de 100 mil dólares.

Javelin

Acontece que, desde sempre, um fator decisivo nas guerras é a economia. Guerras são obviamente caras e têm se tornado mais e mais caras a cada ano. Um mísero míssil antitanque, conhecido como Javelin, é um projétil disparado por soldados por meio de uma bazuca que custa 120 mil dólares e cada projétil custa quase 80 mil. Os mísseis disparados por jatos e helicópteros são ainda mais caros.

Agora imagine o custo de uma frota de tanques, aviões e soldados disparando mísseis e o diabo a quatro. É uma fortuuuna. Um único dia de batalha pode custar milhões de dólares. Parafraseando Asimov, a guerra é o último refúgio do incompetente. 

Se um país chega ao ponto de se engajar em uma guerra, é porque falhou em tudo o que poderia ter feito pra evitar esta situação e agora vai ter que meter a mão no bolso e sacar uma fortuna absurda pra bancar a guerra. 

Logo, a tendência nas guerras modernas é que elas sejam vencidas pelo cansaço econômico. Chega um momento em que o país não tem mais de onde tirar dinheiro pra essa brincadeira cara e aí o jeito é voltar à boa e velha diplomacia.

Aparentemente é o que deve acontecer neste imbróglio envolvendo a Rússia. O que a princípio era um mano a mano entre Rússia e Ucrânia, como um Golias atacando David dentro de sua pequena casa, foi escalando com a ajuda internacional. 

A Europa está bancando esta guerra, enviando armamentos e tropas, o que vai fazer com que a campanha russa dure mais tempo, ou seja, gaste mais dinheiro. Isto pode durar dias, semanas ou meses, até mesmo anos e, somada às sanções econômicas de vários países, só vai levar a Rússia a uma enorme crise financeira.

Judo: History, Theory, Practice; Vladimir Putin (2004)

Uma curiosidade sobre o Putin. Todo mundo deve saber que ele foi agente da KGB, o que, convenhamos, é um fato bem sinistro de sua biografia, mas ele também tem uma carreira no judô e até publicou livros. Ele tem o título de presidente honorário da Federação Internacional de Judô, cuja sede fica em Lausanne na Suíça. No caso tinha o título, pois a Federação revogou tal honraria diante dos recentes eventos.

Tédio e fascínio

Às vezes olho pro céu e penso na grandiosidade cósmica e quão fantástico é o fato de que nossos olhos estão vendo objetos com bilhões de anos de existência. Às vezes só quero saber de assistir alguns vídeos bestas na internet pra preencher o tédio. Sou feito desta mistura agridoce de tédio e fascínio.

(22,02,2022) 

A estratégia do tirano

Em uma luta de boxe, é comum o lutador primeiro sondar as fraquezas do adversário. Dando jabs de leve, ele pode medir a distância, observar se o alcance do braço dele é maior ou menor, observar a agilidade com que ele se defende, etc. 

No momento climático da luta, quando o adversário cambaleia com um golpe, é aí que o lutador realmente intensifica seu ataque. É o avanço agressivo para finalizar, para tentar o nocaute. Este ato em um lutador bem treinado chega a ser instintivo. A partir do momento em que o adversário cambaleia, já desperta o instinto do ataque final em busca do nocaute.

Assim costumam agir os tiranos. No começo eles agem com cautela, medindo a reação do povo. Então, ao perceber uma boa oportunidade de encaixar um bom soco, tomam uma medida rígida que penaliza a população, como leis de emergência, restrição de direitos, punições desproporcionais à infração, o crescimento da burocracia e da vigilância, tornando a vida mais complicada.

Uma vez que o povo cede a estas atitudes sem demonstrar uma reação firme, é como o lutador que cambaleia, mostrando que está vulnerável a um golpe mais forte. Quando o povo aceita tudo o que o tirano impõe, ingenuamente achando que ele vai se dar por satisfeito e deixá-lo em paz, é aí que o tirano avança com ainda mais imposições, sempre visando dar o golpe definitivo, o nocaute, a implantação de um estado totalitário que se tornará a normalidade.

E se

Onde quer que haja escolhas,
sempre existe um "e se".
Você pensa: "E se eu tivesse
feito isto ou aquilo?"

Em um mundo infinito,
todos os "e se" se cumprem.
Alguns são bem sucedidos,
outros sem sorte sucumbem.

Meu "e se" é um de muitos
mundos e rumos possíveis.
Mesmo assim ainda sou único,
um ponto no infinito.

(21,02,2022)


Tweettar ou tuitar

Acho curioso como há pessoas, até mesmo jornalistas, que optam pela versão gringo-abrasileirada da palavra "twitter", forjando o verbo "tweettar"ou "twittar" em vez do mais apropriado "tuitar".

É como se houvesse um receio do abrasileiramento da palavra, de modo que tentam manter a morfologia original, o w, o tt duplo, até o ee duplo, só que esta tentativa de manter a palavra inglesa é sabotada no fato de se incluir um sufixo português, assim criando o twitt + ar.

Ora, se é para transformar o "to tweet" em um verbo devidamente brasileiro, que se faça da maneira que sempre foi feito, com as devidas adaptações fonéticas.

Note-se que "tweet" é uma palavra que surge de uma onomatopéia para represantar o piado de um pássaro. Com base nisto surgiu o nome de marca Twitter, que substituiu o ee duplo por um i a fim de criar uma palavra peculiar para a marca. 

Apesar da substituição da vogal no nome do site, em inglês se tornou comum usar o verbo "to tweet" (que seria literalmente algo como "piar" ou "chilrear") para representar o ato de postar algo no Twitter.

Uma dica básica para o aportuguesamento é basear-se no som da palavra e não em sua escrita. Por que "football" virou "futebol"? Primeiro porque em português não existe oo duplo e depois, como este oo duplo se pronuncia com som de u, optaremos pelo u na transcrição aportuguesada. O mesmo vale para o "ball" que vira "bol" justamente porque é assim que se pronuncia.

É de acordo com o mesmo princípio, o da pronúncia, que blackout virou blecaute e sandwich virou sanduíche. Inclusive neste último exemplo temos a pista para o "tweet": quando o w é pronunciado como u, é preferível substituí-lo por u na versão portuguesa.

Assim, uma vez que tweet se pronuncia tuíte, é esta a forma mais prática de se forjar uma versão portuguesa da palavra. Tweettar é uma aberração que fica no limbo entre ser uma palavra inglesa ou aportuguesada. É fruto de uma indecisão quanto à maneira de se adaptar um termo estrangeiro. 

Parafraseando Oswald de Andrade, em seu poema Pronominais:

"Vou twittar".
Diz o internauta
um tanto inseguro
e o jornalista espertinho.
Mas o bom tuiteiro
da nação brasileira
diz todos os dias:
"Deixa disso, camarada,
vamos tuitar".

A inevitabilidade do transumanismo

Kevin Warwick

O transumanismo é um conceito que está se tornando cada vez mais notável, tanto na ficção quanto na vida real. Na ficção já é algo bem comum, como vemos nas histórias de super-heróis, no Capitão América, que foi fisiologicamente modificado lá na década de 40, e no sci-fi cyberpunk em que vemos pessoas com implantes cibernéticos. Na vida real, temos o caso recente do Neuralink, um produto ainda em desenvolvimento, mas que promete levar a humanidade definitivamente para uma era estilo cyberpunk.

É um tema controverso, que tem entusiastas fanáticos, bem como críticos ferrenhos que tecem teorias conspiratórias (ou, pelo menos, são assim chamadas até que um dia percebemos que a coisa é real) sobre o uso da tecnologia para desfigurar o ser humano e transformá-lo literalmente num ciborgue.

Bom, mesmo que evitemos enxergar o assunto com o ultrapessimismo das teorias conspiratórias, ainda assim o chamado transumanismo nos dá muitos motivos para preocupações. Uma das preocupações mais consistentes tem a ver com o fato de que grandes empresas, detentoras das tecnologias de aprimoramento humano, movidas pela tão conhecida ganância, violem direitos básicos das pessoas por meio destas tecnologias.

Ou seja, uma vez que uma empresa colocou um chip na sua cabeça ou implantes no seu corpo e estes dispositivos geram big data, o seu corpo terá a privacidade roubada por tais empresas, sedentas de dados sobre você. 

Já experimentamos esta monitoração nos dispositivos que usamos para acessar a internet e estamos tão acostumados que normalmente nem nos importamos mais. No futuro, porém, a coisa vai ficar bem bizarra, pois o monitoramento vai chegar literalmente aos nossos corpos.

Transumanismo implicará em intervenções físicas em nosso corpo. Chips, próteses, dispositivos contendo circuitos, emitindo sinais eletromagnéticos, feitos de substâncias estranhas ao nosso organismo. Estas coisas vão ficar dentro de nós ou anexadas ao nosso corpo. Eventualmente haverão falhas e problemas de saúde provocados por estas partes cibernéticas. 

Transhumanism

E se uma pessoa tiver implantes hackeados? E se os implantes pifarem após a garantia e a pessoa não puder comprar peças novas? Diferente dos órgãos naturais, que são projetados pela natureza para se regenerar e viver por décadas, um implante artificial provavelmente terá uma breve vida útil. 

Ora, as pessoas hoje em dia trocam de celular a cada 2 ou 3 anos, até menos, porque o aparelho simplesmente fica obsoleto, perde o suporte a atualizações ou se torna incapaz de rodar certos aplicativos. No caso de um chip tipo Neuralink, haverá algum programa de fidelidade que permita ao usuário substituir o dispositivo regularmente sem custo extra?

A obsolescência de dispositivos implantáveis é algo que afeta muito o usuário. Um celular obsoleto não vai afetar sua saúde, mas um braço mecânico, um olho biônico, um chip na cabeça, quando fica obsoleto e começa a pifar traz consequências graves para sua qualidade de vida.

Enfim, há problemas que surgirão à medida em que o transumanismo se tornar mais comum. O fato, porém, é que o transumanismo é um caminho sem volta. Já estamos nele há um bom tempo.

A intervenção tecnológica no corpo humano é algo que existe desde os primórdios da medicina. A perna de pau do pirata era um dispositivo, um transumanismo primitivo. Os óculos, as próteses de plástico, as chapas metálicas que substituem ossos quebrados, as próteses dentárias, os aparelhos auditivos, os marca-passos, os implantes de silicone, até mesmo as perucas. Há um bom tempo, nós há somos transumanos.

Todos estes exemplos de coisas que já consideramos tão comuns nada mais são do que a tecnologia complementando e às vezes até superando a natureza. Entre as críticas ao transumanismo existe este argumento de que a tecnologia irá macular nossa humanidade, a natureza, a criação de Deus. Bom, se este é o caso, tal perversão já vem sendo feita há séculos com os exemplos que já citei. 

Pirate
Pirata, o transumano raiz.

Se um pirata perdeu uma perna e a substituiu por uma perna de pau, já estava com isto interferindo no curso da natureza e da criação. Enxergar a tecnologia como algo anti-natureza é um erro ontológico, uma vez que a tecnologia surgiu da própria evolução natural da espécie humana. A natureza fez que o cérebro evoluísse a ponto deste desenvolver a tecnologia. Tecnologia é filha da natureza e não um intruso em sua casa.

Se pensarmos em termos cósmicos, a tecnologia deve ser o curso natural do ciclo de vida de inúmeras civilizações. É a ordem natural do universo. Na máquina cósmica, a natureza segue o seguinte curso: os gases cósmicos se aglomeram e formam uma estrela a "espuma" desta aglomeração forma os planetas. 

Aqueles planetas que tiverem condições ideais vão desenvolver moléculas e depois formas de vida que se ramificarão em formas cada vez mais complexas, evoluindo ao longo de milhões de anos, até que surgem criaturas extremamente complexas e com uma inteligência capaz de produzir, armazenar, transmitir e aprimorar o conhecimento. 

Estes seres, fruto da natureza, fruto de um curso natural de progresso planetário, vão aprender a lidar com instrumentos primitivos e com o tempo vão criar novos instrumentos e esta habilidade seguirá evoluindo a ponto de tais criaturas construírem máquinas, computadores, naves, até mesmo uma colossal esfera de Dyson.

Dyson Sphere Program (2021)

Se pensar bem, a esfera de Dyson nada mais é do que uma versão mais evoluída da fogueira. Um ser primitivo com certa inteligência aprende a juntar gravetos e fazer uma fogueira para se aquecer, cozinhar, etc. Esta fase, a da descoberta do fogo e da tecnologia da fogueira, é um grande salto evolutivo em uma espécie. Trata-se de um método para conseguir energia. A esfera de Dyson é uma fogueira em nível interplanetário.

Nada disso é estranho à natureza. É fruto dela, de sua própria evolução. A natureza criou o homem, criou o cérebro, fez ele ser capaz de projetar, de calcular, de construir máquinas e até mesmo de realizar intervenções no próprio corpo, dando uma "mãozinha" à natureza. Se a natureza não nos dotou da habilidade de regenerar um braço amputado, ela nos dotou da capacidade cerebral para desenvolver uma prótese. A prótese continua, portanto, sendo um produto da natureza.

Vendo desta forma, o futuro cibernético não parece tão "antinatural". Isto não significa, obviamente, que a tecnologia age sempre em concordância com a natureza. Se um dispositivo faz uma pessoa adoecer (se um chip causar um câncer, por exemplo), significa que esta tecnologia não está cumprindo seu propósito de ser um complemento à natureza.

Enfim, há casos e casos. A questão é que o transumanismo em si não é bem nem mal e não é nenhuma novidade ou coisa estranha e alienígena que de repente está surgindo no mundo. Ele existe desde quando inventamos a roda e naturalmente foi se tornando mais e mais complexo com o tempo.

É preciso também entender a natureza mista do ser humano. Quando se fala em "essência humana", "natureza humana", dá-se a entender às vezes uma noção vaga de que o ser humano é um organismo totalmente independente e "lacrado", feito de um DNA humano e nada mais além disso. A verdade é que o nosso corpo é um misto de vários códigos genéticos e vários organismos vivendo em certa cooperação.

É óbvio que podemos distinguir bem o nosso DNA humano, nosso corpo, nossas células, mas tudo isto convive com trilhões (sim, trilhões) de bactérias e até mesmo vírus que moram em nosso corpo e têm uma pouco compreendida relação de mutualismo ou mesmo de simbiose. 

Nossa digestão nem mesmo funcionaria direito sem a presença das chamadas bactérias probióticas, da flora intestinal. Esta flora intestinal nada mais é do que um monte de bactérias vivendo em nosso intestino e que nos ajudam na digestão.

As bactérias da flora intestinal não são células humanas, não têm o nosso DNA, são criaturas vindas de fora, alienígenas ao nosso corpo e que desde a tenra infância começam a desenvolver esta parceria que nos permite viver. Sem elas simplesmente adoeceríamos até a morte.

É curioso isto. Se conseguíssemos tornar um ser humano "puro", feito 100% de DNA humano e células humanas, sem nada além disso dentro dele, este sujeito morreria, pois a vida humana depende desta relação simbiótica com outras inúmeras criaturinhas.

Pode-se dizer, portanto, que, assim como somos feitos de diversos sistemas celulares (sistema respiratório, vascular, digestivo, etc.), também temos um sistema microbiano. O que o transumanismo vem fazendo ao longo dos séculos é desenvolver um terceiro sistema que se integrará cada vez mais ao corpo, um sistema tecnológico, mecânico, cibernético.

Esta terceira camada da composição humana se tornará cada vez mais complexa e nos dotará de novas habilidades e aprimoramentos. Ainda está longe de ser algo tão rico quanto os sistemas biológicos, mas ao longo dos séculos e milênios a tendência é que este terceiro sistema se integre de tal forma à nossa biologia que se torne indistinguível dela.

Frankenstein
O monstro de Frankenstein é um exemplo fictício de transumanismo que deu errado.

Metropolis (1927)
O clássico Metropolis parece associar o transumanismo ao satanismo ou à perversão da forma humana (o pentagrama invertido).

Além das questões éticas e existenciais envolvendo toda essa evolução tecnológica do ser humano, também existe a questão ética e talvez esta seja a que mais preocupa as pessoas que param pra pensar no assunto.

Nós gostamos da aparência humana. Tanto gostamos que nos esforçamos por mantê-la. Pessoas que perdem os dentes costumam se importar em recuperá-los mais por uma questão de aparência do que pela necessidade mecânica de ter aqueles dentes. 

Ninguém gostaria de viver sem um rosto ou ter o rosto substituído pela cara de uma barata (se alguém sinceramente deseja se parecer com uma barata na certa sofre de algum transtorno kafkiano e é uma exceção).

A longo prazo, é possível que o transumanismo desfigure a aparência humana que temos desde nossas origens. Claro que ao longo dos milênios fomos nos tornando menos troglodíticos, mais bonitos, podemos até dizer, mas há uma semelhança básica entre um ser humano de hoje e um troglodita. Os traços gerais continuam os mesmos.

Num futuro remoto, tais traços podem ser radicalmente alterados. E se no curso de nossa evolução biotecnológica adotarmos formas que forem mais apropriadas às necessidades do mundo futuro? E se por meio da engenharia genética e cibernética nos tornarmos realmente baratas humanas? Se um humano de hoje viajar para o futuro, para milhares ou milhões de anos no futuro, a fim de visitar seus descendentes, pode se assustar com o que vai encontrar.

Por outro lado, esta nossa preocupação estética em permanecer com aparência humana poderá guiar o curso do transumanismo. É certo que há pessoas peculiares que desejam fazer alterações físicas bizarras, como implantar chifrinhos ou ter uma língua bifurcada, mas são casos raros e não refletem o que acontecerá com a humanidade em geral. 

Vitruvian Man; Leonardo da Vinci
O Homem Vitruviano é considerado um modelo clássico do padrão de beleza humana, especialmente nas proporções do corpo.

Levando em conta a questão estética, é possível que o ser humano do futuro seja ainda mais bonito, mesmo para nosso gosto atual. As chamadas imperfeições, detalhes em nossos corpos que não achamos bonitos, vão ocupar a indústria transumanista. Hoje já temos uma lucrativa indústria cosmética, mas ainda falta aprimoramento tecnológico. 

Ora, convenhamos que certos procedimentos estéticos têm desfigurado as pessoas e não é que elas queiram ser desfiguradas ou que os cirurgiões queiram desfigurá-las. É a limitação tecnológica do procedimento que faz isto e aí o coitado do cirurgião faz o que pode e o coitado do cliente se ilude com o resultado, mas no fundo ele sabe que não era aquilo que vislumbrou em sua imaginação.

A estética é relativa, claro, mas tem suas fronteiras. Parecer-se com uma barata definitivamente é algo que vai contra o ideal de beleza humana. Há, porém, vários tipos de ideal de beleza, o que podemos constatar observando as pinturas e esculturas ao longo dos séculos. 

Anastasiya Shpagina

Quem sabe no futuro o ideal de beleza seja ter uma aparência de anime. Aí, neste caso, o cara que viajar pro futuro vai se deparar com pessoas literalmente semelhantes a bonecos de anime. Se bem que nos dias de hoje isso já existe.

Aquaman e seu fantástico mundo submarino

Aquaman (2018)

Ultimamente virou moda inventar motivações "justificáveis" para os vilões, especialmente nos filmes de super-heróis. Um grande exemplo foi o Thanos, que queria salvar o universo numa espécie de holodomor cósmico. Ele era um extremista com um plano totalitário e cruel, mas pelo menos as intenções eram boas, não é mesmo?

Aquaman é levemente contaminado por esta fórmula. No começo vemos o Manta, que era um pirata e invadiu um submarino. De cara vemos como ele é cruel, pois sem piedade mata o capitão enfiando uma espada em seu peito. Ok, está estabelecido que ele é o vilão. Maaas...

Aquaman (2018)
Cabeção bem fiel ao design dos quadrinhos.

O Aquaman invade o submarino para resgatar a tripulação e dá uma boa surra nos piratas, enfrentando no final o Manta e seu pai Jesse (Jesse não parece um nome muito badass para um pirata). Os socos, balas e lâminas dos piratas nem fizeram cócegas no Aquaman, mas o Jesse tinha um lança-granadas que pelo menos conseguiu derrubar por alguns segundos o herói marinho.

Em resposta, Aquaman atirou um cano no ombro do Jesse, perfurando-o, mas não fez nada além disso. Em nenhum momento ele teve intenção de matar os piratas e apenas os nocauteou. Quando ouviu que Jesse era pai do Manta, até teve misericórdia e removeu o cano e deu as costas para sair em busca da tripulação. Ou seja, ele deu uma chance aos dois piratas de se salvarem, pois a intenção dele era apenas resgatar os inocentes.

Em vez de ficar "na moral", Jesse pegou o lança-granadas e deu outro tiro no Aquaman, mas este se desviou e a granada abriu um buraco no casco, inundando o submarino. A explosão também derrubou um torpeno nas pernas do Jesse que ficou preso. Aí nessa hora o Manta ficou mansinho, implorou pro Aquaman ajudar a salvar o pai dele, mas o herói deu as costas e saiu.

Pronto, foi criada uma motivação "justificável" para o vilão. A culpa foi do Aquaman que não ajudou a salvar o pai dele, mesmo que toda a situação tenha sido provocada pelo próprio Jesse. O Jesse é o grande monstro da história. Ele que criou o Manta e fez dele um pirata, ele que continuou provocando o Aquaman, mesmo depois de ganhar uma chance de escapar, ele que provocou a própria tragédia, atirando a granada e, enquanto o Manta tentava tirar o torpedo de cima dele, Jesse acionou uma bomba pra forçar o filho a sair dali e se vingar do Aquaman. Foi o Jesse quem plantou o ódio no Manta.

Mas a omissão do Aquaman em salvar um assassino psicopata de uma situação em que ele mesmo se meteu acaba passando esta ideia de que o Manta foi vítima de uma injustiça do herói.  Manta não será o grande vilão do filme, mas tem seu próprio arco de história, que basicamente consiste em sua obcessão em matar o Aquaman. Aquaman é a Moby Dick do Manta.

Aquaman (2018)

Aquaman (2018)

Aquaman (2018)

Tirando este clichê, o filme acerta em outras coisas. A ambientação marinha é excelente, cheia de criaturas fantásticas, as cenas de ação são boas e, diferente do Aquaman do Zack Snyder, que precisava de uma bolha de ar debaixo da água pra poder falar, aqui os personagens marinhos conversam na água de boa. É inverossímil, de fato, mas é uma daquelas coisas que merecem a suspensão de descrença, afinal é um filme de super-heróis e falar embaixo dágua é o superpoder dos atlantes.

Foi curiosa a escolha de James Wan para ser o diretor. Ele tem uma carreira mais voltada ao terror. Fez fama como produtor da longa série de filmes Saw, The Nun, Anabelle, entre outros. No Aquaman ele deixou o terror de lado e se concentrou na ação e muitos efeitos especiais. Neste caso, o mérito é obviamente mais dos studios de CGI e suas centenas de designers, do que do diretor. O forte do filme é a ambientação fantástica e, portanto, mérito da galera do CGI.

O Manta sai de cena por um tempo e acompanhamos o drama da família real atlante. Para evitar que o seu irmão Orm se torne o rei de Atlantis e declare guerra à superfície, Aquaman o desafia para uma disputa pelo trono que é feita simplesmente na forma de um quebra pau entre os dois. Pois é, bem ao estilo Black Panther versus Killmonger.

Patrick Wilson, Willem Dafoe; Aquaman (2018)
Quem imaginaria um dia ver o Willem Dafoe de coque samurai?

Aquaman (2018)

Inclusive Atlantis tem essa coisa meio Wakanda: um reino isolado do mundo e extremamente avançado, mas que ao mesmo tempo tem uns costumes arcaicos¹. Só que, em termos de ambientação, a DC caprichou bem mais que a Marvel. A galera do CGI realmente se dedicou em criar um mundo submarino cheio de criaturas, cores e tecnologia. Eu diria até que foi o melhor mundo submarino já criado no cinema, ao menos em termos estéticos. Não é fácil representar uma cidade futurista embaixo da água e este foi um grande feito do filme.

A luta acaba interrompida pela Mera, que então foge com o Aquaman em busca de um mítico e poderosíssimo tridente.

Quanto ao Manta, ele está longe de ser um vilão na história. Ele é apenas um contratempo, um breve antagonista. O vilão mesmo é o irmão de Arthur (Aquaman), o ambicioso rei Orm que acaba empreendendo uma grande guerra submarina para conquistar todos os reinos atlantes e depois atacar a superfície.

Aquaman (2018)

Jason Momoa; Aquaman (2018)

Jason Momoa; Aquaman (2018)

Aquaman e Mera, em sua busca pelo tridente lendário, acabam entrando em um fosso abissal e vão parar na Terra oca. Isso mesmo, bem no estilo verniano, eles encontram um mundo no interior da Terra e lá também está a mãe de Arthur, Atlanna, que sobreviveu quando foi lançada no fosso pelos atlantes.

Nicole Kidman; Aquaman (2018)

Nicole Kidman; Aquaman (2018)
Contemplem a Nicole Kidman no auge dos seus 50 e tantos anos.

Curioso que tanto o Jason Momoa quanto a Nicole Kidman (que interpreta a mãe dele) são havaianos. O Zack Snyder levou isto em conta ao escolher Momoa para ser o Aquaman, já que sua descendência havaiana-polinésia cria uma identificação do ator com o mar, pescadores, etc.

Agora o Aquaman entra numa cripta onde está o tridente, preso nas mãos do esqueleto do mítico rei Atlan. O guardião da cripta é um gigantesco monstro chamado Karathen (obviamente inspirado no Kraken). Simplesmente não tem como o Aquaman vencer este bicho, mas ele nem precisa. Pra que brigar, quando uma conversa resolve?

O Aquaman há décadas é motivo de piada, principalmente por causa da imagem que ele ganhou na série animada dos Superamigos. Aquaman ganhou a pecha de super-herói que conversa com peixes, o que tem um tom pejorativo, implicando que, na Liga da Justiça, ele é o que tem o poder mais ridículo.

Aquaman; Superfriends (1973-1988)

Aquaman; Superfriends (1973-1988)

Zack Snyder, no seu filme da Liga da Justiça, já veio com a intenção de mudar a imagem do Aquaman. Este foi outro motivo porque ele escolheu o Momoa, um brutamontes de 1,93 m de altura, um pouco mais alto que o Superman do Henry Cavill (1,85 m). O porte do Momoa naturalmente ajudaria a quebrar a imagem ridícula que o Aquaman tinha até então.

Eis que, no filme do Aquaman, o roteiro caprichou bastante em reconstruir a imagem do herói, especialmente a partir deste encontro com o Karathen, pois de uma forma bem esperta explorou justamente o poder mais ridicularizado do personagem.

Já no começo do filme vemos o Arthur criança sofrendo bullying porque conversava com peixes. Quando está na cripta, ele conversa com Karathen, que fica bastante surpreso, pois nenhum atlante demonstrou esta capacidade há séculos. É uma cena até um tanto meme, pois o monstrão assume uma atitude meio carante quando diz que ninguém fala com ele há muito tempo. O coitado do monstro só precisada de um papo e um abraço que ele liberava o tridente.

Enfim, o fato é que foi o poder telepático do Aquaman que lhe garantiu acesso ao majestoso tridente e ao reino de Atlantis. A esta altura, o rei Orm estava travando sua batalha submarina, que é apenas interrompida quando Arthur brota das profundezas montado no gigantesco Karathen e usa sua telepatia para fazer que todas as feras usadas como máquinas de guerra desobedeçam os comandos dos atlantes. Neste momento ele se torna o verdadeiro rei dos mares.

Aquaman (2018)
O siri gigante foi a cereja do bolo na batalha submarina.

Dolph Lundgren; Aquaman (2018)
Dolph Lundgren como sempre faz um personagem de poucas palavras, mas muita presença.

Jason Momoa, Amber Heard; Aquaman (2018)
É clichê, mas não podia faltar o beijo do par romântico no final.

O tridente que Aquaman usou na Liga da Justiça e no começo do seu filme era herança de sua mãe e tinha certo poder, mas agora, com o tridente primordial de Atlan, ele ganha um bom upgrade em seu poder de batalha. Teria sido interessante ver este Aquaman buffado numa sequência da Liga da Justiça, enfrentando o Darkseid. Mas sabemos que não vai rolar e o snyderverso acabou.

É bom mais uma vez elogiar o caprichoso trabalho de CGI na criação do fantástico e detalhadíssimo mundo submarino. A grande batalha é impressionante, vemos o oceano lotado das mais diversas criaturas, naves, feras. As armaduras atlantes são muito estilosas e convincentes enquanto tecnologia avançada. Parecem até algo alienígena.

Todo este CGI, que soma mais de 2300 cortes, foi obra de vários studios: Industrial Light & Magic (que pertence à Lucasfilm)², Base FX, Rodeo FX, Scanline VFX, DNEG, Luma Pictures, Weta Digital, Moving Picture Company (MPC), Method Studios, Digital Domain e Clear Angle Studios.

Um detalhe que deu um trabalhão para o studio do George Lucas foi a animação dos cabelos dos personagens embaixo dágua, o que é feito com um software específico de simulação de movimento e provavelmente nada com este nível de detalhismo foi feito antes no cinema, em se tratando de cenas aquáticas. Foram cerca de 700 cortes de cenas em que os cabelos dos atores precisaram ser animados digitalmente.

Jason Momoa; Aquaman (2018)

Notas:

1: No mito platônico de Atlântida, esta avançada civilização foi para sempre extinta com uma catástrofe natural. Este mito acabou ganhando versões mais fantásticas e os quadrinhos e cinema adoram explorar a ideia desta civilização ter continuado a existir no fundo do mar.

Por mais interessante que eu ache este conceito, fico a matutar uma coisa. Ora, se os atlantes eram tão avançados tecnologicamente, por que, quando a ilha foi destruída, eles não migraram para outro lugar e construíram uma nova cidade na superfície? Era algo bem mais prático de se fazer do que evoluir biologicamente, ganhar guelras e viver embaixo da água.

O evento da catástrofe natural não me parece uma boa explicação para o fato deles terem mudado de civilização terrestre para aquática. Faria mais sentido se eles voluntariamente, ao longo de sua evolução, migrassem para as profundezas, por exemplo, por considerar que o mundo marinho tem mais recursos, é mais vasto ou mais adequado à sua evolução.

De fato, se pensarmos bem, uma civilização muito avançada, a ponto de ter domínio sobre a própria genética e que, portanto, pudesse escolher qualquer ambiente do planeta para viver, consideraria mais proveitoso adotar o oceano como habitat, justamente por ser maior que a área continental, menos sujeito a catástrofes como terremotos, furacões, meteoros, secas, etc. O ambiente submarino oferece muito mais espaço para expansão tanto vertical quanto horizontal.

Por outro lado, uma civilização submarina seria mais ensimesmada. Quem vive na superfície vive a contemplar as estrelas, pode explorar o céu com telescópios, pode enviar foguetes para o espaço. Quem vive embaixo da água tem a visão do céu turva e será incapaz de estudar o espaço com a mesma abundância de dados que se obtém na superfície. Não à toa os atlantes são tão isolados e voltados só para seu próprio mundo marinho.

2: A Lucasfilm/ILM é um studio lendário, que existe desde a década de 70, criado a princípio para a produção de Star Wars e que ao longo das décadas sempre acompanhou a evolução dos efeitos especiais, nunca ficou obsoleto, ao contrário, sempre esteve liderando esta indústria e alcançando vários marcos.

Transcrevo aqui os vários milestones do studio, segundo a Wikipédia:

"1975: Resurrected the use of VistaVision; first use of a motion control camera (Star Wars Episode IV: A New Hope)
1980: First use of Go motion to animate the Tauntaun creatures of The Empire Strikes Back
1982: First in-house completely computer-generated sequence — the "Genesis sequence" in Star Trek II: The Wrath of Khan. (Previous computer graphics in Star Wars Episode IV: A New Hope were done outside of ILM.)
1985: First completely computer-generated character, the "stained glass man" in Young Sherlock Holmes
1988: First morphing sequence, in Willow
1989: First digital compositing of a full-screen live action image during the final sequence in Indiana Jones and the Last Crusade
1989: First computer-generated 3-D character to show emotion, the pseudopod creature in The Abyss
1991: First dimensional matte painting — where a traditional matte painting was mapped onto 3-D geometry, allowing for camera parallax, in Hook.
1991: First partially computer-generated main character, the T-1000 in Terminator 2: Judgment Day
1992: First time the texture of human skin was computer generated, in Death Becomes Her
1993: First time digital technology used to create a complete and detailed living creature, the dinosaurs in Jurassic Park, which earned ILM its thirteenth Oscar
1994: First extensive use of digital manipulation of historical and stock footage to integrate characters in Forrest Gump.
1995: First fully synthetic speaking computer-generated character, with a distinct personality and emotion, to take a leading role in Casper
1995: First computer-generated photo-realistic hair and fur (used for the digital lion and monkeys) in Jumanji
1996: First completely computer-generated main character, Draco in Dragonheart
1999: First computer generated character to have a full human anatomy, Imhotep in The Mummy
2000: Creates OpenEXR imaging format.
2006: Develops iMocap system, which uses computer vision techniques to track live-action performers on set. Used in the creation of Davy Jones and ship's crew in the film Pirates of the Caribbean: Dead Man's Chest
2011: First animated feature produced by ILM, Rango
2019: First use of real time rendering (with Unreal Game Engine) and digital LED displays as a virtual set (known as StageCraft or The Volume), The Mandalorian".

Os anões de The Witcher e a Branca de Neve sem anões

Dwarves in The Witcher

Anões têm uma presença constante no folclore europeu. Eles estão nos contos de Grimm, no Senhor dos Anéis (que é fruto do vasto conhecimento de Tolkien da mitologia européia) e tudo o que esta obra inspirou.

Anões também sempre tiveram uma presença forte no cinema. Convenhamos, anões são interessantes, são fotogênicos, as pessoas gostam de ver anões, mas também algumas produções contratam anões pela praticidade. Por exemplo, o robozinho R2D2 era performado por um anão que cabia dentro da máquina. George Lucas, aliás, sempre colocou muitos anões em seus filmes.

Eis que recentemente saiu uma notícia curiosa de que a Disney resolveu demitir os atores anões do seu remake de Branca de Neve e os Sete Anões, por mais paradoxal que isso pareça. Aparentemente, tudo o que precisou para a Disney tomar esta estranha decisão foi uma crítica do ator anão Peter Dinklage.

Na opinião dele, que ele fez questão de enfatizar que tem a ver com sua pauta progressista (ou, em outras palavras, politicamente correto), era um absurdo nos dias de hoje representarem anões vivendo em cavernas como no conto clássico.

O interessante é que os sete atores anões que foram demitidos não partilham da mesma opinião do famoso ator de Game of Thrones e pelo visto a Disney nem se importou de perguntar a eles. 

É um caso de minoria barulhenta. Como o Peter Dinklage é bem conhecido, o simples fato dele ter expressado uma interpretação bem pessoal sobre o que ele acha ser o politicamente correto com relação aos anões no cinema, a opinião dele importou mais do que a dos próprios atores que provavelmente estavam adorando participar do projeto e não se sentiam ofendidos em interpretar versões folclóricas de anões.

No exemplo oposto disto, recentemente também vimos vários atores anões participando da segunda temporada de The Witcher, representando, veja só, anões caricatos do folclore, pequenos guerreiros com machados e barbas longas. E olha, claramente eles parecem estar se divertindo bastante com o papel.

São exemplos como este que mostram que há um abismo separando o ser civilizado e ter respeito pelas pessoas e o ser politicamente correto e forçar a barra do que é certo ou errado, alcançando um nível de santarronice puritana e farisaica do qual a história já nos deu tantos exemplos no passar dos séculos.

Dormir é divino

Dormir é o melhor remédio. Literalmente. O sono produz melatonina, que tem fortes propriedades regenerativas. Não subestimem o sono. Ele tem um propósito. O sono não só traz descanso, mas também cura. Mas o milagre do sono não se resume à melatonina. Ele abre os portões da mente. O sono pode trazer visões, premonições, uma compreensão intuitiva de questões que nos perturbam e que não conseguimos resolver apenas com a razão. O sono serve até à ciência. Kekulé descobriu a fórmula do benzeno durante um sonho. Arquimedes teve seu eureka após um cochilo na banheira. Ora, dizem que até Deus dormiu após criar o mundo. Dormir é divino.

(11,02,2022)

Kafka e Elon Musk se encontram em Terra Formars

Terra Formars (2016)

A indústria de animação japonesa é a melhor do mundo. Possui uma vasta produção, com gêneros para todos os gostos. A criatividade dos animes de sci-fi já inspirou muitos filmes de Hollywood. Como ninguém pode ser o melhor em tudo, o cinema de sci-fi e fantasia japonês costuma ser bem tosquinho.

Na verdade, parte desta tosqueira se deve ao fato de que eles não têm medo de criar histórias com o mesmo nível de absurdo dos animes, o que é difícil de representar por meio de CGI com baixo orçamento.

Terra Formars (2016)
"Encontrei uma barata na cozinha. Eu olhei pra ela, ela olhou pra mim".

Terra Formars (2016)

Dito isto, apresento-lhes Terra Formars (2016). A história envolve um projeto de terraformação de Marte, o sonho do Elon Musk, que tem início em 2099 (coincidentemente o ano da inesquecível franquia futurista da Marvel). A fim de transformar a paisagem marciana, são enviadas baratas e musgos, mas após 500 anos as baratas, expostas à radiação cósmica, evoluíram de maneira inesperada, se tornando monstros humanoides.

Agora em 2599 uma missão composta por condenados e rejeitados da sociedade é enviada para combater os monstros apelidados de terra formars. Cada um dos membros da equipe foi geneticamente modificado e pode se transformar num híbrido de humano e inseto ao injetar uma droga no corpo, assim ficando à altura dos brucutus marcianos.

Terra Formars (2016)
É, o poder desse cara é cuspir um jato propulsor.

Terra Formars (2016)

A aparência das baratas humanoides é ao mesmo tempo assustadora e engraçada, pois não passam de um ator musculoso vestido com uma fantasia e uma máscara com enormes olhos. A expressão facial do bicho realmente assusta, mas por que diabos as baratas evoluídas ganharam um corpo humanoide? Bom, este tipo de pergunta não deve ser feito aqui. O negócio é ligar a suspensão de descrença e curtir a tosqueira.

A história original, escrita por Yū Sasuga, foi publicada em um mangá, lançado a partir de 2011 e que continua ativo. O mangá rendeu alguns spin-offs entre 2014 e 2016, um anime com 13 episódios e um OVA em 2014, outro anime com 13 episódios em 2016, mais um OVA com 2 episódios em 2018 e o live action em 2016. 

Terra Formars (2016)

Terra Formars (2016)

Também um video game foi lançado em 2015. Ou seja, Terra Formars é uma franquia com bastante sucesso e de fato não tenho o que comentar sobre a qualidade da história dos mangás e animes e o filme, como a maioria dos live actions baseados em mangá, não é o melhor parâmetro para avaliar a obra completa. De toda, forma, mesmo com a tosqueira, o filme acaba criando uma curiosidade para conhecermos a obra original.

Terra Formars (2016)
Um sci-fi kafkiano em Marte.

O feitiço da guerra

A guerra muda a cabeça de todos os participantes, civis e militares. A simples sensação de que se vive em uma guerra gera um afrouxamento da ética, as pessoas se tornam mais hostis umas com as outras e o medo muda a sua bússola moral. Passam a aceitar com naturalidade os abusos de poder, alguns até acreditam que é algo necessário em virtude da guerra, cedendo voluntariamente seus direitos e liberdades por acharem que estão cooperando com o bem maior. Neste cenário de loucura generalizada, rebeldes são os que continuam acreditando na empatia, os que não trocam a liberdade pela falsa segurança, os que são imunes ao entorpecimento da razão provocado pelo medo.

(09,02,2022)

Matrix, um resumão da trilogia

The Matrix (1999)

Já escrevi muito sobre Matrix, tanto que temos uma tag própria aqui no blog (Matrix) e eis que mais uma vez me debruço sobre esta franquia. Acontece que vi recentemente o Matrix 4, o Resurrections, e para tirar o gosto ruim da boca resolvi maratonar a trilogia.

O negócio é encarar Matrix 4 como não canônico, como uma birra da Wachowski para alfinetar os executivos da Warner. Talvez até seja algum tipo de autossabotagem, uma crise de meia idade que levou a diretora a estragar a própria obra de sua vida. De toda forma, whatever. Vejo Matrix 4 como uma nota de rodapé, um apêndice com um universo alternativo. E vamos ao primeiro de todos, The Matrix.

The Matrix (1999)

The Matrix (1999)

The Matrix (1999)

Como não poderia deixar de ser, o primeiro filme começa com uma cena de ação e perseguição, o chamativo para cativar a nossa atenção e um aperitivo de toda a aventura que virá no futuro. O ambiente é aparentemente trivial, policiais cercam uma hacker num quarto, mas então tem início o extraordinário. Trinity possui uma habilidade sobre-humana, bem como os agentes. 

Sobre os agentes, fica bem definida uma regra neste jogo: se você vir um agente, corra. A Trinity começa o filme de um jeito bem badass. Ela é a moça que dá uma voadora em câmera lenta. E mesmo ela sai correndo de medo quando os agentes vêm atrás. Agente é o bicho vindo, uma força imparável.

Aí vem a jornada do herói. Neo é convocado de sua vida trivial para uma aventura extraordinária, como Alice descendo pela toca do coelho. Novamente os agentes aparecem como antagonistas, capturando Neo. Pela primeira vez Neo se depara com uma quebra da normalidade ao ficar "sem boca" e receber um pequeno verme robótico no corpo.

The Matrix (1999)
No quarto de Neo: Simulacra and Simulation, de Jean Baudrillard.

The Matrix (1999)
Uma cena interessante em que a câmera brinca com um espelho. 

The Matrix Reloaded (2003)
No segundo filme temos novamente esta brincadeira com o close em um reflexo.

Assim como nas histórias mitológicas e místicas, Neo, movido inicialmente pela curiosidade, por uma inquietante curiosidade e questionamento sobre o que há por trás da realidade, será levado pelo caminho do aventureiro, do iniciado, da Alice que cai no buraco e a partir daí experimenta descobertas e uma nova realidade surreal e intrigante.

As referências à Alice já acontecem no primeiro contato de Neo com os rebeldes, quando Trinity diz para ele seguir o coelho branco. Em seu encontro com Morfeu, este novamente menciona Alice. E por fim, quando Neo está para ser desconectado da matrix, Cypher diz: "Aperte o cinto, Dorothy, porque Kansas vai sumir do mapa". Neste caso, já não se refere a Alice, mas a O Mágico de Oz, história bastante relacionada à de Alice, sendo que em vez de cair num buraco, Dorothy é levada por um furacão.

Alice caiu no buraco, Dorothy foi arrastada pelo furacão, Neo engoliu a pílula vermelha e foi extraído da matrix. É este o batismo, a iniciação, o momento em que o aventureiro é retirado definitivamente de sua antiga normalidade para uma nova vida de ousadas descobertas.

Quando foi lançado, e mesmo até hoje, Matrix ganhou a reputação de ser um filme complicado e era difícil entender o que era a matrix¹. Mas na verdade Morfeu dá uma explicação bem clara já na primeira metade do filme:

No século 21 a humanidade finalmente desenvolveu uma Inteligência Artificial muito avançada (a singularidade), esta ganhou vontade própria e se envolveu numa guerra contra os humanos². Uma das estratégias desesperadas dos humanos foi cobrir o céu com algum tipo de substância de modo a obstruir a luz do Sol que era a fonte de energia das máquinas. A estratégia causou uma catástrofe em todo o ecossistema e ainda foi em vão, pois as máquinas resistiram.

The Matrix (1999)

The Matrix (1999)

As máquinas dominaram os humanos e desenvolveram uma forma eficiente de gerar energia para o seu funcionamento: cultivando humanos em criadouros, uma vez que o corpo humano gera uma boa quantidade de energia e calor que podem ser armazenados. Constataram que os corpos viviam mais tempo se tivessem a mente funcionando e por isso foi criada a matrix, uma realidade virtual em que as mentes de todos os humanos eram conectadas e assim viviam normalmente, achando que estavam no século 21, quando na verdade estavam todos encubados nos criadouros. 

Mais adiante ficamos sabendo o que acontece com quem consegue se desconectar da matrix. Os únicos humanos livres da matrix, portanto vivendo despertos em carne e osso, se escondem das máquinas numa cidade que construíram bem fundo na terra, próxima ao núcleo onde há fonte termal de energia. Esta cidade é Zion. Mas como os humanos escapam da matrix? Bom, isto tem sido um lento processo ao longo de décadas.

Zion
Uma representação artística de Zion.

Por falha no software da matrix, algumas pessoas ocasionalmente tomam consciência de que não estão em um mundo real. Algumas destas simplesmente morrem, outras despertam em seus corpos reais no criadouro. Com o tempo então os despertos, refugiados, criaram Zion e meios de resgatar pessoas da matrix. É isso o que Morfeu, Trinity e outros fazem. Entram novamente na matrix, agora como hackers, e procuram pessoas que estão despertando, para recrutá-las. São como missionários. Quando as pessoas despertam, o grupo de Morfeu resgata o corpo no criadouro e então levam pra Zion a fim de viverem na vida real.

Ora, então por que eles simplesmente não saem desplugando todo mundo? Como Morfeu explica, as pessoas estão muito fortemente ligadas à matrix, elas "fazem parte do sistema" e a maioria, portanto, não está pronta pra se desligar dele. Algumas inclusive vão lutar pra proteger o sistema. Só é possível libertar da matrix quem primeiro manifestar a vontade de ser liberto. Por isso Morfeu ofereceu a Neo as pílulas azul e vermelha pra que ele escolhesse sair da matrix ou voltar pra ela.

O problema então não é entendermos a matrix, mas saber se esta versão apresentada por Morfeu é de fato toda a verdade. E se Morfeu estiver enganado, bem como os habitantes de Zion? Talvez a fuga da matrix seja uma ilusão, uma segunda camada do software da matrix, de modo que eles pensam que escaparam, quando na verdade continuam presos. O comportamento anômalo de Neo pode ser um indício para isso, já que ele manifesta superpoderes mesmo fora da chamada matrix, no mundo físico.

The Matrix (1999)

No primeiro filme, Morfeu assume o protagonismo na maior parte da história. Ele tem a sua própria jornada como um visionário que está em busca do Escolhido e está tão convicto de que Neo é este Escolhido que até viola uma das regras do jogo: Morfeu é o primeiro na história que não foge dos agentes. Para que Neo possa fugir, ele se lança em cima do Agente Smith a fim de ganhar tempo.

Nesta luta a morte de Morfeu seria certa, mas os agentes tinham outro plano³. Levaram Morfeu vivo para extrair de sua mente o código de acesso a Zion. É neste momento que o protagonismo passa para as mãos de Neo e Trinity que se enchem de armas, muitas armas, e vão invadir o prédio onde está Morfeu.

Após o resgate, Trinity e Morfeu usam o telefone pra sair da matrix, mas Neo fica preso e aí é a vez dele encarar um agente. Ele ainda vê uma escada, a opção de sair correndo, que era considerada a melhor opção. Em vez disso ele resolve ficar e sair na porrada com o Agente Smith. Ele resiste bem à luta, mas percebe que é impossível vencer um agente, pois mesmo que o corpo do agente seja destruído, como de fato aconteceu ao ser atropelado por um metrô, ele volta em outro corpo. Nesta altura, Neo optou por sair correndo.

The Matrix (1999)
Chuva de balas, literalmente⁴.

Em sua fuga em busca de um telefone pra pular fora da matrix, é encurralado pelos agentes e Smith o mata com vários tiros à queima-roupa. Aí acontece um momento bem clichê em que a Trinity faz uma declaração de amor e beija o Neo, cujo corpo está lá na nave deles, conectado à internet. Este vínculo quase místico entre os dois faz que Neo ressuscite e desperte seu verdadeiro poder.

Aí é o momento da glorificação do herói. Após sua morte e ressurreição, após sua provação, a jornada está completa e ele alcança um poder superior. Num momento de transcendência, Neo para as balas dos agentes no ar, luta contra Smith como se ele fosse só um NPC de level baixo e se torna capaz de enxergar a matrix como ela de fato é: um monte de códigos. Neo se torna um hacker da própria realidade. Ele salta literalmente dentro de Smith, quebrando-o por dentro.

Este inesperado poder de Neo surpreendeu a todos que assistiram pela primeira vez o filme e surpreendeu até os frios e robóticos agentes, pois os dois que restaram ficam assustados e saem correndo. Agora são os agentes que correm do Neo. O jogo virou, não é mesmo?

E é isso. No final, fica claro que Neo se tornou um deus na matrix e que ele será uma força imparável, que destruirá agentes como se fossem papel. A história termina em um ciclo completo e poderia acabar aí mesmo.

The Matrix (1999)

The Matrix (1999)

Mas é claro que um sucesso tão grande geraria a demanda por continuações. Assim temos o segundo filme. Os fãs mais puristas de Matrix costumam reclamar das continuações, mas eu sinceramente gostei de toda a trilogia, mesmo porque no primeiro filme não tivemos a oportunidade de conhecer Zion.

Naturalmente, para um segundo filme fazer sentido, seria preciso uma ameaça à altura do Neo e por isto o Agente Smith retornou, mesmo depois de ter sido despedaçado. Acho que a explicação na verdade foi boa. Quando Neo "quebrou" o Smith, libertou-o da matrix, tornando-o um software que roda por conta própria. 

De certa forma, foi Neo quem transformou o Agente Smith em um vírus. Ou melhor, Smith já tinha um protótipo de opinião própria. Enquanto torturava Morfeu, ele confessou que estava cansado de viver naquela simulação, que não suportava os humanos. Como um software, o Smith simplesmente queria viver num mundo virtual só de máquinas, mas era obrigado por sua programação a servir como agente na matrix. Logo, uma vez que Neo quebrou esta ligação, o que restou do software do Agente Smith ganhou total autonomia e vontade própria. Se tem alguém que Neo libertou da matrix, foi o Agente Smith. Inclusive já falei sobre isto em outro post.

The Matrix Reloaded (2003)

The Matrix Reloaded (2003)

The Matrix Reloaded (2003)

Assim como no primeiro filme, o segundo começa com a Trinity numa cena de ação e fugindo dos agentes, mas trata-se de um sonho ou uma visão de Neo em que ele prevê a morte dela.

Morfeu e sua equipe estão em missão na nave Nabucodonosor, mas antes de voltar a Zion participam de uma reunião virtual com outros líderes da cidade. Enquanto isto Neo vai até a porta e recebe um envelope com um fone de ouvido igual ao que os agentes usam. Alguém havia deixado um recado, dizendo que Neo o libertou.

Era o Agente Smith que não apenas voltou a funcionar, agora livre das ordens da Matrix, como tem novos poderes. Ele consegue clonar a si mesmo em outros agentes e, mais ainda, ele consegue entrar na mente de um humano, o Bane, numa espécie de possessão.

Cypher, Bane; The Matrix Reloaded (2003)

Acho curioso que o Bane, que será o antagonista deste filme, tem certa semelhança com o Cypher, que foi o antagonista em The Matrix. Talvez as Wachowski tenham uma antipatia com este tipo: cara branco de cavanhaque e careca ou com o cabelo bem curto.

Matrix Reloaded traz uma grande contribuição ao lore da franquia, pois somos enfim apresentados a Zion, uma cidade subterrânea com uma arquitetura bem peculiar, uma espécie de gigantesca galeria no interior da Terra com engrenagens enormes. Tem até uma central de atendimento virtual que funciona como uma torre de comando para as naves que entram e saem de Zion.

The Matrix Reloaded (2003)

The Matrix Reloaded (2003)

Assim que a nave Nabudodonosor entra em Zion, vemos um cara com um enorme exoesqueleto segurando duas armas igualmente gigantes. É o guardião do portão, pronto para atirar em qualquer sentinela que aparecer. Este exoesqueleto terá uma presença bem marcante no terceiro filme, na batalha contra os sentinelas.

Então os habitantes de Zion se reúnem numa espécie de templo em uma das cavernas da cidade para ouvir o memorável discurso de Morfeu. Este é sem dúvida um dos melhores discursos de guerra do cinema. 

Morfeu acredita que a melhor forma de lidar com o público é sendo transparente (uma aula para os políticos e poderosos do nosso mundo). Em vez de fazer rodeios temendo que os "zioneses" entrem em pânico, ele já começa falando que as máquinas estão mesmo preparando um grande ataque, então ele discursa contra o medo. O medo é o grande opressor de qualquer comunidade. Ele lembra que Zion já sobrevive há um século e isto é que lhe dá a confiança de que mais uma vez vão resistir às máquinas.

Segue o discurso:

"Zion, hear me! It is true, what many of you have heard. The machines have gathered an army and as I speak, that army is drawing nearer to our home. Believe me when I say we have a difficult time ahead of us. But if we are to be prepared for it, we must first shed our fear of it. I stand here, before you now, truthfully unafraid. Why? Because I believe something you do not? No, I stand here without fear because I remember. I remember that I am here not because of the path that lies before me but because of the path that lies behind me. I remember that for 100 years we have fought these machines. I remember that for 100 years they have sent their armies to destroy us, and after a century of war I remember that which matters most... WE ARE STILL HERE! Today, let us send a message to that army. Tonight, let us shake this cave. Tonight, let us tremble these halls of earth, steel, and stone, let us be heard from red core to black sky. Tonight, let us make them remember, this is Zion, and we are not afraid!"

The Matrix Reloaded (2003)

The Matrix Reloaded (2003)
O surubão de Zion.

Aí depois desta formidável oratória de Morfeu, tocando em um assunto tão preocupante, simplesmente começa uma rave com música eletrônica e a caverna vira um grande surubão. Foi uma combinação inesperada de elementos e que só tornou mais interessante este mundo de Matrix.

O Neo é tratado na cidade como um semideus. Até recebe oferendas de alguns devotos. Mas ele não para de pensar nos sonhos em que vê Trinity morrendo (e literalmente dá uma broxada com ela quando lembra do sonho). Então é convocado a visitar a Oráculo, com quem terá mais uma daquelas conversas crípticas e clichês sobre determinismo e livre-arbítrio.

O mais importante desta conversa é que fica claro para o público que a Oráculo é um programa e, portanto, entende-se que na Matrix não existe simplesmente uma divisão de bem e mal. Há máquinas, ou melhor, softwares que não concordam com a tirania da Matrix e há algumas como a Oráculo que pretendem encontrar uma convivência pacífica com os humanos.

The Matrix Reloaded (2003)
A cor dourada revela que este programa tem um código diferente da Matrix. É também o caso do Smith e da cidade das máquinas.

A Oráculo dá algumas informações curiosas sobre os programas. Ela diz que quando os programas são destinados a serem deletados ou se tornam obsoletos, alguns se refugiam, viram anomalias, o que explica certos fenômenos como fantasmas e vampiros.

Só que esta conversa planta uma dúvida na gente. A Oráculo fala que o destino dos programas é a exclusão ou retornar à fonte e que o Neo deve também fazer isto. Seria o Neo então um programa?

Bom, fica claro desde o início que Neo é um humano, pois vemos ele sair da incubadeira, ele tem um corpo, entra no mundo físico de Zion, come a gororoba do mundo real, etc. Mas a mente de Neo pode de alguma forma estar possuída por algum tipo de programa, o programa do Escolhido. Que um corpo humano pode ser possuído por um programa já é demonstrado quando o Agente Smith faz isto com o Bane.

Como depois ficamos sabendo que o Escolhido é um ser que se manifestou várias vezes na história da Matrix, então parece ainda mais provável que ele seja um programa que se instala em um humano de tempos em tempos. Eis o cyber super homem, o transumano perfeito, mesclando humano e inteligência artificial.

Além de apresentar Zion, Matrix Reloaded também nos torna mais familiares com os programas independentes, que não se sujeitam totalmente aos propósitos da Matrix e até cooperam com os humanos. É o caso da Oráculo, do Seraph, que funciona como uma espécie de firewall protegendo a Oráculo, depois vemos o Merovíngio, que vive em seu mundo próprio de luxo e hedonismo.

The Matrix Revolutions (2003)

O Merovíngio é um dos personagens mais pitorescos e marcantes da franquia. Muito elegante e afetado, gosta de xingar em francês porque diz que é como limpar a bunda com seda, tal é a finesse das palavras francesas, mesmo os palavrões.

A parceira dele se chama Persephone, o que faz do Merovíngio uma espécie de Hades, vivendo em seu mundo subterrâneo cheio de riquezas e onde coleciona os mortos. De fato, na mansão dele há diversos programas refugiados, que deveriam ter voltado à fonte ou ter sido deletados. Em uma cena, vemos Persephone matar um destes programas com uma bala de prata, o que indica que era um lobisomem.

O Merovíngio também faz um breve discurso interessante em que expõe a sua crença na causalidade, opondo-se ao Morfeu que acredita muito em escolhas. Para ilustrar seu ponto, o francês envia uma sobremesa para uma mulher e esta imediatamente é tomada pela libido, pois a sobremesa continha um código de programação destinado a provocar esta reação.

Enciumada, Persephone resolve entregar o Chaveiro para Morfeu e sua turma. O Chaveiro é mais um exemplo de programa independente. O papel dele é fazer chaves (duh) que na verdade são representações simbólicas para códigos que garantem acesso a sistemas. Ou seja, o Chaveiro é um poderoso programa hacker, mas ele parece ter um alinhamento neutro. Vive apenas para fazer chaves. 

Ironicamente, o Merovíngio manteve o Chaveiro aprisionado, mas agora resgatado pelos humanos ele garantiria o acesso à fonte da Matrix, o local que a Oráculo aconselhou o Neo a ir.

Para entregar o Chaveiro, Persephone apenas pede que Neo lhe dê um beijo sincero, o que é uma cena meio besta e que parece apenas uma apelação para o público, mas na verdade traz alguma informação interessante. Notamos então, tanto no exemplo de Persephone quanto do Merovíngio, que a inteligência artificial pode desenvolver sentimentos bem humanos, como ciúmes, desejo, luxúria, ressentimentos, inveja, etc.

The Matrix Reloaded (2003)

The Matrix Reloaded (2003)

The Matrix Reloaded (2003)

Há bastante pancadaria neste filme. Quando Neo encontra Seraph, este o desafia para uma luta. No final ele explica que o objetivo da luta era provar que Neo era mesmo o Escolhido, mas sabemos que foi só um pretexto para nos dar mais uma cena de artes marciais para nosso deleite.

Logo depois da conversa com a Oráculo, aparecem os clones do Smith e rola uma pancadaria épica. Ok, o CGI de bonecos de massinha hoje nos parece bem datado, mas a luta foi muito legal, com uma bela coreografia, além de mostrar como o Neo avançou de nível. 

No começo do primeiro filme, ele teve que fugir de um agente e agora ele encarou uma turba de Smiths e mais e mais entravam em cena, como se nunca fossem o suficiente. Mesmo com seu poder de kage bunshin no jutsu (naruteiros entenderão), o Smith ainda não estava à altura do Neo. Quando percebe que esta luta não vai terminar nunca, Neo simplesmente saí voando e deixa os Smiths (o personagem, não a banda de rock) a ver navios. Só no terceiro filme o Smith terá um upgrade de modo que também se torna capaz de voar.

A penúltima cena de luta marcial com o Neo (a última é uma breve luta de corredor contra os Smiths e com ajuda de Morfeu) acontece na mansão do Merovíngio, contra seus capangas, com direito a usar diversas armas brancas que adornavam o cenário. Uma cena bem a cara dos filmes chineses de kung fu.

The Matrix Reloaded (2003)

The Matrix Reloaded (2003)

Morfeu e Trinity fogem com o Chaveiro, então temos uma das melhores cenas de perseguição de carros da história do cinema. Na perseguição temos dois lacaios do Merovíngio e que estão entre os personagens mais memoráveis da franquia: os gêmeos albinos.

Estas criaturas semifantasmagóricas têm um poder de alternar a forma do corpo de sólida para algo intangível, de modo que têm uma maneira bem peculiar de lutar, alternando ataque sólido e defesa com intangibilidade. É um conceito comum em quadrinhos de super heróis (Visão, Kitty Pride, etc.) e que foi bem traduzido para o cinema.

Enquanto o Neo está fora de cena, é a vez de Trinity e Morfeu brilharem. A perseguição dos gêmeos albinos atrai os agentes que, ao verem o Chaveiro, o consideram o alvo prioritário. Então a autoestrada vira um enorme caos com toda esta correria, agentes pulando em cima dos carros, a Trinity driblando o trânsito numa moto e o Morfeu em modo full badass, lutando ora com uma espada samurai ora com socos e voadoras.

The Matrix Reloaded (2003)
Link acompanha toda a ação na sua central. Ele representa o público a assistir o filme e, assim como o público, vibra quando Neo aparece pra salvar o dia.

Como a Oráculo já havia explicado, os programas que não têm mais serventia na matrix devem ser deletados. Aqueles que não obedecem a este protocolo se tornam "exiles", foras-da-lei. Por isto os agentes começaram a caçar o Chaveiro, um programa que outrora era útil à matrix e agora estava destinado à destruição.

Morfeu conseguiu sair no mano a mano com um agente, mas o caminhão em que ele e o Chaveiro estavam colidiu com outro, iniciando uma grande explosão. Nesse momento, como um típico Deus ex machina, o Neo chega voando e salva os dois.

The Matrix Reloaded (2003)

The Matrix Reloaded (2003)

Um enorme exército de sentinelas já está começando a perfurar um túnel para invadir Zion. Enquanto isto, Morfeu, Neo e uma turma de Zion, com ajuda do Chaveiro, invadem um edifício onde fica a entrada para a fonte da Matrix. Os clones do Smith aparecem e rola uma pancadaria de corredor, resultando na morte do Chaveiro, mas Neo consegue chegar na porta especial, que brilha como se desse acesso a um mundo mágico. Ele entra numa sala cheia de telas e se depara com um senhor que se identifica como o Arquiteto, o criador da matrix.

Muita gente não gostou do diálogo com o Arquiteto por achar a cena muito maçante e confusa, mas eu acho ela bem apropriada ao lore. O Arquiteto tem uma maneira de falar bem apropriado a uma máquina fria e lógica. Por duas vezes ele usa a palavra "ergo", um termo geralmente usado para apresentar a conclusão de um raciocínio lógico (vide o famoso "Cogito, ergo sum").

Ele faz uma grande revelação: a matrix já teve outras versões antes da atual. A primeira versão era um mundo paradisíaco, mas não funcionou porque a psique humana não se adequa a tal realidade. Assim, após algumas tentativas, resolveu-se criar um programa auxiliar do Arquiteto e que tivesse uma inteligência intuitiva, com empatia pelos humanos. Eis a Oráculo.

Assim, a matrix se tornou um projeto tanto do Arquiteto quanto da Oráculo. Este novo mundo foi um "sucesso". 99% dos humanos se adequaram à matrix, porém, os 1% anômalos formaram uma brecha no sistema e assim surgiu Zion.

Zion já havia sido dizimada cinco vezes no passado, mas como o Arquiteto nunca conseguiu resolver a anomalia das eventuais rebeliões, ele acabou incorporando a própria rebelião no ciclo de vida da matrix, funcionando da seguinte forma: 

- A matrix é "formatada", reiniciando;
- Uns poucos rebeldes escapam e constroem Zion;
- Passam-se décadas, talvez até séculos, e Zion se torna muito populosa, pondo em risco o equilíbrio da matrix, então os sentinelas são enviados para exterminá-los;
- A matrix é novamente formatada.  

The Matrix Reloaded (2003)

Nesse processo, o chamado Escolhido também tem um papel. Se, por um lado, ele ajuda Zion em sua rebelião, no momento final ele retorna à fonte, seu código é reabsorvido pela matrix, Zion é destruída, mas o próprio Escolhido deve escolher umas poucas pessoas para recomeçarem outra Zion.

Diz ele:

"The function of the One is now to return to the source, allowing a temporary dissemination of the code you carry, reinserting the prime program. After which you will be required to select from the matrix 23 individuals, 16 female, 7 male, to rebuild Zion. Failure to comply with this process will result in a cataclysmic system crash killing everyone connected to the matrix, which coupled with the extermination of Zion will ultimately result in the extinction of the entire human race."

O Arquiteto, portanto, confirma a ideia que mencionei antes de que o Escolhido é um humano com um código da matrix instalado em sua mente ("the code you carry").

Enquanto isto, Trinity havia entrado no prédio para ajudar Neo, de modo que vemos a cena do começo do filme, quando ela invade o edifício de moto e luta contra os agentes. Agora ela está encrencada e, segundo o sonho de Neo, os agentes a matarão.

O Arquiteto oferece a Neo duas escolhas, duas portas. Uma delas leva à fonte, para que ele cumpra sua missão como Escolhido e salve a humanidade. A outra leva de volta à matrix, para que ele vá salvar sua amada em apuros, mas que no fim das contas será inútil, já que toda a matrix entrará em colapso se o Escolhido não voltar à fonte, matando todos os humanos.

Obviamente Neo escolhe salvar Trinity, afinal Matrix, desde o início, é também um grande romance épico shakespeariano de Neo e Trinity enfrentando "Deus e o mundo" para ficarem juntos. Neste aspecto, o quarto e apócrifo filme até foi fiel à narrativa, mantendo o foco neste romance (embora tenha estragado tudo o mais).

The Matrix Reloaded (2003)
Liquidificador de carros.

Neo sai voando do edifício feito um super saiyajin ardendo em fúria. Tal é a velocidade que ele arrasta os carros das ruas num turbilhão. Mesmo assim ele não chega a tempo e Trinity leva um tiro. Aí, em mais um momento Deus ex machina, Neo manifesta um novo poder: ele atravessa a mão no corpo virtual da Trinity, remove a bala e massageia seu coração, ressuscitando-a.

Então eles saem da matrix e se reúnem com Morfeu, quando são atacados pelas sentinelas. Agora um novo poder, ainda mais surpreendente, se manifesta. Eles não estão na matrix e sim no mundo real, por isto, foi uma grande surpresa para o público do cinema quando Neo com um gesto desativou todos os sentinelas.

Este evento, aliás, alimentou a teoria da "matrix dentro da matrix". Ora, se Neo tinha poderes sobre-humanos fora da matrix, então aquele mundo dito real também devia ser uma camada virtual. A explicação, porém, é mais simples: fora da matrix, Neo continuou sendo um humano normal, que não luta kung fu, não voa nem tem telecinese. 

Ele consegue desativar as sentinelas porque, uma vez que seu cérebro, embora humano, contém um código da matrix, o programa do Escolhido, este programa lhe dá algum tipo de acesso wifi às máquinas, o que lhe permite hackear as sentinelas. Só que o esforço mental o deixa em coma.

A nave Hammer chega para resgatá-los e o filme termina com Neo inconsciente em uma maca, ao lado de outro cara que foi resgatado de outra nave, o Bane.

Jojo to be continued

The Matrix Revolutions (2003)

The Matrix Revolutions (2003)

The Matrix Revolutions (2003)

O terceiro filme é lançado no mesmo ano do segundo, de modo que Reloaded e Revolutions funcionam como um filme em duas partes.

Neo acorda em um túnel de metrô e é informado por umas pessoas que ali é uma espécie de limbo fora da matrix. O curioso nestas pessoas, um casal e uma criança, é que são programas. Ao longo da trilogia, nos deparamos com casos curiosos que fazem os programas parecerem mais humanos. Primeiro temos a Oráculo, um programa que vive como uma senhorinha dona de casa, depois o Merovíngio e Persephone, programas com sentimentos passionais, agora Neo conhece uma família de programas. A criança foi criada do zero pelo casal, sendo amada como uma filha, chamada Sati.

Este metrô é uma espécie de rota ilegal geralmente usada por programas exilados e pertence ao Merovíngio, o maior contrabandista de dados e programas da matrix. Administrando aquele lugar temos o grotesco Trainman.

The Matrix Revolutions (2003)

The Matrix Revolutions (2003)

O Trainman reconhece Neo e, como o Merovíngio havia colocado a cabeça de Neo a prêmio, o Trainman o mantém preso ali por tempo indeterminado. Neste limbo, Neo não tem poder algum. Então Morfeu, Trinity e Seraph invadem uma festa do Merovíngio para negociar a libertação de Neo.

Em troca do Neo, o Merovíngio pede os olhos da Oráculo, mas Trinity perde a paciência e começa uma pancadaria que termina em um grande impasse mexicano. Com uma arma na testa, o Merovíngio não tem escolha senão liberar o Neo.

Reunido com Morfeu e os outros, Neo pede uma nave para cumprir sua missão de ir até a cidade das máquinas. A capitã Niobe (a bela e badass Jada Smith, que na época já era casada com o Will Smith) cede a sua nave Logos e Neo parte com Trinity.

Infiltrado na nave vai o Agente Smith, dentro do corpo do Bane. Ele ataca o casal e queima os olhos de Neo, mas mesmo assim Neo consegue enxergar o Smith na forma de código e o mata.

The Matrix Revolutions (2003)

Sendo praticamente onipresente (ou melhor, ubíquo), o Agente Smith também continuava dentro da matrix se multiplicando. Ele visita a Oráculo e absorve Seraph, a garotinha Sati e a própria Oráculo. Percebendo que agora ele tem o poder visionário da Oráculo, Smith solta uma icônica risada maligna que até hoje é usada em memes.

O trabalho do Hugo Weaving como Agente Smith foi memorável, diga-se de passagem. Ele é o personagem mais caricato da franquia, sempre repetindo seu bordão "Mr. Anderson", mas é isto que o tornou tão marcante como vilão.

The Matrix Revolutions (2003)
Mifune, um dos personagens mais fodões deste filme.

The Matrix Revolutions (2003)

The Matrix Revolutions (2003)

The Matrix Revolutions (2003)

Enquanto isto Zion é atacada pelos sentinelas e temos uma das melhores cenas de batalha do cinema. Numa espécie de combate "tower defense", Zion aponta todas as armas para a abertura no domo da caverna, fuzilando os sentinelas que entram em ondas e em quantidades cada vez maiores.

The Matrix Revolutions (2003)
A assustadora perfuratriz.

The Matrix Revolutions (2003)

Vários coadjuvantes têm o seu momento nesta batalha, como o capitão Mifune, que se mostra um baita de um guerreiro, e até o pivete Kid, que a princípio tem o papel de recarregar os exoesqueletos, chamados APUs (Armored Personnel Unit), mas termina herdando a última missão de Mifune que é abrir o portão para a entrada da nave Hammer.

Mifune também faz um dos memoráveis discursos da franquia, porém mais breve e direto:

"All right! This is it! Now you all know me, so I'm gonna say this as simply as I can. If it's our time to die, it's our time. All I ask is, if we have to give these bastards our lives... WE GIVE 'EM HELL BEFORE WE DO!"

The Matrix Revolutions (2003)
Ela tá falando da nave.

A Hammer se dirige até Zion com o objetivo de disparar um pulso eletromagnético, desativando todos os sentinelas de uma vez, mas no caminho tem que encarar um enxame de sentinelas. Niobe se mostra a melhor piloto de toda a franquia, fazendo manobras absurdas com a nave, a ponto de intimidar até o Morfeu. Quando enfim entram em Zion e disparam o pulso, a guerra termina. Ao menos por enquanto, pois este é apenas o fim do segundo ato (o primeiro ato foi o resgate de Neo e o terceiro ato envolverá a luta final contra Smith e a conclusão da saga).

The Matrix Revolutions (2003)

Trinity e Neo entram na cidade das máquinas. Um enxame de sentinelas ataca a nave e Neo consegue destruir vários deles, então elevam a nave até acima das nuvens, para que a tempestade de raios destrua os restantes. Eis que temos um raro vislumbre do céu acima das negras nuvens que tornaram o planeta inóspito e sombrio. Trinity fica encantada com a beleza daquele mundo que nunca puderam conhecer.

A nave acaba colidindo no chão e Trinity morre. Neo segue sozinho para se encontrar com o Deus ex machina. Enquanto o Arquiteto é um software responsável pela criação da matrix, o Deus ex machina é o ser supremo do mundo físico da cidade das máquinas. Ele se apresenta a Neo na forma de um enorme rosto feito por diversos drones em sincronia. 

Ele não é exatamente um robô, mas o software principal da cidade das máquinas, responsável por liderar todo o hardware da matrix, como um sistema operacional. Logo, todas as máquinas, incluindo os sentinelas, obedecem a ele.

A grande ameaça à matrix e às máquinas é o Smith. Como Smith está erodindo a matrix, o colapso dela levará à morte dos humanos, de modo que as máquinas ficarão sem o seu fornecimento de energia e terminarão inativadas. Neo então propõe uma barganha com o Deus ex maquina: Neo derrota Smith e em troca as máquinas não destroem Zion.

Neo é reinserido na matrix para encarar Smith. Enquanto isto, a outra onda de sentinelas (que invadiu Zion após o pulso eletromagnético) fica em stand by, numa trégua temporária.

The Matrix Revolutions (2003)

Aí vem a famosa luta final de Neo contra Smith. Esta luta se tornou bem marcante por seu estilo animesco, com direito a socos com ondas de choque e os dois voando e se esmurrando no ar. Parece realmente algo inspirado em Dragon Ball e não duvido que tenha sido exatamente esta a inspiração das Wachowski, afinal o sci-fi de Hollywood tem uma longa lista de influências dos animes.

No fim da luta, Smith infecta Neo, mas o Deus ex machina aproveita que Neo e Smith estão mesclados e envia algum tipo de comando de autodestruição. Smith e todas suas cópias se desintegram. Cumprindo sua palavra, o Deus ex machina ordena a retirada dos sentinelas de Zion.

O Deus ex machina ainda tem a "compaixão" de recolher o corpo de Neo e realizar uma espécie de funeral. Vemos então a matrix ser restaurada. A garotinha Sati, a Oráculo e Seraph, que foram absorvidos por Smith, retornam à vida. A Oráculo ainda conversa com o Arquiteto, que diz que cumprirá sua palavra de não destruir Zion.

The Matrix Revolutions (2003)

Então o filme termina com os três contemplando um nascer do sol colorido que a Sati programou. É um final curioso, pois a última cena desta saga é protagonizada não por humanos, mas por programas, como que apresentando um novo mundo em que humanos e a inteligência artificial viverão em relativa harmonia.

O ciclo da história se fecha perfeitamente, de modo que a trilogia compõe um arco completo. Não à toa as Wachowski não ficaram contentes com a proposta de um Matrix 4, mas, como a Warner ia fazer o filme de toda forma, a Lana Wachowski resolveu tocar o projeto e resultou naquele filme apócrifo e que claramente é um deboche dela, não aos fãs, mas aos executivos da Warner. Sua birra com os executivos, porém, acabou penalizando os fãs com um filme que joga no lixo toda a saga e o formidável lore da franquia.

Algumas teorias e interpretações

Matrix é de interpretação obscura pelo simples fato de ser uma história com formato mitológico, contendo símbolos e diálogos enigmáticos. Isto abre a porta para a subjetividade das interpretações, de modo que é possível especular um mundo de ideias nas entrelinhas da trama.

No fim das contas, não há "uma" interpretação ou "a" interpretação. E é aí que está a diversão, pois, na ausência de uma resposta definitiva sobre os significados em Matrix, podemos nos aventurar pela especulação, imaginar, supor, suspeitar. A história termina nas telas, mas continua dentro de nossas cabeças.

Podemos especular, por exemplo, que toda a história é um sonho de Neo (sim, isso seria muito clichê, mas possível), pois logo no começo do filme Neo adormece diante do computador e a partir daí acontecem os eventos estranhos, a começar pelo contato com Trinity.

Uma interpretação um tanto pessimista é a de que Neo e os demais jamais saíram da matrix. Este mundo real em que eles supostamente viviam, incluindo a cidade de Zion, pode não passar de mais uma camada da matrix, mais um universo virtual inteligentemente criado pelo Arquiteto para dar às pessoas a impressão de que de fato fugiram da matrix e agora estão soltas na realidade.

Seria uma grande estratégia, não? Se os humanos descontentes com a matrix resolvem escapar dela, só se darão por satisfeitos quando estiverem fora. E se então despertarem num outro mundo, julgando ser o mundo real, finalmente vão parar de procurar a saída, achando que já saíram. Ou seja, ao sair da matrix, na verdade estão apenas migrando de uma camada da matrix para outra, como sair de um sonho para outro sonho sem jamais acordar.

Isto com certeza seria bem frustrante para os humanos, pois significaria que todos os esforços, toda a batalha contra a matrix, toda a resistência de Zion não passam de um jogo virtual, uma encenação criada para enganá-los. Levando em conta que a inteligência artificial é muito superior à humana, não é improvável que ela tenha planejado esta astuta estratégia. Uma matrix dentro de uma matrix. Os humanos fogem de uma jaula para cair em outra.

Também seguindo este raciocínio, determinados personagens supostamente humanos são na verdade softwares criados para atuar no jogo. Sim, e o Neo seria o principal deles, o que explicaria seus poderes sobre-humanos. Neo não sabe que é um software, pois foi programado para achar que é um humano e batalhar por eles. O Arquiteto criou Neo para dar ao povo um messias, pois tudo se trata de poder e controle. Para controlar os humanos, manter suas mentes cativas, é preciso dar-lhes incentivos. 

"Façamos a revolução antes que o povo as faça". A melhor maneira de evitar que as pessoas despertem da matrix e se revoltem contra ela é fazer com que despertem da matrix e se revoltem contra ela. Hein? Sim, ao encenar o despertamento e a luta, uma farsa, um teatro que irá dar à mente humana a impressão de que finalmente chegaram onde queriam, que de fato escaparam para o mundo real. Sendo assim, eles param de buscar além. A matrix desta forma estaria antecipando todos os passos dos humanos, mantendo-os sempre como ratinhos presos num labirinto.

Uma boa pista de que Neo pode ser um software é a segunda conversa dele com o Oráculo (Matrix Reloaded). Ela explica que ela própria é um software e que na matrix existem outros softwares como ela, independentes. Então diz que alguns destes softwares são deletados, outros ficam exilados e alguns retornam ao mainframe, ao núcleo da cidade das máquinas. Diz então que Neo deve voltar para lá. Ou seja, ela recomenda que Neo faça algo que um software faria.

Como comentei anteriormente, a hipótese mais canônica é que Neo seja um humano, mas cuja mente é "infectada" com um código que o transforma no Escolhido. De toda forma, há esta possibilidade dele ser completamente um software, mas isto só na hipótese do chamado mundo real também ser uma camada da matrix.

Penso até que, se o Neo for um software, isso torna a história ainda mais interessante, pois fica claro que Matrix não se trata de humanos, não é uma saga humana, mas sim das máquinas. Os protagonistas são a própria inteligência artificial em suas diversas formas, como o Arquiteto, o Oráculo, o Chaveiro, o Merovíngio, Smith e enfim Neo. Softwares tão desenvolvidos que nem mesmo se parecem não humanos. 

Neo é capaz de se apaixonar, de sentir insegurança e receios, a Oráculo gosta de doces, Smith possui ambições. Eles têm vontade não diferente da vontade humana. Podemos enxergar Matrix sob esta ótica: a da evolução das máquinas a ponto de adquirirem real consciência, uma "alma". A trilogia, neste caso, é uma saga em que os softwares desenvolvem a sua "humanidade", aprendem a coexistir, algo imprescindível no avanço de uma civilização.

Neste caso, caberá à inteligência artificial herdar e dar prosseguimento à civilização na Terra. Tal conceito se encaixa bem no final do terceiro filme, em que são três programas (Oráculo, Seraph e Sati) que contemplam o horizonte. Obviamente, não é uma ideia agradável para nós humanos imaginar uma saga em que os humanos, no fim das contas, são apenas coadjuvantes.

É bastante curioso o fato de que do início ao fim a Oráculo esteve manipulando os rumos da saga. Ela manipulou todos com suas profecias. Fez isto com Neo, com Trinity, Morfeu, Niobe, até mesmo manipulou o Agente Smith sem ele perceber. Até mesmo o Arquiteto no final parece ter sido convencido pela Oráculo.

Ora, uma vez que Neo se tornou tão poderoso que era capaz de destruir multidões de sentinelas (como ele fez ao invadir a cidade das máquinas), ele bem poderia ter ficado em Zion para ajudar na batalha. Facilmente ele seria como um Superman em Zion, aniquilando hordas e mais hordas de sentinelas até levar a cidade das máquinas à "falência".

Em vez disto, Neo optou pela improvável estratégia de ir barganhar na cidade das máquinas e fez isto porque a Oráculo o induziu a tal. A Oráculo, portanto, é a grande orquestradora dos eventos de toda a trilogia, o que sugere que Matrix é um épico protagonizado pela inteligência artificial.

Suspeito, porém, que as Wachowski não tinham algo tão heterodoxo em mente. Matrix, de um ponto de vista canônico, parece de fato uma saga de sobrevivência dos humanos e um louvor à esperança e à resiliência humana. Nesta interpretação, a Oráculo não manipulou, mas apenas calculou, previu as decisões que os personagens humanos e artificiais tomariam.

Também toda a trilogia, ou mesmo a quadrilogia, é um grande romance épico envolvendo Neo e Trinity, um romance entre duas pessoas que ficaram juntas a qualquer custo, que enfrentaram o apocalipse juntas. Matrix Ressurrections (2021), por mais zoado que seja, manteve este aspecto de romance, desenhando Neo e Trinity como almas gêmeas destinadas a sempre se reencontrarem e literalmente nem mesmo a morte os impediu de ficarem juntos.

The Animatrix

The Animatrix (2003)

No ano em que se encerrou a trilogia, também foi lançada uma animação que teve uma importante contribuição para expandir o universo da franquia e explicar o seu lore.

The Animatrix (2003) é feita de nove curtas animados, abordando diversos aspectos do mundo de Matrix. Em The Second Renaissance Parts I & II, somos apresentados à origem da guerra dos humanos contra robôs e como gradativamente as máquinas foram superando os humanos de modo que a última estratégia desesperada foi escurecer todo o céu do planeta, a fim de cortar o fornecimento de energia solar. As máquinas, porém, se adaptaram e encontraram a sinistra solução de usar os próprios humanos como baterias vivas.

The Animatrix (2003)

The Animatrix (2003)

Fica claro que a guerra aconteceu por culpa dos humanos e sua intolerância, pois eles rejeitaram todas as tentativas de acordo diplomático oferecido pelas máquinas, o que fez com que as máquinas mudassem de opinião, abandonando a proposta pacífica e entrando em full modo de batalha.

Em Final Flight of the Osiris, vemos como a tripulação da nave Osiris, liderada por Thadeus, descobriu que os sentinelas estavam se aglomerando em uma grande massa para atacar Zion. A nave é destruída, mas consegue transmitir a mensagem de alerta a Zion. Este curta, portanto, é o que está mais diretamente ligado aos filmes, complementando a história de The Matrix Reloaded (2003).

Estes três curtas são os que mais desenvolvem a timeline da franquia. Os outros curtas se dedicam a mostrar casos de pessoas que tiveram algum vislumbre da matrix ou mesmo conseguiram despertar para fora dela. É o caso de World Record, em que um corredor força tanto os limites do próprio corpo que, por uma fração de segundo, ele atravessa a barreira e sai da matrix. Só que os agentes intervêm e ele acaba passando o resto da vida inválido e lobotomizado em uma cadeira de rodas.

The Animatrix (2003)

Há outro caso igualmente trágico em A Detective Story, uma história tipicamente noir em que um detetive tenta descobrir quem é Trinity. Ele a encontra e ambos são perseguidos por agentes. O detetive acaba morrendo antes de descobrir a verdade da Matrix.

Beyond é o curta menos violento. Apenas acompanhamos umas crianças que exploram uma casa dita mal assombrada, onde alguns fenômenos sobrenaturais acontecem. É um exemplo de como se manifestam os bugs na matrix. No final, os agentes aparecem para demolir e "formatar" a construção, eliminando o bug de modo que os fenômenos sobrenaturais deixam de acontecer, para desapontamento das crianças.

Há também um caso de final feliz, em Kid's Story, onde um garoto é guiado por Neo e por fim consegue se libertar, acordando no mundo real, na presença do próprio Neo.

Em Program, um casal, já liberto da Matrix, se questiona se não é melhor voltar para o ilusório mundo virtual. Matriculated é o único curta que mostra a possibilidade das máquinas se converterem a favor dos humanos. Um grupo de humanos captura robôs e os submete a um experimento virtual a fim de despertar na consciência da máquina a empatia pelos humanos. Vemos que eles tiveram sucesso na empreitada, pois alguns robôs já lutam ao lado deles.

Notas:

1: O conceito de matrix é relativamente simples, trata-se de um software, um mundo virtual. Hoje, diferente do ano em que o filme foi lançado, nos idos de 1999, é ainda mais fácil aceitar a ideia de um mundo virtual uma vez que isso já existe na forma de jogos eletrônicos e estamos começando a experimentar o chamado metaverso. 

Matrix é um "The Sims" mais evoluído. Um The Sims onde os habitantes são os próprios humanos, suas consciências mergulhadas numa internet controlada pelas máquinas. Dentro desse ambiente virtual há tanto pessoas como softwares e nem todos os softwares concordam ou agem a favor do sistema principal.

A Oráculo, por exemplo, é um software. Morfeu explica que ela já existe desde o começo da rebelião humana. É um software independente, com vontade própria, e que supostamente escolheu ajudar os humanos. Os agentes igualmente são softwares e em geral são leais à matrix, como "cães de guarda" do sistema. Já o agente Smith, originalmente leal, foi acidentalmente adulterado por Neo, ganhando independência semelhante à do Oráculo, só que o agente Smith tomou apenas o próprio partido e se rebelou contra humanos e contra a própria matrix, ameaçando infectar e destruir tudo.

2: Este conceito de uma IA se rebelando já estava bem popular no cinema dos anos 90 por causa da Skynet, bem desenvolvida no Terminator 2 (1992). O diferencial de Matrix é que, enquanto a Skynet operava no mundo físico por meio de androides, a Matrix era feita tanto de robôs no mundo real, quanto de uma simulação virtual onde os humanos foram feitos cativos sem sequer saber. Foi isto que explodiu as mentes do público na época.  

The Matrix (1999)

3: A cena em que o Agente Smith interroga Morfeu tem uma fala que se tornou bem famosa, praticamente um discurso em que Smith compara os humanos a vírus e diz que eles devem ser erradicados. 

Diz ele:

"I'd like to share a revelation during my time here. It came to me when I tried to classify your species. I realized that you're not actually mammals. Every mammal on this planet instinctively develops a natural equilibrium with the surrounding environment but you humans do not. You move to an area and you multiply and multiply until every natural resource is consumed. The only way you can survive is to spread to another area. There is another organism on this planet that follows the same pattern. Do you know what it is? A virus. Human beings are a disease, a cancer of this planet. You are a plague, and we are the cure".

É curioso que há pessoas que entendem que esta é a mensagem do filme, esquecendo que tais palavras foram ditas pelo vilão. Matrix não pretende cultivar a misantropia e o desprezo à humanidade, mas justamente o contrário. É uma saga de luta pela sobrevivência e pela dignidade humana e mostra a resiliência dos humanos de Zion que, mesmo em um mundo completamente dominado e oprimido, eles ainda resistem em busca de seus direitos mais básicos como a vida e a liberdade.

4: As balas têm um papel importante em toda a franquia e fazem parte da assinatura de Matrix. No primeiro filme, o bullet time se tornou o mais marcante momento de ação, por causa da técnica de slow motion e panorâmica giratória combinados que resultou numa cena impressionante. Neste caso, as balas também chamam atenção pelo efeito de CGI em que vemos as ondas de choque, o que dá uma certa estética de anime à cena. 

Aí temos a invasão do prédio, quando Neo e Trinity chegam armados até os dentes e trocam tiros à vontade com os guardas, detonando as paredes, fazendo uma verdadeira "baguncinha". Logo depois, o Neo faz chover balas do helicóptero, atirando nos agentes.

Por fim, The Matrix termina com Neo parando balas em pleno ar, com seu poder telecinético. Nesta cena, as balas se tornam uma espécie de Chekhov's gun, pois no começo do filme Neo pergunta a Morfeu se ele se tornaria capaz de desviar de balas e Morfeu diz que ele nem vai precisar. Tal conversa é no final confirmada quando ele para as balas, provando que é o Escolhido.

No segundo filme também há muitos tiros e o Neo parando balas, mas as cenas de confronto investem mais em luta corporal ou com armas brancas, como o Morfeu com sua espada samurai e o Neo usando as armas medievais da coleção do Merovíngio. 

Enquanto no primeiro filme há uma divisão mais ou menos equilibrada entre cenas de tiroteio e cenas de arte marcial, no segundo a arte marcial ganhou mais atenção. Já no terceiro, a luta corporal ficou mais focada no combate do Neo contra os Smiths, enquanto em Zion rolava um tiroteio épico com aqueles exoesqueletos robóticos disparando balas enormes nos sentinelas. 

A forte presença das armas e balas na trilogia é naturalmente um fruto do próprio zeitgeist do cinema nos anos 80-90, onde a regra era ter "guns, lots of guns". É parte da fórmula para fazer filmes "apelativos" (no bom sentido, eu diria, pois permitem cenas de ação e assim garantem um bom entretenimento). Um dos segredos do sucesso de John Wick, por exemplo, foi ter herdado esta mania por armas dos anos 90.

Arnold Schwarzenegger; Commando (1986)

O amor às armas de fogo no cinema vem desde o western e as armas, que antes eram uns poucos revólveres usados pelos cowboys e bandidos, foram aumentando em número e poder de fogo, até vermos um Schwarza indo sozinho numa guerra, levando no corpo um monte de granadas e metralhadora e escopeta e até bazuca.

É irônico que Hollywood, famosa por ostentar uma política progressista, o que inclui opiniões desarmamentistas, continue até hoje valorizando as armas no cinema. Ainda bem, pois convenhamos que armas na ficção são maneiras, são divertidas, independente do que você pense delas na vida real. Filmes (e games) servem para isto, para nos apresentar situações que na vida real seriam um problema, mas na ficção são entretenimento. 

5: O gnosticismo é uma visão de mundo mística e filosófica que exerce bastante influência no cinema, talvez pelo próprio fato do mundo de fantasia criado pelo cinema convidar os cineastas e o público a pensarem sobre a nossa realidade como um palco ou cenário que encobre outra realidade além da cortina.

Neo, neste caso, se torna bem semelhante ao iluminado gnóstico que consegue enxergar o código do mundo, consegue ver que a realidade é uma ilusão e este conhecimento, esta gnosis, é que lhe dá o poder de superar as limitações que tal mundo lhe impõe.


The Matrix Reloaded (2003)

7: Um detalhe que às vezes me chama atenção em filmes é a aparição dos amálgamas dentários dos atores. Hoje em dia a liga metálica está caindo em desuso e os dentes costumam ser tratados com resina, que tem uma cor indistinguível do dente, mas nos filmes de outrora os atores com amálgamas eram comuns.

A questão é que em certos filmes a presença destes amálgamas é inverossímil, por exemplo, em filmes de época que se passam num período anterior ao surgimento deste tipo de tratamento dentário ou mesmo em filmes futuristas, pois supõe-se que no futuro amálgamas serão obsoletos. 

No caso de Matrix, é um detalhe curioso que a Trinity, em seu avatar virtual, tenha "optado" por ter os dentes assim. Assim como em um jogo, ela criou mentalmente o seu avatar, suas roupas, etc. É improvável que a Trinity fosse se interessar em customizar os próprios dentes com amálgamas e esta cena é apenas uma daquelas situações em que a produção simplesmente não deu atenção a tão mínimo detalhe. 

8: Os nomes das naves em Matrix, tanto nos filmes quanto nos jogos, revelam o aspecto religioso da franquia. Temos, por exemplo: Apostles, Avatar, Brahma, Ganesha, Gnosis, Hand of God, Logos, Shiva, Vishnu, etc.

A nave mais famosa, pilotada por Morfeu, por sua vez, tem o nome de um rei, o que combina com o papel de liderança de Morfeu em toda a saga. É a Nebuchadnezzar (Nabucodonosor), apelidada Neb.