Qaligrafia
Séries, livros, games, filmes e eteceteras 🧙‍♂️

O Thousand yard stare

Thousand yard stare

Há um ano escrevi aqui sobre o Kubrick stare¹, um jeito de olhar típico de psicopatas que ficou consagrado nos personagens de Stanley Kubrick. Eis que agora trago outro olhar peculiar, o Thousand-yard stare, o "olhar de mil jardas".

Esta expressão começou a ser usada para descrever a maneira como soldados sobreviventes de guerras apresentam uma expressão facial e um jeito de olhar apáticos, catatônicos, um olhar perdido e fixo, como que vendo através das pessoas.

Este termo hoje em dia já não se limita a pessoas com traumas de guerra, pois o olhar de mil jardas pode ser percebido em quem teve outras experiências traumáticas, estressantes ou desgastantes na vida, como a depressão, cansaço existencial, traumas de infância, até mesmo um acúmulo de decepções amorosas ou uma vida de hedonismo mal administrada que termina levando ao sentimento de tédio com a vida, de desinteresse. 

Há várias nuances neste olhar, pois ele pode transmitir um sentimento de medo, susto, desespero, esgotamento, desilusão, até mesmo de desprezo.

Quando nada mais importa, isto se reflete no olhar.

Thousand yard stare

Notas:

Habemus Superman e Lois

David Corenswet

Rachel Brosnahan

Aos poucos o DCU está renascendo, recomeçando. A primeira grande notícia a respeito foi o aúncio do James Gunn como o líder do novo DCU, depois veio o importante anúncio do filme do Superman em 2025. Hoje tivemos o terceiro grande anúncio que vai pavimentando este novo universo e alimentando a hype dos fãs: o ator foi escolhido.

Mais ainda, foi escolhida a dupla que interpretará Clark Kent e Lois Lane: David Corenswet e Rachel Brosnahan. A reação da galera na internet tem sido positiva. São dois atores queridos, que não se metem em polêmicas, bem diferente de um Ezra Miller da vida.

É o que a DC está precisando agora, um recomeço pacífico, com atores que tragam este ar de renovação. É curiosa a semelhança física entre o David Corenswet e o Henry Cavill, o que pode ajudar na aceitação do novo Superman que será uma versão mais jovem da versão do Henry Cavill.

Vida longa ao novo DCU!

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Netflix acerta a fórmula da ação em Resgate 2

Resgate 2 (2023)

A Netflix aos pouquinhos tem experimentado produzir filmes de ação e no começo fez um material bem fraquinho, como o insosso The Old Guard (2020)¹ e Resgate (Extraction; 2020)² que, apesar de ter a mão dos talentosos irmãos Russo, foi um filme de ação bem genérico.

Por isto agora assisti Resgate 2 (2023) sem muita expectativa, o que contribuiu para minha surpresa, pois trata-se de um filmaço, um verdadeiro show de ação. As cenas de tiro e pancadaria são caprichadíssimas, envolvendo longos planos sequência, com a câmera se movendo pela cena de uma forma muito dinâmica e imersiva. É preciso muita técnica, planejamento e coordenação para gravar cenas assim.


A cena do trem é uma obra-prima. Tem a imersão de um jogo FPS em que você troca tiros, se envolve em luta corporal, logo depois já está abatendo um helicóptero com uma minigun e vai avançando pelos vagões. E tudo isto envolve um trabalho bem planejado de direção, coreografia, atores, efeitos especiais e um ótimo trabalho de câmera. A câmera passeia pelo trem, saindo, voltando, acompanhando os personagens, entrando em um vagão apertado para acompanhar uma luta bem de perto. Imersão pura e que requer muita técnica de filmagem.

Chris Hemsworth; Extraction 2 (2023)

Chris Hemsworth; Extraction 2 (2023)

Se no primeiro filme o personagem do Chris Hemsworth, Tyler, não me impressionou, agora no segundo ele finalmente se tornou um herói marcante e que não se resume a ser um aprendiz de John Wick, pois o estilo dele é outro. John Wick é um vingador e um guerreiro solitário, enquanto Tyler é um protetor e sua motivação ao longo de toda a trama é sempre proteger e se sacrificar pelos outros como um bom herói. 

Extraction 2 (2023)

Além disso ele trabalha muito bem em equipe, uma equipe pequena, seleta e que não está ali só para ser uma coadjuvante da ação. Nós passamos a simpatizar com os colegas dele, especialmente os irmãos Nik e Yaz Khan. 

O roteiro consegue intercalar momentos de ação e algum drama, mas de longe é a ação que faz o filme valer a pena, pois traz de volta aquela sensação de ver um bom e velho filme dos anos 90 com helicópteros, metralhadoras, tiroteio em um trem em movimento, etc.

Longa vida ao gênero de ação.

Notas:



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Strange New Worlds, o Star Trek primordial

Star Trek: Strange New Worlds (2022-)

Capitão Pike foi nada menos que o primeiro protagonista de Star Trek. Ele apareceu no famoso episódio zero da série clássica, intitulado The Cage, um episódio piloto que foi rejeitado pela NBC. Outro piloto foi produzido, chamado Where No Man Has Gone Before, agora com o Capitão Kirk, e o resto é história.

The Cage me chamou atenção por causa de uma enigmática expressão feita pela personagem Vina, o que cheguei a comentar em um post¹.

Jeffrey Hunter
Antes do William Shatner havia o Jeffrey Hunter.

Pike foi interpretado por Jeffrey Hunter que, convenhamos, era bem mais bonito que o William Shatner. Apesar da rejeição inicial do episódio zero, Pike acabou se tornando canônico quando ele retorna em outro episódio, The Menagerie, onde acontece um dos eventos mais dramáticos de toda a história da franquia: Pike sofreu graves ferimentos, a ponto de ficar inválido, mesmo com toda a avançada tecnologia futurista. Confinado em uma cadeira de rodas e se comunicando debilmente, ele é levado para o planeta Talos IV para uma aposentadoria digna, vivendo em uma realidade psíquica onde pode ter um final feliz.

Décadas se passaram, Kirk se tornou o grande símbolo de Star Trek (depois de Spock, claro) e Pike foi relativamente esquecido, até que ele retornou em 2009 no filme Star Trek, bem como na sequência Star Trek Into Darkness (2013), sendo que estes filmes se passam em uma realidade alternativa criada por J. J. Abrams, a chamada Kelvin Timeline. Nesta realidade, Pike não teve o martírio da sua versão original.

Captain Pike; Star Trek and Star Trek Discovery
Pobre Pike...

Então veio a série Star Trek Discovery (2017-)² que nos trouxe um grande fan service, apresentando o Pike em cadeira de rodas, agora interpretado pelo Anson Mount. Mount tem uma aparência e atuação que lembram o tipo de charme do Pike original e de fato ele caiu como uma luva no papel. A princípio ele foi apenas um fan service em Discovery, mas acabou ganhando sua própria série, Strange New Worlds (2022-).

Strange New Worlds, portanto, é a grande prequela de toda a franquia Star Trek, mostrando as aventuras do primeiro capitão, o antecessor de Kirk. É um retorno ao clássico e de fato a série se dedica a homenagear os velhos tempos. A série não assume o tom de galhofa que era relativamente presente em Star Trek, mas usa a mesma fórmula episódica em que a cada episódio a tripulação vai encontrando novas espécies alienígenas e resolvendo algum problema diplomático, travando batalhas que misturam estratégia, tecnologia e os protocolos burocráticos da Federação.

Além de Pike, temos um jovem Spock e uma jovem Uhura em início de carreira, bem como outros personagens que foram antecessores da tripulação que acompanharia Kirk, como a enfermeira Christine Chapel e o Dr. M'Benga, precursores do Dr. McCoy. Lembrando que M'Benga e Christine Chapel também são personagens clássicos e tiveram uma breve aparição na série dos anos 60.

Sim, é isso mesmo, Star Trek tem um personagem chamado Benga! Mais um para a galeria de nomes na ficção que muito agradam a quinta série brasileira, junto com Viado Denan, Travecao Govan, Sifo-Dyas, Capitão Panaka, etc³. 

Brincadeiras à parte, um bom exemplo de como Strange New Worlds se dedica a homenagear a série original está na cena em que Spock sonha com uma luta tradicional vulcana, a kal-if-fee. Esta luta apareceu pela primeira vez no episódio Amok Time, em 1967. 


Notas:




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Quem é quem no elenco de 3 Body Problem

3 Body Problem cast

O que temos até agora sobre a adaptação da Netflix para 3 Body Problem¹ é um trailer e as informações oficiais no IMDb. No IMDb inclusive já é revelado o papel que cada ator vai pegar.

É natural que os livros e o live action da Tencent sejam ambientados na China e tenham a maioria dos personagens chineses, afinal é a obra de um autor chinês. Quanto à adaptação da Netflix, é de se esperar que seja mais internacional nos cenários e elenco, o que resultará em uma série de modificações nos personagens originais. Não vejo problema nisso, aliás acho que até contribui para expressar melhor a grandeza da obra que trata de uma crise de nível global.

Saamer Usmani

Ao que parece, o protagonista na primeira temporada se chamará Raj Varma, interpretado pelo ator paquistanês Saamer Usmani. Ele deverá substituir Wang Miao, uma curiosa mudança, já que Wang Miao tinha um estereótipo de cientista nerd, magrinho, introvertido, de óculos, enquanto o ator paquistanês é bonitão, atlético. Vai ser um cientista modernão e sexy.

Em contraste com ele, teremos o policial Da Shi interpretado pelo Benedict Wong, que certamente terá um aspecto cômico bem mais forte que do Da Shi original, pois este tem sido o typecast do Benedict Wong. Isto é ótimo, na verdade, pois Da Shi é o tipo de personagem que todos vão gostar e admirar.

Na lista do IMDb, a segunda pessoa apresentada se chama Jin Cheng, interpretada por Jess Hong. Creio que ela deverá ser a Cheng Xin, que será a protagonista na parte três da história.

A Ye Wenjie, personagem mais importante do primeiro livro, vai permanecer chinesa, interpretada pela Zine Tseng na juventude e pela Rosalind Chao na velhice. 

Outro personagem que permanece relativamente intacto é o Mike Evans, que será interpretado por Ben Schnetzer e Jonathan Pryce. 

Também temos o Thomas Wade, que será bem interessante na pele do ator Liam Cunningham, pois nos livros Wade é um cara durão e ameaçador, do tipo que não mede esforços para conseguir os seus fins. 

John Bradley the wallfacer; 3 Body Problem (2024-)
Pode anotar: ele será o wallfacer.

Desta forma, a série deve começar protagonizada pelo Raj Varma, tendo a Ye Wenjie e Mike Evans como antagonistas. Na segunda parte virá o Projeto Wallfacer, só que não há nenhuma menção a Luo Ji no IMDb e aí entra minha suspeita: no lugar de Luo Ji, entrará o Jack Rooney, o que faz muito sentido uma vez que ele é interpretado pelo John Bradley.

Vemos muito isto em Hollywood, o typecast. Certos atores costumam se encaixar em determinado tipo de personagem. Em Game of Thrones, o John Bradley fez um cara tímido, introvertido, inteligente e imaginativo, alguém que ninguém dava nada por ele e que ninguém confiaria como um estrategista, no entanto, foi ele quem descobriu a grande fraqueza dos monstros. Esta caracterização combina bastante com Luo Ji, o mais subestimado dos wallfacers. 

Enfim, na terceira parte da série, a história vai escalar para um nível épico e a protagonista será a Cheng Xin, adaptada como Jin Cheng.

No trailer vimos uma mulher com uma katana e a atriz Sea Shimooka até o momento aparece no IMDb sem o nome de personagem. Estão tentando guardar o segredo, porém é bem óbvio que ela será Sophon, a única personagem em toda a trilogia que chegou a empunhar uma katana.

Parece que vão dar um corpo à Sophon já no começo da história, talvez um corpo virtual a princípio, de modo que ela deve aparecer misteriosamente ao longo da história, até ser revelada a sua origem e como os trisolarianos a construíram.

Sea Shimooka as Sophon; 3 Body Problem (2024-)

Notas:


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Algumas reflexões sobre sci-fi e fantasia

Sci-fi vs fantasy

A fantasia e o sci-fi têm aspectos diferentes em termos de tema, ambientação, até mesmo de localização no tempo, pois geralmente a fantasia se passa no passado, enquanto o sci-fi acontece num futuro próximo ou distante. Tanto é que, quando um sci-fi se desvia do futuro, acaba virando um subgênero específico como o steampunk, que acontece geralmente por volta do século XIX. Enfim, as exceções confirmam a regra.

Há outro aspecto que me chama atenção. Parece-me que a fantasia tende a transmitir uma mensagem mais individual, mais voltada à vida pessoal do leitor/espectador. A história costuma focar bastante no protagonista, um Frodo, um Harry Potter, e ele empreende a jornada do herói que, no fim das contas, é uma lição e uma inspiração para o leitor. A fantasia motiva a acreditar em si mesmo e na magia da vida.

Já o sci-fi, segundo minha impressão, tem uma mensagem mais voltada à civilização humana. Pode haver personagens interessantes e que virem o centro da história, como um Spock ou um Kirk, mas o grande protagonista é a própria civilização, seus desafios, sua ascensão ou decadência. 

O sci-fi cyberpunk é um alerta à civilização humana, uma profecia (lembrando que os profetas bíblicos eram antes de tudo alarmistas do que adivinhos - eles alertavam "se vocês continuarem vivendo assim, no futuro a sociedade estará assim"), advertindo quanto aos riscos da decadência social, gerando um contraste entre avanço tecnológico e retrocesso humano.

O sci-fi espacial é uma inspiração para a busca pelo progresso, para que superemos os limites da vida planetária, nos tornando interplanetários, até mesmo interestelares. Quantos astronautas, engenheiros e cientistas em geral não foram inspirados na infância pelo sci-fi?

Star Wars é um caso peculiar de mescla entre sci-fi e fantasia. A história daquele universo tem muito do aspecto civilizacional, mostrando suas crises políticas. Ao mesmo tempo, a jornada heroica dos protagonistas segue um rumo bem próximo da fantasia, pois os próprios jedi são personagens que parecem mais mágicos do que tecnológicos.

Um bom exemplo de sci-fi focado em civilização é a grande obra Fundação, de Asimov. Nela, os personagens são apenas figurantes e é o rumo da civilização humana ao longo de milênios que importa. O mesmo ocorre com a trilogia Three-Body Problem, de Cixin Liu. A despeito de ter grandes protagonistas, no fim das contas o principal protagonista é a humanidade, rumando em uma jornada épica através do tempo e do espaço até o fim do universo.

3 Body Problem será a maior série sci-fi de 2024

3 Body Problem (2024-)

A Netflix lançou um trailer de 3 Body Problem e eu não poderia estar mais empolgado. A trilogia de Cixin Liu é formidável e dediquei a ela uma resenha gigantesca¹. Assisti com gosto a série chinesa, mesmo ela não tendo um nível de produção e CGI digno da grandeza dos livros. Eis que agora esta grandeza pode ser alcançada na série da Netflix.

A Netflix tem altos e baixos em suas adaptações. A série The Witcher², por exemplo, estava indo bem. Já a adaptação de Sandman³ foi bem fraquinha. O que nos dá esperança que 3 Body Problem será grandiosa é o fato de estar nas mãos de David Benioff e D. B. Weiss, os showrunners de Game of Thrones. 

3 Body Problem (2024-)

Estão previstos 8 episódios e pelas pistas que há no trailer dá pra suspeitar que esta temporada vai abranger todo o primeiro livro e na certa deve ter episódios de no mínimo uma hora. Creio que a segunda temporada também pode cobrir o segundo livro inteiro, mas se eles quiserem podem estender para duas temporadas, uma envolvendo o início da Crisis Era, criando um cliffhanger no final com o Luo Ji entrando em hibernação. Aí a terceira temporada começaria no futuro, com Luo Ji despertando.

Já o terceiro livro tem material para mais temporadas e aí eles podem se alongar à vontade, ainda mais se a série se tornar popular.

Minha torcida, obviamente, é que esta série vire o grande hit de 2024, pois ela é tão interessante em sua premissa e desenvolvimento que pode dar muito o que falar. Em termos de sci-fi, provavelmente não terá concorrente à altura.

Preparem seus V-Suits.

3 Body Problem (2024-)

Notas:




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Gotham Knights não vale uma resenha

Gotham Knights (2023)

É, eu tentei assistir esta série, mas não dá. Não tenho muito o que dizer a respeito. Até a próxima, pessoal.

Three-Body Problem, um hard sci-fi que o mundo precisa conhecer

Three-Body Problem (2023-)

Esta é uma resenha longa, mastigando e digerindo a obra épica de Cixin Liu. Logo, é de se esperar que haja alguns spoilers, mas calma, não "priemos cânico". Nos trechos onde houver informações demasiado sensíveis para a narrativa, deixarei o texto num formato endentado como uma citação (as citações do livro de Cixin Liu, por sua vez, vêm igualmente endentadas, mas em itálico e em inglês, que é a tradução na qual me baseei).

Por exemplo, assim será um parágrafo com spoiler.

"Assim será um parágrafo com trecho do livro do Cixin Liu". 


Começaremos obviamente analisando o primeiro livro e a sua adaptação na série chinesa da Tencent, lançada no canal da We TV no Youtube em 2023. Ao final desta primeira parte vamos tecer algumas notas sobre a adaptação feita pela Netflix em 2024. Depois partiremos para o segundo e terceiro livros (ambos não têm ainda uma adaptação live action). 

Introdução

Three-Body Problem; Cixin Liu

Three-Body trilogy; Cixin Liu

Cixin Liu¹ é o mais produtivo autor de ficção científica da China e certamente um dos mais importantes da atualidade. Ele produz um sci-fi de alto nível, embasado em conhecimentos acadêmicos e não em mumbo jumbo de jargões cientolóides.

Apesar de ter o pé no chão da ciência de ponta, ele não limita a imaginação e tem ideias ousadas, como no conto The Wandering Earth², onde um esforço épico da engenharia humana resulta na construção de gigantescos propulsores na superfície da Terra, transformando o planeta inteiro em um foguete rumando para fora do sistema solar, fugindo da explosão do Sol. Em 2019 foi feita uma divertida adaptação deste conto para o cinema.

Sua obra máxima é a chamada "trilogia dos três corpos", que inicia no livro The Three-Body Problem. Eis que em Janeiro de 2023 foi lançada uma série live action baseada no livro, produzida pelo canal de streaming Tencent Video, braço da big tech Tencent.

PRIMEIRO LIVRO: THE THREE-BODY PROBLEM

A crise da ciência

A  série começa como uma história de investigação policial, pois vários cientistas de ponta têm inexplicavelmente cometido suicídio. Yang Dong, uma brilhante cientista, fica abismada com os resultados de um experimento no acelerador de partículas. Ela chega à bizarra conclusão de que "a física não existe mais". Aparentemente, tal descoberta a leva ao suicídio.

"All the evidence points to a single conclusion: Physics has never existed, and will never exist. I know what I’m doing is irresponsible. But I have no choice."

E assim começa este thriller de mistério e sci-fi, bem ao estilo da série alemã Dark (2017-2020)³, porém muito melhor que Dark. A premissa em si já é bem intrigante. Como assim "a física não existe"? Que tipo de evento cósmico poderia destruir as próprias leis fundamentais do universo? É, meus caros, temos aí o genuíno terror cósmico.

O pesquisador de nanotecnologia Wang Miao acaba se envolvendo nessa investigação. Ele é recrutado pelo governo para se infiltrar numa organização de físicos teóricos de ponta, a Frontiers of Science, a fim de investigar o que de tão assustador aqueles cientistas descobriram que os estava levando ao suicídio.

Wang Miao era fotógrafo amador e havia tirado uma foto da Yang Dong. Agora ele comparece ao funeral da moça e pretende entregar a foto à mãe dela como recordação, mas percebe que existem uns números no meio da foto. Como isso era possível, uma vez que ele tirava fotos com uma máquina analógica? Se fosse digital, poderia ser um bug, mas a câmera analógica simplesmente capta a luz e grava em uma fita negativa. Não há nenhum software interno que poderia ter gravado aqueles números.

Ele, como um bom cientista, resolve fazer experimentos, tirando mais e mais fotos, inclusive com outras câmeras, e os números não param de aparecer. Obcecado por este fenômeno, ele passa a estudar os números e percebe um padrão. Trata-se de uma contagem regressiva de 49 dias. 

Logo os números vão além das fotos e ele mesmo começa a enxergá-los a olho nu. Aconselhado pela esposa, ele não descarta a possibilidade de estar com um problema ocular ou psicológico, mas uma vez que faz exames e nada é descoberto, ele procura Shen Yufei, que ele conheceu na Frontiers of Science.

Shen parece saber algo sobre tudo isto que está acontecendo, mas ela apenas dá dicas enigmáticas. Primeiro ela diz para ele desligar as máquinas do seu laboratório de nanotecnologia. Curiosamente, quando ele faz isto os números desaparecem de sua vista. Então ela passa para ele um manual de código morse e diz para ele observar a contagem regressiva na própria radiação cósmica de fundo, que aparecerá assim que ele religar as máquinas.

O objetivo de Yufei ao ser tão enigmática era evitar que Wang Miao descobrisse a verdade de uma maneira muito brusca, o que poderia levá-lo ao suicídio. Então ela diz que, assim que ele observar a radiação cósmica, "o universo piscará para você". Mais uma dica enigmática.

“Three days from now—that’s the fourteenth—between one and five in the morning, the entire universe will flicker for you.”

No livro esta conversa dos dois é obviamente melhor elaborada e também fica claro que o objetivo de Yufei é oferecer a Wang uma prova incontestável de que a contagem regressiva não é um truque. Um truque poderia ser feito com algum tipo de hack, algum instrumento capaz de projetar a imagem no cérebro de Wang ou mesmo no céu por meio de hologramas. Uma tecnologia mais avançada poderia fazer uma projeção dos números até na Lua ou no Sol. Mas e se todo o universo projetasse os números?

Chegamos aqui ao episódio 5, quando as coisas começam a esquentar e a série se mostra um empolgante sci-fi raiz. Wang Miao visita uma estação dedicada a coletar a radiação cósmica de fundo, afirmando estar em busca de um fenômeno peculiar, uma variação no sinal. O cientista local percebe que Wang não entende muito desta área e explica que os dados recebidos são muito constantes e que o normal é que o gráfico de monitoramento mostre uma monótona linha por anos e anos. Uma variação neste gráfico seria absurdamente improvável.

Mesmo assim, Wang insiste e senta diante da tela observando atento o gráfico, uma linha que nunca muda de status. Eis que na hora exata em que ele programou o desligamento das máquinas, a hora em que supostamente o universo "piscaria", o gráfico muda radicalmente e passa a mostrar uma série de altos e baixos. 


Essa cena é um verdadeiro sci-fi nerd, pois ela consegue desenvolver um momento de tensão e revelação com base não na aparição de um monstro ou de naves espaciais, mas na informação mostrada em um simples gráfico na tela do computador. A reação dos dois cientistas é adequada ao momento, de total surpresa e desespero, pois estão diante de um dado absurdamente improvável. 


Um parêntese. É inegável que Cixin Liu inspirou-se bastante na obra Contato, de Carl Sagan, bem como no filme homônimo de 1997. Esta cena do frenesi dos cientistas diante de um computador, monitorando dados de um radar espacial lembra bastante uma cena do filme Contato em que a cientista interpretada pela Jodie Foster e os seus colegas do SETI ficam numa correria ajustando os radares a fim de captar o sinal alienígena. 

O cara da estação, ainda mantendo o espírito de cientista, liga para outra estação a fim de consultar os dados de lá, pois isto eliminaria a hipótese de que há algum defeito local ou mesmo um hack. Wang analisa o gráfico e percebe que as flutuações na linha podem ser traduzidas em código morse (ok, esta coisa de um mistério ser revelado em morse é um grande clichê da ficção, mas tudo bem) e ele confirma mais uma vez que trata-se de uma contagem regressiva. Não era um problema nos seus olhos, nem na sua câmera ou na sua mente. O próprio universo estava sinalizando a contagem regressiva por meio da onipresente radiação cósmica de fundo!

Para ter certeza absoluta de que aquele fenômeno era real, o cientista da estação falou que havia um tipo especial de óculos, os óculos 3k, que conseguia enxergar o comprimento de onda da radiação cósmica. Wang sai correndo em busca destes óculos high-tech e, ao usá-los, se depara com a numeração piscando no céu, emitida pelo universo. Ele cai no chão apavorado.

Este início da história, com todo esse negócio de universo piscando e números aparecendo no céu realmente é bem intrigante pelo próprio fato de parecer ser de fato um fenômeno cósmico. Só que não é. Depois é revelado que tudo foi um truque produzido pelos sophons (que explicarei mais adiante), o que tira um pouco o encanto do acontecimento. No fim das contas era mesmo um hack, só que um hack feito com tecnologia avançadíssima.

No episódio 6 há uma interessante mudança no tom da série. Desde o início, vinha se desenvolvendo uma dinâmica entre Wang Miao e o detetive Shi Qiang. Era uma espécie de alívio cômico. Qiang é um homem rude, que pouco entende de ciência e debocha do jeito introvertido de Wang, mas ele demonstra uma simpatia pelo cientista e vive na sua cola, em parte porque está investigando todo o estranho caso dos suicídios, mas também porque parece se preocupar com Wang.

Ao longo da história, veremos que Shi Qiang é na verdade o personagem mais astuto de todos e que em momentos chave surpreende com sua intuição e capacidade de raciocinar diante de um problema, mesmo raciocinando de uma maneira nada erudita.

Qiang encontra Wang arrasado após o surreal evento da radiação cósmica e ele se mostra bastante amistoso, chama o cientista para almoçar, tenta levantar seu ânimo. O contraste entre os dois é como Spock e Kirk. 

Three-Body (2023-)
Nasce um bromance.

O cientista é introvertido, filosófico, ocupa demais a mente pensando no sentido das coisas e do próprio universo, o que o deixa deprimido depois da revelação de que o mundo parece estar fadado ao colapso. O policial, por outro lado, é pé no chão, ocupado com os problemas do dia a dia, não se importa em olhar as estrelas ou pensar sobre a vida. E este seu jeito pragmático faz com que ele viva imune à depressão existencial que afeta as mentes filosóficas.

Assim se desenvolve um verdadeiro bromance entre os dois e esta influência e amizade de Qiang tem o poder de levantar o ânimo de Wang. Wang se dá conta que a vida deve seguir, que ele tem esposa e filha (no livro é um filho), tem uma carreira, uma pesquisa importante em nanotecnologia. Assim, ele resolve retomar a vida, mesmo que a contagem regressiva continue aparecendo diante de seus olhos.

Three-Body (2023-)

A forma como a série vem desenvolvendo o lado humano dos personagens é bem caprichada. Em uma cena, por exemplo, Qiang olha os contatos do celular e nele estava salvo o apelido que ele deu ao cientista, "Nano Covarde". Esta foi a primeira impressão que ele teve. Então ele apaga o apelido e substitui pelo nome real, Wang Miao.

Esta pequena cena tem um forte significado, pois mostra como Qiang mudou de atitude e de sentimentos em relação a Wang, desenvolvendo afeto e respeito por ele, o que se nota na correção do apelido pejorativo pelo nome real em sua agenda de contatos. São detalhezinhos assim que fazem uma boa construção de personagens.

Outra personagem pitoresca é a assistente do policial, Xu Bingbing. Ela se mostra extremamente focada e eficiente, muito rápida em tudo o que faz, tem modos robóticos e uma capacidade enorme de aprendizado. Mesmo não sendo cientista, ela facilmente se engaja em uma questão científica se isto for necessário para sua investigação. Ela pesquisa, lê livros, aprende mais rápido que todos. Qiang diz que ela vale por 10 pessoas.

O simulador de civilização alienígena

Pois bem, a trama avança para a parte mais importante quando Wang Miao tem acesso a um misterioso jogo de realidade virtual que os cientistas da Frontiers of Science estão explorando. De alguma forma, este jogo parece ser uma espécie de teste e é possível que, ao resolver seu enigma, Wang Miao consiga acesso ao círculo interno da Frontiers.

Ele descobre o jogo quando visita a casa de Shen Yufei. Wang a considera uma mulher muito fria e robótica, comparando-a a um sistema DOS, com sua tela minimalista e respostas diretas a inputs. Todavia, ele fica surpreso em vê-la jogando com um V-Suit ao lado do marido em um quarto.

O V-Suit é um equipamento de realidade virtual (Cixin Liu imaginou isto lá em 2008 e estamos cada vez mais perto de ter esta tecnologia concretizada) que, além dos óculos de VR, também tem luvas  e outras peças para o corpo com dispositivos hápticos (permitindo ao corpo ter sensações tácteis e até de temperatura) e uma esteira sob os pés.

"The V-suit was a very popular piece of equipment among gamers, made up of a panoramic viewing helmet and a haptic feedback suit. The suit allowed the player to experience the sensations of the game: being struck by a fist, being stabbed by a knife, being burned by flames, and so on. It was also capable of generating feelings of extreme heat and cold, even simulating the sensation of being exposed in a snowstorm."

Wang fica surpreso que uma mulher séria e focada no trabalho como Yufei se dê ao luxo de ter um V-Suit e brincar na realidade virtual. Ele consegue espiar no monitor o endereço do site do jogo: www.3body.net. 

Na série, Wang menciona o jogo para Qiang que então consegue com os militares dois V-Suits. Ambos entram no jogo e começam a explorar. No livro, porém, Wang simplesmente foi até seu laboratório de nanotecnologia onde havia um V-Suit, provavelmente usado pelos funcionários em momentos de folga. Ele entra sozinho no jogo. A série resolveu inserir Shi Qiang nesta experiência na certa para explorar o bromance dos dois.

Wang se cadastrou no jogo e criou o username Hairen, que, segundo uma nota do tradutor do livro, é um trocadilho com seu nome, pois Hairen significa "Homem do Mar", enquanto Wang Miao pode ser pronunciado de forma a significar "mar".

O jogo consiste em um mundo alienígena onde o sol tem um comportamento extremamente errático, o que afeta as condições de sobrevivência e os rumos da civilização. Em um momento, o sol fica muito próximo e incendeia o planeta, provoca terremotos, evaporação da água. Em outro momento, ele se afasta demais, trazendo uma cruel era do gelo onde até a atmosfera é congelada. 

Ocasionalmente há períodos em que as condições são perfeitas para a vida florescer. Esta variação de condições é chamada de Era Caótica e Era Estável. Em um mundo assim, é impossível uma civilização se manter por muito tempo, de modo que às vezes floresce numa Era Estável (que pode durar décadas, séculos ou apenas alguns anos) e às vezes é totalmente aniquilada.

Inúmeras civilizações nascem e morrem ao longo desta conturbada história, mas um resquício das conquistas de cada civilização permanece para a próxima, de modo que aos poucos vão alcançando novos progressos. É como um jogo de civilização roguelike que você tem que jogar do zero cada vez que morre, mas a cada recomeço você desbloqueou alguns progressos.

As pessoas neste mundo têm uma estrutura fisiológica fundamental para adaptarem-se a tão bizarras condições. É possível desidratar o próprio corpo, entrando em um estado de dormência na forma de uma massa informe. É como um tardígrado, um ser extremófilo que pode se desidratar e reidratar dependendo das condições ambientais.

Quando começa uma Era Caótica, as pessoas se desidratam, adormecendo até que retorne uma fase favorável, então renascem e a civilização recomeça de novo e de novo.

No início, o grande enigma do jogo é este comportamento errático do sol e das condições do planeta. Creio que não é nenhuma surpresa para quem atualmente está lendo o livro ou vendo a série que os três corpos de que trata a história são três estrelas. No jogo que Wang explora, porém, esta informação não é evidente a princípio.

A primeira missão do jogo é justamente entender por que o sol tem um comportamento tão errático. Uma superstição naquele mundo diz que, quando aparecem duas estrelas cadentes no céu, é presságio de uma Era Estável. Por outro lado, se aparecem três estrelas cadentes, virá uma Era Caótica. 

Este fenômeno será a chave para a compreensão daquele mundo. As tais estrelas cadentes na verdade são os três sóis. Se aparecem apenas duas, significa que elas estão bem distantes do planeta, de modo que não podem prejudicá-lo e ele pode usufruir de um momento de estabilidade com apenas um sol. Se aparecem três estrelas, então é um momento em que o planeta está numa bizarra e alongada órbita, tão distante dos três sóis que entra em uma cruel era do gelo, quando até a atmosfera é congelada e toda a vida se torna impossível.


Este é o problema dos três corpos. É relativamente fácil estabelecer-se um movimento estável entre dois corpos de massa semelhante que exercem mútua atração gravitacional. Quando, porém, um terceiro corpo entra nesta fórmula, forma-se um caótico sistema em que as trajetórias estão constantemente mudando. Assim é um sistema com três sóis. 

Lembrando novamente de Contato, quando a protagonista Ellie viaja pelo buraco de minhoca, em certo momento ela se depara com um planeta habitado e que fica em um sistema com quatro estrelas. Estaria aí a inspiração de Cixin Liu para Trisolaris? No caso, Cixin Liu acaba oferecendo uma abordagem mais realista, levantando o problema que um planeta teria para desenvolver vida num sistema com mais de duas estrelas, pois a instabilidade climática seria terrível. Muitas histórias de ficção gostam de brincar com esta ideia de um planeta ter vários sóis em seu horizonte, ignorando o problema cósmico dos três (ou mais) corpos.

Three-Body Problem Model
Um exemplo de como as órbitas de três estrelas podem ser caóticas devido à mútua influência.

Nos episódios 15 e 16, desenvolve-se uma interessante civilização dentro do jogo, a Civilização 184, que conta com personalidades como Newton e John von Newmann. Curiosamente, Newton é apresentado como uma figura meio abobalhada e com trejeitos afeminados, o que deve soar para o público chinês, bem mais conservador que o ocidental médio, como uma chacota.

Por outro lado, Newmann é retratado com respeito e ele realiza um feito extraordinário, montando um computador literalmente humano, usando milhões de soldados para agirem em sincronia em uma espécie de código binário coreográfico. Apesar dele ter a ideia, a execução só é possível sob as ordens de um imperador chinês. 

Por meio do impressionante computador humano é possível prever um pouco da trajetória dos três sóis, mas não o bastante para ver o que viria a seguir: os sóis surgem perfeitamente alinhados em uma conjunção estelar ("sizígia", na terminologia astronômica). A gravidade somada destas estrelas faz com que a atmosfera e até os oceanos do planeta sejam sugados para o céu. A civilização é destruída mais uma vez.

No episódio 20, dentro do jogo virtual chegamos à civilização 192 que alcançou um avanço formidável e também desvendou a trágica história daquele mundo. A civilização fora destruída por um evento chamado Great Rip, quando as forças gravitacionais dos três sóis literalmente partiram o planeta ao meio, criando dois corpos de rocha derretida.

Com o tempo, estes corpos esfriaram, retomaram a forma esférica e agora o planeta tinha uma lua gigante, com um quarto do seu tamanho. De certa forma, lembra a história da própria Terra, com seu período hadeano e depois, segundo a teoria do Great Rip, teve a Lua formada de um pedaço do planeta. 

A vida voltou a florescer e, após 90 milhões de anos, a civilização 192 chegou a um estágio de desenvolvimento superior ao da Terra do século XXI, porém a solução do problema dos três corpos ainda parecia impossível.

Também descobriram que, em um passado remotíssimo, aquele sistema solar possuía 12 planetas, mas todos foram eventualmente devorados pelos sóis, cada vez que estas estrelas passavam por um ciclo de expansão de seu tamanho (o que é comparado a um processo de respiração estelar: ora seus gases se expandem, ora se contraem). Este parece então ser o destino inevitável do único planeta remanescente, Trisolaris. A previsão é que em cerca de 1 ou 2 milhões de anos haverá uma expansão solar que devorará Trisolaris. Realmente este sistema planetário não é um bom lugar para a vida e a civilização se desenvolverem.

A civilização 192 chega à inevitável conclusão: não adianta tentar resolver o problema dos três corpos. A opção mais viável é tentar avançar tecnologicamente para sair do planeta e buscar outro sistema solar mais adequado para se estabelecerem. Agora este passa a ser o objetivo do jogo.

Quer dizer que toda a busca para resolver o problema foi em vão? Bom, o objetivo do jogo sempre foi oferecer uma perspectiva de civilização do ponto de vista dos aliens, os trisolarianos. Vivendo a experiência tortuosa de sobrevivência naquele mundo de três sóis, os cientistas entenderiam porque os aliens resolveram deixar seu planeta natal e vir para a Terra.

Ye Wenjie e a busca por contato extraterrestre

Embora a série comece focada em Wang Miao, a personagem realmente importante na trama é Ye Wenjie, a mãe da jovem cientista que se matou. No livro de Cixin Liu, a história começa com ela, ou melhor, com o pai dela que é terrivelmente torturado e morto durante a revolução maoísta. A série corta esta parte, talvez por ser gráfica demais ou por motivos políticos. 

Como se não bastasse este grande trauma, Ye Wenjie ainda terá outras experiências que vão quebrar seu coração e sua esperança na humanidade. A revolução via com maus olhos os cientistas, considerando-os reacionários contaminados com a ideologia ocidental (o que é irônico, já que o próprio marxismo adotado pela revolução era uma ideologia ocidental). Durante a tomada de poder, cientistas foram torturados, mortos, reeducados com cruel lavagem cerebral ou realocados para trabalhos mais "proletários".

Ye foi encaminhada para trabalhar cortando lenha. Ali ela conheceu um repórter que a apresentou um livro marcante, Silent Spring. Este livro é um dos pioneiros do alarmismo ecológico e na época foi considerado uma peça de propaganda reacionária do Ocidente. O repórter era autorizado a possuir o livro, pois o estava traduzindo para o chinês a fim de ser analisado pelos censores do governo. Ele errou ao emprestar o livro para Ye.

Quando os oficiais descobrem, o repórter covardemente diz que Ye roubou o livro dele, assim ele salvou a própria pele. E olha que estava rolando um clima entre eles. Agora o gesto covarde do cara quebrou o coração já devastado da jovem Ye. Sem esperanças na vida, ela aceitou o que quer que os oficiais decidissem para ela. 

Decidiram que ela iria trabalhar numa misteriosa instalação que continha uma enorme antena no topo de um monte. Apesar do desprezo por acadêmicos, o governo precisava de mentes brilhantes trabalhando a seu favor, ainda mais na área militar, já que era a época da Guerra Fria. O currículo de Ye e a necessidade de gente especializada trabalhando na tal antena salvou Ye de um destino pior.

Sendo muito dedicada, inteligente e competente, Ye foi subindo de cargo na instalação e ganhando acesso a informações top secret. A princípio ela foi informada que a antena tinha fins bélicos contra o ocidente, mas posteriormente, quando os oficiais confiavam nela, foi revelado que o propósito daquele lugar era a busca de vida inteligente no universo!

Os militares descobriram que o Ocidente já estava bastante avançado no empreendimento do SETI (Search for Extraterrestrial Intelligence) e que este campo de pesquisa podia ser um game changer poderosíssimo, pois quem quer que conseguisse encontrar, entrar em contato e até trocar conhecimentos com uma avançada civilização alienígena, experimentaria um salto tecnológico incomparável.

No episódio 18, a agora idosa Ye conta toda esta história para Wang Miao e adota um tom melancólico ao relatar que anos e anos de observação dos sinais do espaço não deram em nada. Enquanto trabalhou nesta busca, nos anos 60 e 70, ela se deu conta da condição solitária da humanidade no universo, pois nunca receberam nenhum sinal que indicasse a existência de alguma outra civilização.

É o Paradoxo de Fermi. Levando em conta a quantidade de estrelas e possíveis sistemas planetários no universo, bem como sua longa idade, há uma chance otimista de haver outras civilizações inteligentes. Logo, por que até agora não as detectamos? Por que o universo responde à nossa busca com um eterno silêncio?

The Three-Body Problem consegue apresentar ao leitor uma série de teorias científicas de uma maneira relativamente coloquial, já que elas são mencionadas em conversas muitas vezes casuais entre os protagonistas. Assim são mencionados o Paradoxo de Fermi, a Escala de Kardashev, o Problema de Euler dos Três Corpos, etc.

Também apresenta algumas teorias fictícias, existentes no universo do livro, como as Teorias do Atirador e do Fazendeiro, explicadas logo no início da história. No episódio 19, Wang Miao menciona a teoria do Contato como um Símbolo, de autoria de um tal Bill Mathers que, aparentemente, é um personagem fictício e não um autor real do nosso mundo (embora a Rand Corporation de fato exista).

“Soviet astrophysicist Nicolai Kardashev once proposed that civilizations can be divided into three types based on the power they can command—for communication purposes, let’s say. A Type I civilization can muster an amount of energy equivalent to the total energy output of the Earth. Based on his estimates, the energy output of the Earth is about 1015 to 1016 watts. A Type II civilization can marshal the energy equivalent to the output of a typical star—1026 watts. A Type III civilization’s communication energy can reach 1036 watts, approximately equal to the energy output of a galaxy."

Os aliens estão chegando

Além da Frontiers of Science, Wang descobriu outro grupo obscuro relacionado àquele, a The Earth-Trisolaris Organization (ETO), uma espécie de seita ideológica e religiosa que abraça a ideia da invasão alienígena como algo benéfico para a Terra. São misantropos que torcem contra a humanidade.

Dentro da ETO formaram-se três grupos de pensamento: Adventistas, Redencionistas e Sobreviventes. Os Adventistas são os mais misantropos, pessimistas quanto à humanidade, eles torcem para que os trisolarianos venham colonizar a Terra e expurgar os humanos. É a galera do: "vem meteoro". Os membros desta facção são ativistas climáticos exacerbados e veem a civilização humana como uma praga nociva ao planeta.

Os Redencionistas têm uma visão religiosa dos aliens, que eles chamam de Senhor. Eles pensam que foram escolhidos pelos trisolarianos para ajudá-los a resolver o problema dos sóis. Ou seja, os Redencionistas acham que têm a missão de salvar seus deuses alienígenas oferecendo a solução matemática do problema. Shen Yufei faz parte deste grupo.

Os Sobreviventes são mais pragmáticos e pensam apenas em sobreviver à invasão alienígena. Sabem que os humanos não têm condições bélicas de enfrentar os aliens, então pensam que a melhor estratégia é tentar agradá-los, traindo a humanidade. 

A partir dos episódios 21 e 22, já no terceiro ato da série de 30 episódios, é que a história realmente assume o tema de invasão alienígena. Finalmente aquilo que já estava óbvio para nós foi revelado aos protagonistas: o jogo virtual de alguma forma contava a história de uma civilização alienígena real. 

Wang Miao loga uma última vez no jogo e se depara com um novo ciclo da civilização trisolariana. Eles estão avançadíssimos e o céu está cheio de grandes estrelas. Descobre então que na verdade são milhares de naves espaciais construídas pelos trisolarianos e que devem viajar a uma fração da velocidade da luz em direção à estrela mais próxima. 

Os trisolarianos comemoram este progresso. Finalmente vão se libertar daquele mundo caótico e condenado e começar uma vida próspera em um planeta estável. O problema é que este planeta é a Terra e obviamente os aliens vão subjugar os humanos para se tornarem a espécie dominante por aqui.

Wang Miao enfim consegue comparecer a uma reunião  da ETO, onde ele descobre que Ye Wenjie é a grande líder dessa seita. Ele assiste quieto enquanto ela conta sua história, como o contato com os trisolarianos começou décadas atrás.

Ye Wenjie e Mike Evans, os traidores da humanidade

Quando Ye trabalhava no radar, ela descobriu que o Sol poderia ser usado como um amplificador para sinais de radio e assim consegue enviar para o espaço um sinal poderosíssimo, amplificado pelo Sol. Quatro anos depois, para sua surpresa, o radar recebe uma resposta, um sinal que, ao ser decodificado, vinha com a mensagem: "Não responda! Não responda! Não responda!".

Pois é, ela foi alertada. O "não responda" foi praticamente um "fique na sua, não grite na floresta sombria, não chame atenção de predadores". Ye, porém, ignorou o alerta e enviou outra mensagem na mesma direção, literalmente convidando os aliens para virem conquistar a Terra.

Ye também explica a Wang Miao porque os aliens queriam que ele parasse com sua pesquisa de nanotecnologia: ao desenvolver materiais nanotecnológicos extremamente leves e resistentes (o que de fato Wang Miao estava começando a produzir), a humanidade seria capaz de construir um escudo em volta do planeta que seria um poderoso obstáculo contra a invasão alienígena.

Aliás, os aliens estavam secretamente interferindo na pesquisa científica humana como um todo, garantindo que seu avanço fosse desacelerado. A melhor maneira de fazer isso era semear a confusão no seio da comunidade científica, o que acabou levando os cientistas mais brilhantes ao suicídio. 

E é por isto que os aceleradores de partículas estavam dando resultados caóticos em seus experimentos. Não era uma falha mortal na física e na ciência, mas fruto de uma sabotagem feita pelos aliens para atrasar o progresso científico e tecnológico humano.

Os flashbacks continuam depois que Shi Qiang prende Ye com ajuda de uma força-tarefa e ela é levada a interrogatório. Ela vai recapitulando os eventos de seu passado, como ela decidiu convidar os aliens, pois estava desiludida com a humanidade, e como conheceu Mike Evans.

Mike Evans era o filho de um bilionário empresário da big oil e, ao contrário do pai, ele se tornou um ativista ecológico e desenvolveu uma ideologia, o "comunismo das espécies". No livro é chamado "comunismo", já a série usa a palavra "igualitarismo". É uma visão bem romântica (e ingênua, eu diria), de que todos os animais e vegetais têm o mesmo valor que a vida humana.

Ye obviamente ficou encantada pelo ideal dele. Vendo o desespero fanático de Evans diante da degradação do meio ambiente, Ye o confortou revelando o contato que teve com os trisolarianos. Eles podem ser a esperança para o planeta. 

Como Evans herdara a fortuna do pai, ele resolveu gastar os bilhões construindo um navio com um potente radar, por meio do qual ele próprio entrou em contato com os trisolarianos, sendo avisado de que eles chegarão em 450 anos. Ele então fundou a ETO e pôs Ye como sua comandante.

Um detalhe que mostra como esta obra se preocupa com as minúcias científicas é a descrição da viagem interestelar. É informado que os trisolarianos viajam a 10% da velocidade da luz. Como eles estão em Alfa Centauro, a 4 anos-luz, então é de se presumir que chegarão à Terra em 40 anos, todavia os próprios trisolarianos preveem uma viagem de 450 anos. 

Acontece que as naves não vão atingir a velocidade próxima à luz instantaneamente (como costuma acontecer na maioria dos filmes sci-fi em que basta ligar o motor e a nave dá um salto no espaço). É necessário um longo processo de aceleração que leva séculos e só então é alcançada a velocidade máxima. Depois há uma desaceleração antes de se aproximarem da Terra. Desta forma o tempo completo da viagem excede bastante os 40 anos. Para os trisolarianos, esta demora não é um problema, já que eles são capazes de hibernar por longas eras.

Ziwen Wang
Ye Wenjie (interpretada por Ziwen Wang), tão lindinha e tão perigosa.

Ziwen Wang

A batalha contra os traidores da humanidade

No episódio 29, já no clímax do fim, acontece uma épica cena com efeitos especiais que surpreendem para a produção de uma série relativamente modesta. Após Ye ser interrogada, o próximo alvo da ETO era o navio Judgment Day, liderado por Mike Evans. Este navio contém um computador com todas as informações acerca dos trisolarianos que Evans adquiriu ao entrar em contato com eles.

O plano das forças armadas então é resgatar estes discos rígidos, mas uma invasão convencional ao navio seria arriscada, pois diante de qualquer alerta a tripulação poderia destruir os dados. Era preciso um plano de ataque silencioso e que inutilizasse toda a tripulação sem chance de reação. Cogitou-se de tudo, até uma bomba de neutrons, mas nenhum método garantia total eficácia.

Detalhe que entre as armas cogitadas pelos militares eles mencionam uma "ball lightning", uma espécie de raio elétrico esférico que pode ser movimentado dentro do navio como um drone. Isto é referência a uma tecnologia desenvolvida em outro livro do Cixin Liu, Ball Lightning (2004). Assim temos uma intertextualidade que desenvolve o "cixinverso".

Então Shi Qiang surpreende os militares de alta patente e cientistas com seu raciocínio simples e inventivo. Aqui temos um belo caso de arma de Chekhov. Lá no começo da história, quando Wang explica sua pesquisa para Shi Qiang, eles especulam sobre as utilidades e perigos da finíssima lâmina nanotecnológica que Wang vinha pesquisando. Por exemplo, esta lâmina, mais fina que um fio de cabelo e muito mais forte que o aço, poderia ser estendida em uma estrada e cortar um veículo como manteiga.

Assim, na reunião para traçar um plano de ataque ao navio, Shi Qiang tem este insight: poderiam estender em um canal fios do nanomaterial ao longo de toda a altura e profundidade do navio. Os fios, sendo invisíveis, indetectáveis, cortariam silenciosamente não só o navio como seus tripulantes que sequer teriam tempo para reagir. 

A ideia é posta em prática e a cena do navio sendo literalmente fatiado é formidável, muito bem elaborada. O navio é dividido em camadas como uma cebola que atravessou um cortador. Depois disto, os militares vasculham os destroços para recuperar os discos.

É dito que havia um enorme volume de informação nestes discos, cerca de 28 GB. Convenhamos que hoje em dia 28 GB não é nada, mas para o ano de 2008, quando o livro fora escrito, parecia muita coisa. A série poderia ter adaptado esta parte, modernizado para alguns terabytes. Afinal, estes discos também continham um cliente do jogo Three-Body, um jogo muito detalhista que possui uma quantidade gigantesca de dados.

Os trisolarianos

Wang Miao e Shi Qiang entram mais uma vez no jogo e se deparam com a história do primeiro contato. Quando Ye na década de 70 enviou uma mensagem ao espaço, ela foi captada por um trisolariano de classe inferior, um operário que tinha a única função de monitorar uma entre milhares de torres de radar que vasculhavam os céus. O Monitor 1379.

Este trisolariano foi um rebelde em seu mundo, pois apiedou-se dos humanos e tentou protegê-los de seu próprio povo. Enviou então a mensagem dizendo: "Não responda". É um interessante paralelo. Ye traiu a humanidade enviando uma mensagem convidando os trisolarianos a invadir a Terra, enquanto isto, um trisolariano traiu seu povo tentando evitar esta invasão.

"Listening Post 1379 had already been in existence for more than a thousand years. There were several thousand posts like it on Trisolaris, all of them dedicating their efforts to detecting possible signs of intelligent life in the universe... Without hesitation, the listener pressed the button. A high-powered radio wave carried that short message, a message that could save another civilization, into the darkness of space. Do not answer! Do not answer!! Do not answer!!!"

Os líderes trisolarianos descobriram a traição e agora, sabendo que havia um planeta próximo com maravilhosas condições de sobrevivência, deram início ao plano de invasão. Eles pretendem "conviver" com os humanos na primeira geração, mas vão proibi-los de se multiplicar. Desta forma, inevitavelmente será a última geração, deixando a Terra de herança para os trisolarianos.

Aquele indivíduo que tentou alertar os humanos foi obviamente punido, mas não com a morte. Foi dispensado de seu cargo e condenado a viver sabendo que os humanos que ele tentou salvar um dia serão conquistados. Ele era uma aberração, uma exceção, pois nutria algum tipo de sentimento, de compaixão. A evolução dos trisolarianos os moldou de forma a serem insensíveis, totalmente focados na sobrevivência. Não têm alegria, medo, nem qualquer afeto. Logo, são implacáveis. O Monitor, ao ter sentimentos pela humanidade, se mostrou "fraco" sob a ótica da fria cultura trisolariana.

"All of these emotions—and other emotions, such as fear, sorrow, happiness, and appreciation of beauty—were things that the Trisolaran civilization strove to avoid and eliminate. Such emotions caused the individual and society to be weak spiritually and did not help with survival in the harsh environment of this world. The mental states that Trisolarans needed were calmness and numbness."

O Monitor chegou a questionar a própria natureza de sua civilização, a ausência de arte e de sentimentos que nós humanos consideramos nobres. Nos livros seguintes da trilogia, veremos que, à medida em que entraram em contato com a cultura humana, uma parte dos trisolarianos desenvolveu uma admiração por estes elementos humanos que são inexistentes em Trisolaris.

"Princeps, please examine our lives: Everything is devoted to survival. To permit the survival of the civilization as a whole, there is almost no respect for the individual. Someone who can no longer work is put to death. Trisolaran society exists under a state of extreme authoritarianism... We have no literature, no art, no pursuit of beauty and enjoyment. We cannot even speak of love.... Princeps, is there meaning to such a life?”

Enfim eles desenvolvem a mais formidável tecnologia da civilização trisolariana: Sophon. Na obra de Cixin Liu, ele sempre abordou o tema das múltiplas dimensões. A ideia básica é que qualquer objeto que se encontra em formato uni ou bidimensional pode se tornar bem maior e mais complexo se for desdobrado em mais dimensões, por exemplo, um filtro de cigarro visto de longe é apenas um ponto, mas os seus vários filamentos, se desdobrados em uma estrutura tridimensional, ocupam uma grande área.

“As we move to higher dimensions, the complexity and number of structures within a particle increase dramatically. The comparisons I’m about to make will not be precise, but should give you an idea of the scale. A particle seen from a seven-dimensional perspective has a complexity comparable to our Trisolaran stellar system in three dimensions. From an eight-dimensional perspective, a particle is a vast presence like the Milky Way. When the perspective has been raised to nine dimensions, a fundamental particle’s internal structures and complexity are equal to the whole universe. As for even higher dimensions, our physicists haven’t been able to explore them, so we cannot yet imagine the degree of complexity.”

Os trisolarianos fazem vários experimentos para desdobrar um próton, uma mera partícula subatômica. Quando obtêm sucesso, o próton se torna uma gigantesca cápsula que envolve todo o céu de Trisolaris, como um domo. Então usam drones para modificar este próton, construindo em sua superfície um complexo supercomputador. Depois o próton é enrolado novamente, assumindo seu tamanho original.

Assim nasce o Sophon, um supercomputador do tamanho de um próton. Duas destas partículas são enviadas à Terra em um disparo à velocidade da luz (pois, diferente de grandes naves, é mais fácil um próton ser acelerado à velocidade da luz). Por meio do entrelaçamento quântico, os trisolarianos conseguem monitorar a civilização humana em tempo real usando os prótons emissores na Terra e receptores em Trisolaris. É desta maneira também que conseguem enviar dados em grande volume para Mike Evans, permitindo, por exemplo, o desenvolvimento do jogo Three-Body.

O objetivo principal do Sophon é travar o desenvolvimento da ciência humana. Este supercomputador é capaz de produzir eventos milagrosos, como a impressão do contador na retina de Wang e a ilusão de que o universo "piscou". Tudo isto foi uma grande ilusão promovida pelo Sophon. Ele interfere nas pesquisas de acelerador de partículas, fazendo com que os cientistas não consigam mais avançar, até mesmo desistindo da física e alguns optando pelo suicídio.

Em complemento, os aliados humanos dos trisolarianos, os Adventistas, também tentam semear na opinião pública um sentimento de aversão à ciência. Por meio do ambientalismo extremista, a ciência e tecnologia são denegridas como nocivas ao planeta.

Ainda há esperança

É isso. A humanidade está condenada. Uma vez que o Sophon é uma partícula subatômica, é simplesmente impossível encontrá-lo. A Terra está sendo irreversivelmente espionada e sabotada. Por isto os militares decidem que não vão mais tratar o assunto em segredo, uma vez que é inútil. A guerra contra os aliens está abertamente declarada.

Neste momento, o Sophon imprime uma mensagem na retina daqueles militares e líderes mundiais, uma frase de deboche: "You are bugs". Vocês não passam de insetos.

Wang Miao e outro cientista, Ding Yi (ex-noivo de Yang Dong), se rendem ao fatalismo. Já que não há saída, vão viver o resto de suas vidas conformados. Começam uma bebedeira até que Shi Qiang aparece e, como sempre, impõe moral. Qiang é a inteligência emocional do grupo. Ele não tem a genialidade e conhecimento dos cientistas, mas possui poderosos insights.

Shi Qiang leva os cientistas até uma área infestada de gafanhotos. Ele faz uma analogia. Ora, os gafanhotos são tecnologicamente muito inferiores aos humanos. Os humanos desenvolveram várias tecnologias para combatê-los: pesticidas, engenharia genética, drones, atearam fogo e inseriram predadores naturais para caçá-los. Nada disso consegue eliminar de vez os gafanhotos. Eles persistem.

A diferença tecnológica entre os trisolarianos e os humanos não é tão grande quanto a dos humanos e gafanhotos. O exemplo dos gafanhotos mostra que não basta poder tecnológico. A humanidade deve resistir, assim como meros gafanhotos resistem a todas as tentativas de extingui-los.

A história termina assim, com uma pitada de esperança. A resistência deve começar.

"Look at them, the bugs. Humans have used everything in their power to extinguish them: every kind of poison, aerial sprays, introducing and cultivating their natural predators, searching for and destroying their eggs, using genetic modification to sterilize them, burning with fire, drowning with water. Every family has bug spray, every desk has a flyswatter under it... this long war has been going on for the entire history of human civilization. But the outcome is still in doubt. The bugs have not been eliminated. They still proudly live between the heavens and the earth, and their numbers have not diminished from the time before the appearance of the humans... The Trisolarans who deemed the humans bugs seemed to have forgotten one fact: The bugs have never been truly defeated."

Algumas observações

O conceito de uma civilização alienígena originada em um sistema tri solar é uma sacada brilhante do Cixin Liu e que deu origem a um mundo bem interessante e caótico. 

A verdade é que os trisolarianos são uma enorme exceção na história evolutiva do cosmo, pois o mais provável é que planetas em sistemas com três sóis não tenham a menor chance de desenvolver vida ou desta durar por algum tempo, justamente devido às caóticas condições a que é submetido. 

É impressionante imaginar a quantidade de catástrofes e condições extremas que um planeta deve experimentar neste tipo de sistema. O frio extremo levaria ao congelamento do próprio ar atmosférico; o calor extremo derreteria as rochas e destruiria toda matéria orgânica da superfície; em determinados momentos o planeta estaria tão perto de um ou mais sóis que sua atmosfera seria varrida da superfície pelo vento solar, tornando-se uma rocha infértil como Mercúrio. 

Os trisolarianos do livro tiveram muita sorte e convenhamos que são uma espécie admirável por sua épica resiliência, renascendo de novo e de novo ao longo de milhões ou bilhões de anos. Evoluíram tecnologicamente com muito esforço, pois sua existência era focada em sobreviver às condições mais extremas. Não tinham tempo para pensar em mais nada, nem arte, nem lazer ou entretenimento. Suas vidas eram voltadas a encontrar uma solução para aquele problema cósmico. Logo, tornaram-se especialistas nisso, em evoluir e sobreviver.

Ye Wenjie é de longe a personagem mais complexa e todos os outros parecem bidimensionais comparados a ela. Ela tem uma história sofrida, viu o pai ser torturado e morto pelo fanatismo revolucionário, viu a mãe enlouquecer, foi traída por alguém que ela admirava, reencontrou o amor e até virou mãe. Ao mesmo tempo tomou decisões eticamente controversas, literalmente matou duas pessoas, incluindo seu amado marido, foi a causa indireta do suicídio da filha e ainda virou líder de uma obscura seita inimiga da humanidade.

Como personagem, Ye é admirável. Todavia, nunca devemos esquecer que ela é uma vilã na história e tomou uma decisão egoísta e cruel ao convidar os aliens para a invasão. Ok que a visão ingênua dela é que a vinda dos aliens seria benéfica para a humanidade. Sendo uma civilização mais avançada, eles talvez sejam mais aptos a liderar o curso da história na Terra. Só que tem um importante detalhe: ela consultou a humanidade?

A decisão de Ye foi totalmente egocêntrica e autocrática, a mais tirana da história humana, já que selou o destino de todo o planeta. Ela tinha em suas mãos o destino da humanidade, do planeta, e tomou a decisão sem consultar ninguém. Ela fez uma aposta com as vidas de todo o mundo, pois nessa sua aposta poderíamos ser beneficiados com a visita alienígena, ou extintos para sempre. Você gostaria que alguém apostasse sua vida sem seu consentimento? Pois é, a atitude de Ye foi simplesmente tirana. 

Um detalhe difícil de aceitar é o fato de os trisolarianos desenvolverem um jogo sobre seu mundo e sua história para os humanos. Eles são uma civilização fria e focada no objetivo da sobrevivência. Estão pouco se lixando para os humanos. Logo, pra que se importar em esclarecer os humanos, apresentando o insolúvel problema dos três corpos e sua sofrida história?

O motivo é que fizeram isto visando apenas os membros da ETO, no intuito de gerar neles empatia. "Vejam como sofremos e como precisamos sair deste mundo trisolariano e nos mudar para a Terra". Desta forma, a ETO ficaria ainda mais inclinada a ajudar os aliens nesta empreitada. O jogo era uma peça de propaganda militar.

Se há alguma mensagem do autor, alguma crítica política, é quanto ao totalitarismo que os trisolarianos representam. Eles são uma civilização que despreza a individualidade ou sentimentos que nós humanos consideramos nobres como a compaixão. Existe esta ironia no fato dos membros da ETO venerarem como deuses benevolentes um povo alienígena que é pior que a humanidade em termos morais e éticos.

Ye, Mike Evans e a ETO exemplificam um tipo perigoso de utopistas, utopistas baseados na misantropia. É uma ideologia contraditória e autofágica, pois não há como salvar a humanidade detestando-a.

Notas sobre a primeira temporada da série da Netflix

3 Body Problem (2024)

Enquanto a série da Tencent foi exaustivamente fiel ao livro, mantendo as características e nomes de todos os personagens (com exceção da Xu Bingbing, que foi inventada para a série), mantendo o enredo na China, onde se passa a maior parte da história original, a adaptação da Netflix mudou radicalmente estes detalhes.

É compreensível terem feito isto. Primeiro, a Netflix já é banida na China e não tem a menor obrigação de fazer uma adaptação que se passa em território chinês e com a grande maioria dos personagens chineses. Depois, sendo uma plataforma de alcance internacional, é de se esperar que ela buscasse produzir uma série com elenco diversificado. 

Apesar desta grande mudança no elenco e até nos nomes dos personagens, tomou-se o cuidado de manter intacta a personagem mais importante: Ye Wenjie, que continuou sendo chinesa e tendo sua história de origem fielmente representada, afinal ela é o começo de tudo, o começo de toda a crise que vai chegar a um nível cósmico.

Também mantiveram Da Shi como um detetive asiático (ao menos na aparência, já que ele é britânico), só que essa versão do Benedict Wong é muito séria, bem diferente daquele cara super brincalhão e descolado que foi o Da Shi da série da Tencent. Uma pena, pois ele foi um dos personagens mais marcantes.

É impressionante a ousadia da Netflix logo na primeira cena. É verdade que mesmo o atual governo chinês tem suas críticas aos excessos cometidos pelo governo de Mao, tanto que Cixin Liu não foi censurado em seu livro ao representar a violência que os revolucionários cometeram contra acadêmicos. Só que uma coisa é este assunto sendo exposto em um livro e outra é ele exposto na tela. A Tencent simplesmente cortou a cena da morte do pai da Ye Wenjie, certamente pra não tocar nesse assunto politicamente sensível.

Já a Netflix poderia ter feito o mesmo e evitado cutucar a onça, mas ela chutou o balde e expôs a crueldade, o antintelectualismo e anticientificismo dos revolucionários. E isto logo na primeira cena.

Enquanto a série da Tencent teve 30 episódios, podendo desenvolver a história lentamente e replicando o livro, a da Netflix tem 8 episódios e obviamente condensou bastante os eventos, cortou muitos detalhes, acelerou a narrativa, mas tudo bem. Isto de fato não prejudica o desenrolar da história ou a experiência de quem assiste.

Também tentaram simplificar a linguagem e evitar a profundidade científica do livro, o que é compreensível, uma vez que a série visa o grande público do streaming, mas também é uma pena, pois a série perde o teor nerd do livro, perde o sabor original.

Um bom exemplo é a declaração, que vem logo nas primeiras páginas do livro, de que "a física nunca existiu e nunca vai existir". A Netflix simplificou para "a ciência está quebrada" (science is broken), o que ameniza muito o tom niilista e desesperador da frase original. 

No livro a ideia é que tudo o que a física postulou caiu por terra diante do fato de que os experimentos subatômicos revelaram um completo caos sem nenhum tipo de obediência a leis antes tidas como certas. Ou seja, estava tudo errado, a física não vale mais nada.

Na série fica parecendo apenas que a pesquisa científica está com problemas, mas não passa aquela ideia realmente desesperadora, quase lovecraftiana, de que o universo se tornou um mistério assustador e que não há nada que possa ser feito.

Outro momento em que houve uma simplificação foi o evento da "piscada". Quando foi dito, no livro e na série da Tencent, que o universo piscou, isto foi apenas linguagem figurada, pois o que aconteceu foi uma variação na radiação cósmica de fundo, algo nem mesmo visível a olho nu, e que Wang Miao só percebeu ao investigar dados de radares. Foi um evento de hard sci-fi, de ficção científica embasada em ciência real.

A Netflix pegou esta cena e literalmente criou uma piscada. As estrelas no céu piscaram diante dos olhos de todos.

3 Body Problem VR

Uma mudança que acho que foi pra melhor é o conceito do dispositivo de VR. No livro e na série da Tencent, o chamado V-Suit consiste numa série de equipamentos, luvas, esteira, óculos, etc, e que são uma tecnologia puramente humana, conhecida no mundo dos games. Alienígena é apenas o software, o jogo do problema dos 3 corpos.

A série da Netflix deu uma atualizada no conceito e em vez de um monte de periféricos e óculos VR, temos um simples e elegante elmo que provavelmente funciona por meio de BCI (brain computer interface), comunicando-se diretamente com o cérebro por ondas eletromagnéticas de modo a fornecer até mesmo uma experiência sensorial realista. O Jack Rooney, por exemplo, sente até o gosto da areia no chão daquele mundo virtual.

No episódio 5 a série finalmente mostra a que veio. Chegamos ao momento em que o navio Juízo Final é literalmente fatiado pelas nanofibras, uma cena tão boa quanto a da série da Tencente. De fato até melhor e mais brutal, uma vez que nesta versão havia crianças a bordo, tornando o massacre bem mais aterrorizante.

Como sabemos, o objetivo deste ataque era recuperar o disco rígido com os dados que Mike Evans possuía sobre os trisolarianos. Aqui a série teve o cuidado de fazer uma importante atualização. Falamos anteriormente que no livro de Cixin Liu é dito que o disco continha 28 GB. Isto parecia muito em 2008, mas hoje em dia não parece grande coisa.

3 Body Problem; Sophon file

Então vemos um arquivo, intitulado sophon.cx1 que contém nada menos que 102 Petabytes de dados. Este arquivo provavelmente contém os dados do jogo virtual que, por ser extremamente realista, deve possuir um volume imenso.

Também no episódio 5 é explicada a natureza de Sophon, construída a partir de um próton capaz de se desdobrar além da terceira dimensão. Uma vez que os trisolarianos não confiam mais em Mike Evans ou quaisquer humanos e estão decididos a partir para a guerra, eles vão direto ao ponto, declarando suas intenções. Sophon se desdobra e cobre toda a superfície da Terra, virando um olho gigante assustador, então proclama as marcantes palavras para todo o mundo ver: "You are bugs".

Acho que a série conseguiu fazer a Ye Wenjie uma personagem detestável como deve ser. É compreensível que o sofrimento que ela passou na juventude a deixou desesperançosa com a humanidade, mas a fé cega dela nos trisolarianos foi no mínimo ingênua e na velhice já se mostrava como puro fanatismo. 

O mesmo vale para o Mike Evans, que levou o idealismo a um extremo tal a ponto de perder o sentido e se tornar uma ameaça a toda humanidade. Interessante que a versão da Netflix não fala nada sobre o "comunismo das espécies", que é como o livro define a ideologia dele ("igualitarismo" na versão da Tencent). Na série da Netflix a ideologia de Evans é bastante vaga.

Alex Sharp; 3 Body Problem (2024)

O Will é definitivamente o cara mais apaixonado do universo. Ele torrou a fortuna para comprar uma estrela para a Dra. Cheng, a pedido dela aceitou mandar o próprio cérebro pro espaço, numa missão absurda e que poderia condená-lo a uma vida sob tortura dos trisolarianos. E na trilogia este amor platônico e épico vai além, pois Yun Tianming (o nome do personagem no livro, substituído por Will na série) vai atravessar as eras e presentear Cheng literalmente com um micro-universo (sim, parece surreal e não vou entrar em detalhes, pois isto acontece no terceiro livro).

Por um lado, a série corre bastante no ritmo dos eventos, mas também é interessante que ela organiza numa ordem cronológica eventos que estão espalhados nos três livros, tornando a narrativa mais palatável para o público. A primeira temporada abrangeu o começo da Crisis Era que ainda deve se estender séculos adiante e depois teremos a Deterrence e Post-Deterrence Era, a Broadcast Era, a Bunker Era e a Galaxy Era. Pois é, ainda tem muito chão pela frente.

Benedict Wong; 3 Body Problem (2024)

Aos insetos!

The Dark Forest; Cixin Liu

SEGUNDO LIVRO: THE DARK FOREST

O segundo livro começa com uma conversa entre Mike Evans e os trisolarianos. Os trisolarianos têm uma fisiologia tal que conseguem se comunicar claramente sem precisar sequer de palavras. Seus pensamentos são transmitidos uns aos outros numa espécie de telepatia. Desta forma, a civilização trisolariana não é familiar ao conceito de segredo, muito menos à mentira e ao ardil. Mesmo na guerra, eles só sabem ser sinceros e diretos quanto às suas intenções.

Mike Evans, sendo humano, observa que esta é uma grande fraqueza dos trisolarianos em relação aos humanos, pois estes podem usar de mentiras e estratagemas para enganar os inimigos. Neste momento, os trisolarianos se dão conta de que mesmo Mike Evans, seu mais fiel aliado humano, pode ser um perigo. Eles confessam: "Temos medo de vocês". A malignidade humana assustou os aliens.

Não que os trisolarianos sejam flor que se cheire. Se por um lado os humanos podem ser maquiavélicos e ardilosos, por outro a frieza e indiferença a sentimentos dos trisolarianos também os tornam inimigos assustadores.

O Wallfacer Project

Uma vez que a Terra está sendo espionada pelos sophons, que tornam os trisolarianos praticamente oniscientes, nenhuma estratégia de defesa estará livre da sabotagem ou contra estratégia trisolariana. Tudo o que os militares planejarem vai ser do conhecimento dos aliens. Não existem mais segredos. Bom, mais ou menos.

A solução desesperada para esta situação foi o Wallfacer Project. Consistia em escolher um grupo de pessoas em todo o mundo, selecionadas aleatoriamente, que estariam encarregadas de elaborar um plano mirabolante em suas mentes sem jamais partilhar com outras pessoas seus verdadeiros intentos. Todo o mundo deveria atender aos pedidos dos wallfacers sem questionar. Basicamente era um "confia no plano".

Ninguém podia saber qual a verdadeira estratégia de um wallfacer, que ele guardava em seus pensamentos, inacessíveis aos sophons. A dissimulação é um importante princípio da Arte da Guerra, todavia, dar tanto poder e o destino da humanidade a apenas algumas pessoas aleatórias e confiar em sua capacidade de dissimulação e estratégia é bem ingênuo.

"Humanity still has secrets, in the inner world that each of us possesses. The sophons can understand human language, and they can read printed texts and information on every kind of computer storage media at ultrahigh speeds, but they can’t read human thoughts. So long as we do not communicate with the outside world, every individual keeps things secret forever from the sophons. This is the basis of the Wallfacer Project."

Parece uma ideia bem infantil, e de fato era (inclusive no terceiro livro esta primeira fase da crise foi chamada de Era Infantil, pois a humanidade, desnorteada com a ameaça cósmica, passou a agir e pensar de uma forma mais caótica e ingênua). Como era de se esperar, o Wallfacer Project não deu certo e acabou sendo esquecido ao longo das décadas. 

Luo Ji, um dos wallfacers e o protagonista da história, tem uma ideia bem inusitada. Enquanto os outros wallfacers estavam pensando em grandes estratégias de guerra e na criação de uma frota espacial, Luo Ji, depois de passar um bom tempo em puro ócio e até tendo um romance com a garota dos seus sonhos (ele literalmente sonhou acordado com uma garota e, usando os recursos do projeto, descobriu que no mundo esta pessoa de fato existia), teve a bizarra ideia de testar uma arma estelar que enviava um "feitiço" (spell) capaz de destruir estrelas.

Ele não explicou os detalhes, obviamente, e ninguém a não ser ele sabia de fato como o tal feitiço funcionava. Para efeito de teste, o sinal de rádio foi enviado a uma estrela distante e agora teriam de esperar 50 anos até que o efeito pudesse ser observado. Enquanto isto, Luo Ji foi colocado em sono criogênico a fim de esperar o resultado do teste. Afinal, como a invasão trisolariana só aconteceria em 400 anos, havia tempo para fazer experimentos.

O tempo passou e nada aconteceu com a estrela. O Wallfacer Project virou motivo de piada e foi esquecido. De toda forma, também se tornou totalmente desnecessário, uma vez que a humanidade, depois de ter se recuperado de uma crise mundial (chamada The Great Ravine), passou a progredir tecnologicamente e entrar em uma maravilhosa era utópica.

A frota espacial se tornou tão imponente e poderosa, com armas capazes de destruir planetas, que virou uma superpotência à parte, existindo na forma de gigantes cidades espaciais no sistema solar. Era certo que, quando a nave colonizadora dos trisolarianos chegasse, seria massacrada por tão poderosa frota.

Os humanos, todavia, subestimaram a capacidade estratégica dos trisolarianos. 

A frota espacial estava muito segura de sua superioridade tecnológica, afinal construíram gigantescas naves, verdadeiras cidades espaciais equipadas com as mais poderosas armas. Os trisolarianos, por sua vez, não tinham condições de enviar naves gigantescas a tempo, pois quanto maior a nave mais difícil é produzir uma aceleração próxima à velocidade da luz. Em vez disto enviaram um pequeno drone, apelidado pelos humanos de "gotícula" (droplet).

Trisolaris droplet
O temido droplet.

A gotícula se mostrou um exemplo de como os trisolarianos são focados em eficiência. Um drone feito de um material extremamente resistente e dotado de uma grande velocidade e controle de trajetória é mais eficiente do que os mastodontes bélicos dos humanos. A gotícula saiu golpeando as naves uma a uma, como um martelo de Thor, inquebrável e muito veloz. Em poucos minutos, a maior parte da frota estava destruída. Uma derrota humilhante, pois nem se compararia a Davi versus Golias, mas sim a uma abelha derrubando uma manada de elefantes.

"Their only enemy was a tiny probe, one drop of water out of the enormous ocean of Trisolaran strength, and this probe attacked using one of the oldest and most primitive tactics known to human navies: ramming."

O título do segundo livro, The Dark Forest, não é à toa, pois trata-se de um conceito essencial para a solução do problema da Terra. Luo Ji resolveu o Paradoxo de Fermi por meio deste raciocínio: uma vez que a existência dos trisolarianos provou que havia de fato vida inteligente na galáxia, a possível explicação para o silêncio dos alienígenas é a teoria da Floresta Sombria.

Em algum momento de seu desenvolvimento, as civilizações alienígenas entendem que a sua sobrevivência e expansão no universo requer discrição, já que existem outros concorrentes, outros mundos disputando os recursos da galáxia. Para não correr o risco de atrair a atenção de uma civilização mais poderosa, é importante manter o silêncio, evitar enviar sinais ao espaço, ficar calado na floresta sombria para não ser descoberto por predadores.

"The universe is a dark forest. Every civilization is an armed hunter stalking through the trees like a ghost, gently pushing aside branches that block the path and trying to tread without sound. Even breathing is done with care. The hunter has to be careful, because everywhere in the forest are stealthy hunters like him. If he finds other life—another hunter, an angel or a demon, a delicate infant or a tottering old man, a fairy or a demigod—there’s only one thing he can do: open fire and eliminate them. In this forest, hell is other people. An eternal threat that any life that exposes its own existence will be swiftly wiped out. This is the picture of cosmic civilization. It’s the explanation for the Fermi Paradox... But in this dark forest, there’s a stupid child called humanity, who has built a bonfire and is standing beside it shouting, ‘Here I am! Here I am!’"

Os trisolarianos de fato pensavam assim e viviam discretos na galáxia. Inclusive o Monitor 1379, que recebeu o primeiro sinal da Ye Wenjie, a alertou a não enviar outro sinal, pois isto iria expor a Terra ao rastreamento.

Foi com base nisto que Luo Ji teve a ideia do feitiço. Não se tratava de fato de uma magia ou uma radiação capaz de destruir estrelas. O sinal que ele enviou, amplificado pelo Sol, continha as coordenadas da estrela alvo do experimento. Várias civilizações na galáxia devem ter recebido o sinal. Algumas podem ter ignorado, outras podem ter pensado em enviar uma sonda para investigar, mas alguma civilização mais aguerrida chegaria à conclusão que era melhor destruir aquele sistema solar, eliminando uma possível concorrência.

A princípio o spell pareceu não ter funcionado, mas depois se constatou que de fato a estrela fora destruída. Luo Ji estava certo afinal. Desta forma, agora ele tinha uma arma para apontar contra os trisolarianos, criando um impasse mexicano cósmico. Ele poderia enviar uma spell, um sinal para a galáxia, indicando as coordenadas de Trisolaris, atraindo a atenção de alguma civilização predadora próxima que tomaria a iniciativa de destruir aquele mundo.

Era como se duas pessoas se encontrassem na floresta sombria. Uma delas, representando os trisolarianos, está armada com uma faca e ameaça atacar a outra, a Terra. A Terra, porém, ameaça soltar um grito que pode atrair um urso, mais poderoso que os dois, e contra o qual a faca de Trisolaris é inútil. Esta era a fabulosa estratégia de Luo Ji, usar a floresta sombria como uma arma.

Obviamente é uma estratégia quase suicida, que brinca com o perigo, pois os trisolarianos podiam fazer o mesmo e expor a Terra aos predadores cósmicos. Mas o objetivo dos trisolarianos era sobreviver na Terra, de modo que não fazia sentido destruí-la. O que restava a ambas civilizações era buscar uma trégua, partilhando a Terra, convivendo, e, caso os trisolarianos tentassem se voltar contra os humanos, sempre haveria o último recurso dos humanos, chamar os monstros, enviar um sinal para a galáxia a fim de atrair a destruição.

É a mesma lógica da paz armada, da paz por meio da manutenção de bombas nucleares, que é o modelo de paz atual do nosso mundo. Ora, se todos sabem que uma guerra nuclear acabaria com toda a civilização, todos se mantêm neste limite de não usar armas nucleares contra seus adversários. Um perpétuo impasse baseado no risco da mútua destruição. Luo Ji fez isto em um nível cósmico.

Até que veio a gotícula. Além de destruir a frota espacial, a gotícula também tinha a capacidade de bloquear o envio de sinais para o Sol, anulando o grande trunfo de Luo Ji que era a amplificação de sinal capaz de enviar o spell. Era o fim do impasse mexicano cósmico que havia entre a Terra e Trisolaris. Com um simples drone, Trisolaris anulou os dois grandes trunfos da humanidade. Dois coelhos com uma só cajadada.

Mas "palma, palma, não priemos cânico". Luo Ji, depois de uma fase de depressão e desânimo, conseguiu bolar uma maneira de burlar o bloqueio de sinal da gotícula, restabelecendo o impasse cósmico. Por meio dos sophons, os trisolarianos se comunicam com Luo Ji, admitindo a derrota e dispostos a negociar os termos de paz e uma futura convivência com os humanos.

No fim das contas, o Wallfacer Project deu certo e Luo Ji se mostrou um brilhante estrategista. Ele enxergou o que ninguém mais tinha compreendido acerca da "sociologia do universo": que o cosmo está cheio de predadores e que a melhor estratégia de sobrevivência é o silêncio. 

Death's End

TERCEIRO LIVRO: DEATH'S END

Comparado ao terceiro livro, não acontece muita coisa nos dois primeiros. Em The Three-Body Problem os aliens são apenas um conceito distante e a maior parte da história se concentra em um jogo virtual numa simulação que no fim das contas pouco contribuiu para a grande trama.

The Dark Forest dedica muito espaço a Luo Ji e o Wallfacer Project e só no final temos algo mais diretamente ligado aos trisolarianos, com a chegada dos droplets e a reviravolta de Luo Ji. E nada mais acontece.

Já em Death's End a história escala bastante e se torna grandiosa, atravessando o tempo e o espaço. Muita coisa acontece ao longo dos capítulos. Também pelo número de páginas se nota a evolução do conteúdo. O primeiro livro tem cerca de 300 páginas, o segundo 400 e o terceiro 600!

O Staircase Project

No início de Death's End, na chamada Crisis Era, a humanidade tem outra ideia maluca e desesperada, o Staircase Project. O plano é enviar uma sonda espiã até a nave colonizadora dos trisolarianos. Para que ela chegue a tempo, é preciso que alcance 1% da velocidade da luz e, com a rudimentar tecnologia do século 21, foi preciso muita criatividade para conseguir este feito.

Primeiro o sistema de propulsão seria por meio do impulso de explosões nucleares. Acontece que uma nave ficaria pesada demais se levasse este "combustível" com ela, então a estratégia consistia em distribuir várias bombas no sistema solar, formando uma rota de propulsão. A sonda seria a menor e mais leve possível, contendo uma fina tela responsável por receber o empurrão das explosões, como uma vela de barco empurrada pelo vento (neste caso, o poderoso vento nuclear). Toda a trajetória seria milimetricamente calculada, de modo que a sonda seria gradativamente acelerada à medida em que passasse através das explosões, saindo do sistema solar com 1% da velocidade da luz.

Tá, mas como produzir uma sonda pequena e leve o suficiente para alcançar esta velocidade e ao mesmo tempo conter os equipamentos necessários para a espionagem? Então veio uma ideia mais maluca ainda: enviariam um humano em estado de hibernação. Como os trisolarianos não dominam a arte do engano, eles inevitavelmente seriam tentados a reanimar o humano a fim de estudá-lo, interrogá-lo, até mesmo torturá-lo. Assim, o humano poderia coletar as informações que pudesse sobre os trisolarianos.

Só que um corpo humano em uma cápsula de hibernação excederia os limites de tamanho e peso da sonda, então a ideia escalou para algo ainda mais insano: enviariam apenas um cérebro.

Quem quer que fosse o voluntário para esta empreitada, estava condenando a si mesmo a uma condição aterrorizante de existência, reduzido a um cérebro, sem corpo, sem controle sobre si mesmo, totalmente à mercê dos trisolarianos, que certamente o torturariam com sondas sem que ele sequer fosse capaz de cometer suicídio. 

"If the Trisolarans were to really capture his brain as Cheng Xin wished, then his true nightmare would begin. Aliens who shared nothing with humanity would attach sensors to his brain and begin tests involving the senses. They would be most interested in the sensation of pain, of course, and so, by turn, he would experience hunger, thirst, whipping, burning, suffocation, electric shocks, medieval torture techniques, death by a thousand cuts... He would have no escape. Without hands or body, he would have no way to commit suicide. His brain would resemble a battery, recharged again and again with pain."

Cheng Xin e a derrota da humanidade

A criadora do Staircase Project foi Cheng Xin, uma bela, jovem e inteligente garota. Na ocasião, Luo Ji estava em hibernação, esperando o resultado do spell lançado contra uma estrela. O Wallfacer Project já havia caído em descrédito, de modo que se buscavam novas ideias. Foi aí que Cheng Xin apareceu com a bizarra ideia do "cérebro espião". 

Após o lançamento do cérebro espião rumo à frota trisolariana, Cheng Xin entrou em hibernação, despertando 264 anos depois. Graças a Luo Ji, o mundo agora vivia a Era da Dissuasão (The Deterrence Era), quando se estabeleceu uma trégua com os trisolarianos. A humanidade agora entendia melhor do que nunca o conceito de Floresta Sombria.

"When humanity finally learned that the universe was a dark forest in which everyone hunted everyone else, the child who had once cried out for contact by the bright campfire put out the fire and shivered in the darkness. Even a spark terrified him. During the first few days, even mobile phone use was forbidden, and antennas around the world were forcibly shut down. Such a move, which would have once caused riots in the streets, was widely supported by the populace... The dark forest theory had a profound impact on human civilization. That child sitting by the ashes of the campfire turned from optimism to isolation and paranoia, a loner in the universe."

Durante a Deterrence Era, a função mais importante em todo o mundo era a do Swordholder, a pessoa que carregaria um dispositivo capaz de enviar um sinal para o universo, atraindo predadores cósmicos. Luo Ji vinha ocupando esta função por toda sua vida e agora era o momento de passar o bastão para outra pessoa.

Um detalhe curioso sobre o mundo do futuro é a delicadeza e feminilidade dos homens. A Deterrence Era trouxe um período de muita paz, prosperidade e avanço tecnológico. Com a cooperação dos trisolarianos, os humanos até construíram antenas de ondas gravitacionais, muito mais eficientes que as antenas de rádio. Com o mundo automatizado e sem perigos, o conforto se encarregou de afeminar os homens.
"Cheng Xin stared. The individuals AA indicated had smooth, lovely faces; long hair that draped over their shoulders; slender, soft bodies—as if their bones were made of bananas. Their movements were graceful and gentle, and their voices, carried to her by the breeze, were sweet and tender.... Back in her century, these people would have been considered ultra-feminine. Understanding dawned on her after a moment. The trend had been obvious even earlier. The decade of the 1980s was probably the last time when masculinity, as traditionally defined, was considered an ideal. After that, society and fashion preferred men who displayed traditionally feminine qualities. She recalled the Asian male pop stars of her own time who she had thought looked like pretty girls at first glance. The Great Ravine interrupted this tendency in the evolution of human society, but half a century of peace and ease brought about by the Deterrence Era accelerated the trend... Gravity’s male crew members belonged to the last generation from Earth who still looked masculine, and Devon had the most masculine appearance among them."

O que mais chamou atenção, porém, foi o clima de otimismo e serenidade deste novo mundo, tão diferente do caos e niilismo pós moderno dos séculos XX e XXI.

"Cheng Xin was most impressed by the disappearance of the gloomy despair and bizarre noise so prevalent in the postmodern culture and art of the twenty-first century. In their place was an unprecedented warm serenity and optimism."

Outro curioso efeito da Deterrence Era foi a troca de influências culturais entre a Terra e Trisolaris, principalmente por parte dos humanos, já que os trisolarianos eram muito discretos e observavam a Terra intensamente por meio dos sophons. A cultura terráquea acabou influenciando a sociedade trisolariana.

"The Trisolarans explained their own actions this way: Their generous gift of knowledge was done out of respect for Earth civilization. They claimed that Trisolaris had received even more benefits from Earth. Human culture gave Trisolaris new eyes, allowed Trisolarans to see deeper meanings in life and civilization and appreciate the beauty of nature and human nature in ways they had not understood. Human culture was widely disseminated on Trisolaris, and was rapidly and profoundly transforming Trisolaran society, leading to multiple revolutions in half a century and changing the social structure and political system on Trisolaris to be more similar to Earth’s."

Mas a aparente admiração dos trisolarianos (eles até faziam filmes com personagens humanos) não significa que eles haviam desistido totalmente da invasão. O que mantinha a trégua era o Swordholder, a atitude convicta e ameaçadora de Luo Ji. Até que ele passou o dispositivo para Cheng Xin. Ela não durou dez minutos nesta função.

Os trisolarianos estudaram a fundo a psicologia humana. Eles temiam Luo Ji porque sabiam do que ele era capaz. Por outro lado, também sabiam que Cheng Xin tinha uma personalidade mais benevolente, mais maternal. Ela não tinha a frieza necessária para segurar o destino do mundo nas mãos.

Assim que Cheng Xin recebeu o dispositivo de Swordholder (literalmente o botão do fim do mundo), os trisolarianos iniciaram um ataque coordenado com os droplets. Na Terra, eles destruíram as antenas gravitacionais e no espaço atacaram as duas naves sobreviventes da última batalha e que estavam vagando para longe do sistema solar.

Durante o ataque, Cheng Xin ainda teve tempo para apertar o botão. Se fizesse isso, a Terra enviaria uma onda gravitacional denunciando a localização de Trisolaris para os predadores cósmicos, consequentemente também despertando a atenção para o sistema solar. Ou seja, ela condenaria dois mundos. Era esta a única função do Swordholder, soltar o pino da granada caso fosse cercado por inimigos.

Ela não teve coragem. Jogou o dispositivo no chão e assistiu impotente o ataque dos droplets. 


Sophon
Arte conceitual de IA da possível aparência de Sophon: bela, delicada e mortífera.

Sophon e o campo de concentração da humanidade

Na Terra os sophons construíram uma robô humanoide que se apresentou simplesmente como Sophon. Ela seria a representante oficial dos trisolarianos e conduziria o processo de invasão. A primeira etapa era realocar toda a humanidade para a Austrália. Era um gesto ao mesmo tempo cruel e benevolente, pois só fizeram isto porque decidiram não exterminar a humanidade. Os humanos podem sobreviver, mas limitados àquela ilha.

"Sophon announced that Trisolaris no longer intended to exterminate human civilization, but would create reservations for humans within the Solar System—specifically, they would let humanity live in Australia and on one-third of the surface of Mars. This preserved the basic living space needed for human civilization... the migrants gathered into districts based on their nation of origin, and Australia became a miniature replica of the whole Earth... As the resettlement process continued, cities on continents outside of Australia fell dark one by one, turning into empty, silent shells. It was like a luxurious restaurant turning out the lights after the last diner had left."

Obviamente todo o processo de transporte e realocação dos humanos foi bastante traumático e não demorou muito até que aquela sociedade entrasse em colapso, com uma crise de alimentos. Sophon apenas assistia a tudo impassível e, com uma frieza e talvez até certo sadismo, disse que agora os humanos deveriam lutar entre si para sobreviver e até praticar canibalismo. Em algum momento, com a população bastante reduzida, a humanidade encontraria um equilíbrio.

Chen Xin assistiu ao caos sem nada poder fazer. O trauma de ver a violência e o canibalismo nas ruas foi tanto que ela até perdeu a visão. Tudo aquilo era culpa dela que não teve a coragem de apertar o botão, que não conseguiu manter os trisolarianos no impasse.

Felizmente, ainda havia uma esperança. No espaço, bem longe da Terra, os tripulantes da nave Gravity foram atacados pelos droplets e ali se deram conta de que o impasse havia terminado e a Terra provavelmente seria invadida. Chegaram à conclusão que a única coisa que eles podiam fazer era enviar o sinal para o cosmo, fazendo o que o Swordholder da Terra não fez. Este ato condenaria a Terra, mas também Trisolaris e pelo menos daria um fim à invasão e algum tempo aos humanos para fugirem da Terra.

Quando os trisolarianos se deram conta de que o sinal foi enviado à floresta sombria do espaço, desistiram completamente da invasão, já que a Terra estava condenada. Sophon anunciou a decisão e se despediu. A frota trisonalian seguiria para longe do sistema solar.

Restava à humanidade se recuperar daquele caos. As pessoas voltaram aos seus países e agora a Terra teria de planejar uma forma de lidar com um possível ataque definitivo de alguma força cósmica ainda pior que os trisolarianos. Não demorou muito até que Trisolaris fosse atacado por algo e uma de suas estrelas completamente destruída.

"The attack on the Trisolaran system was identical to the attack on Luo Ji’s 187J3X1: A small object traveling near the speed of light struck one of the three stars in the system and destroyed it through its relativistically amplified mass."

A destruição de Trisolaris foi observada pelos potentes telescópios da Terra e enfim compreenderam o que aconteceu. Em algum lugar na galáxia havia alguma civilização hostil e muito poderosa que eliminava qualquer mundo que chamasse sua atenção. O método era extremamente econômico e eficiente: disparar um projétil à velocidade da luz, um "fotóide", que ao atingir uma estrela liberaria tamanha energia cinética que faria a estrela explodir, destruindo junto os planetas à sua volta.

Este ataque com fotóide parecia ser o modus operandi das civilizações avançadas para eliminar seus alvos no universo. Era um método simples, econômico, limpo e que deixava poucos rastros. Podia até mesmo ser confundido com um desastre natural, já que a explosão de uma estrela poderia ter causas intrínsecas à própria estrela.

A humanidade agora estava livre dos trisolarianos, mas a partir daí uma ameaça invisível paira sobre a Terra. A qualquer momento um ataque de fotóide pode atingir o Sol.

A Era Bunker

Temendo um ataque de fotóide, a humanidade precisa se preparar para o pior, bolando um plano para sobreviver à explosão do Sol. 

Neste período, Cheng Xin tem a maior surpresa de sua vida, quando os trisolarianos, antes de irem embora para sempre, permitem que Cheng Xin se comunique remotamente com um humano que estava na nave deles: Yun Tianming.

Yun foi ninguém menos que o cara cujo cérebro foi enviado para o espaço séculos atrás. Na ocasião, aquele projeto não deu certo e a cápsula contendo o cérebro vagou desgovernada pelo cosmo. Acontece que os trisolarianos conseguiram resgatar a cápsula, mas eles trataram bem o humano. Clonaram suas células e deram um corpo novo àquele cérebro e Yun ficou vivendo na nave trisolariana em uma área adaptada para ele, onde ele podia até cultivar vegetais para se alimentar. 

Yun parecia bem saudável e feliz. Sua conversa com Cheng Xin deveria ser apenas uma despedida e os trisolarianos monitoravam tudo para que ele não contasse nenhum segredo. Astutamente, ele resolveu contar uns contos de fada para Cheng Xin e nestas histórias escondeu metáforas sobre a tecnologia trisolariana.

Depois, quando as histórias de Yun foram decifradas, novas pesquisas tecnológicas tiveram início. Assim começa a Era Bunker. A ideia mais viável era a de construir cidades espaciais na órbita de Júpiter. Ali seria possível usar Júpiter como um escudo caso o Sol seja destruído e uma onda de plasma se espalhe pelo sistema solar. 

Além do projeto do bunker espacial, também se cogitou algo ainda mais difícil: transformar o sistema solar numa espécie de buraco negro, reduzindo a velocidade da luz à sua volta. Desta forma, seria como enviar uma mensagem de paz ao universo: "estamos presos aqui dentro desde buraco negro de onde nunca poderemos sair, logo, somos inofensivos ao mundo exterior". Assim nenhuma civilização se interessaria em atacar o sistema solar.

Cientistas chegaram até a produzir um minúsculo buraco negro a fim de fazer experimentos, mas o projeto foi abandonado. Conta-se que o cientista responsável pelo projeto foi engolido pelo buraco negro e, uma vez que ele havia atravessado o horizonte de eventos, suspeitava-se que ele se encontrava em um estado de queda infinita, ainda vivo inclusive.

Aliás, li esta parte antes de dormir e cheguei a sonhar com esta ideia de uma pessoa ficar caindo em loop dentro de um buraco negro. É um conceito fascinante.

"Cheng Xin stared at the blue phosphorescence far away in the darkness. She now knew that there was a man there, a man who was falling forever, at the event horizon where time stopped. Such a man was still alive when viewed from this world, but had already died in his own world.... So many strange fates, and so many unimaginable lives..."

O projeto das cidades espaciais deu certo e a maior parte da humanidade foi morar nelas. Apenas uma minoria decidiu estoicamente permanecer na Terra e aguardar a sua destruição. Só que o ataque da floresta sombria viria após cerca de um século e não por meio de fotóides, mas algo bem mais bizarro.

"In total, behind Jupiter, Saturn, Uranus, and Neptune, there were sixty-four large space cities and nearly a hundred medium and small cities, plus numerous space stations. Nine hundred million people lived in the Bunker World... The Earth was now barely inhabited. Only about five million people remained there. These were individuals who did not wish to leave their home and who had no fear of the prospect of Death at any moment... Forests and grasslands covered every continent, and those who stayed behind had to carry guns to defend against wild beasts when they went out, but it was rumored that they lived like kings, each with a vast estate and personal forests and lakes."

A bomba dimensional e os últimos sobreviventes da humanidade

Enquanto isto, na nave Gravity, que vagava longe da Terra, aconteceu um evento curioso. Eles encontraram no espaço uma espécie de bolha tetradimensional. Era uma região onde tinham acesso à quarta dimensão. Alguns astronautas se aventuraram lá dentro em uma experiência psicodélica e marcante. A impressão de espaço na quarta dimensão é tão ampla que, ao voltarem para a terceira dimensão, passaram a sentir uma espécie de claustrofobia. Mesmo o vazio do abismo cósmico tridimensional parecia um confinamento comparado à quarta dimensão.

"When an object was revealed at all levels in four-dimensional space, it created in the viewer a vertigo-inducing sensation of depth, like a set of Russian nesting dolls that went on without end... The experience of high-dimensional spatial sense was a spiritual baptism. In one moment, concepts like freedom, openness, profundity, and infinity all gained brand-new meanings."

Dentro desta bolha dimensional, eles encontraram um objeto, um anel de quatro dimensões. Era alguma espécie de supercomputador que continha as informações de um mundo extinto. Ele se comunicou com os humanos dizendo que era nada mais que uma tumba. Usando uma linguagem figurada, este anel deu a entender que havia uma civilização ou talvez vários mundos que foram destruídos e agora só restavam estas pequenas bolhas, pequenos grãos tetradimensionais no universo.

Isto foi uma prévia do que estava por vir, da mais terrível arma cósmica mencionada em toda a trilogia, uma arma capaz de destruir dimensões!

Cixin Liu narra vagamente sobre uma civilização avançadíssima em algum mundo distante e vemos um personagem que tem a função, um tanto burocrática até, de monitorar o espaço em busca de sistemas potencialmente perigosos. Esta parece ser uma prática comum no universo, pois em toda parte acontecem ataques de fotóides, civilizações destruindo civilizações.

Este monitor observa a destruição de Trisolaris, mas ficou intrigado ao perceber que o sistema vizinho também dava sinais de ser habitado por uma civilização potencialmente perigosa. Percebendo a configuração planetária, ele entendeu que um ataque de fotóide não seria o suficiente, pois os planetas gasosos mais distantes poderiam abrigar os sobreviventes. Então ele resolveu lançar um ataque com um projétil mais poderoso. 

Quando este projétil alcança o sistema solar, é detectado pelos humanos e uma equipe se aproxima para investigar. Surpreendentemente, não se trata de um fotóide e nem mesmo parece hostil. Ele está estático no meio do nada e sua aparência se assemelha a uma pequena folha de papel em branco.

A equipe resolve estudar o objeto, até que percebem que ele está começando a operar algum fenômeno, ele "derrete" tudo o que passa por ele. Este processo vai crescendo exponencialmente e eles só têm tempo de alertar as bases em Júpiter, antes de serem devorados pelo objeto. Trata-se de uma arma dimensional, que reduz o mundo tridimensional a duas dimensões.

Rapidamente esta coisa vai se expandindo em todo o sistema solar, transformando o Sol, os planetas, tudo em objetos bidimensionais. É uma arma bem peculiar e incomum na ficção científica e cujos efeitos são memoráveis. O sistema solar inteiro se transforma em uma chapa plana, bidimensional, tão bidimensional que sequer tem borda ou espessura. 

“General, you once said, ‘I don’t think it’s anything. There’s nothing inside.’ You were right. That slip really wasn’t anything, and contained nothing. It’s only space, just like the space around us, which isn’t anything and contains nothing. But there’s a difference: It’s two-dimensional. It’s not a block, but a slice. A slice without thickness.”

De lado é impossível ser vista. De cima parece uma gigantesca pintura de objetos planos. A imagem, porém é apenas o resídio luminoso dos objetos. Passado um tempo, aquele mundo se tornou totalmente invisível para observadores tridimensionais. A humanidade estava aniquilada.

“Just as four-dimensional space collapses into three dimensions, three-dimensional space can collapse into two dimensions, with one dimension folding and curling into the quantum realm. The area of that slice of two-dimensional space—it only has area—will rapidly expand, causing more space to collapse.... We’re now in space that is falling toward two dimensions, and ultimately, the entire Solar System will follow. In other words, the Solar System will turn into a painting with no thickness.”

Pouquíssimos humanos sobreviveram. Cheng Xin e sua amiga AA estavam na nave Halo que era capaz de viajar à velocidade da luz. Assim conseguiram afastar-se do alcançe da bomba dimensional. Ainda tiveram um breve momento para visitar Plutão, que aparentemente não estava na área de expansão prevista para a bomba.

Em Plutão a humanidade havia construído um museu, ou melhor, uma tumba com os registros mais importantes da história e cultura gravados em placas de metal, algo que poderia durar por milhões de anos. Para surpresa de Cheng Xin, ela encontra Luo Ji vivendo ali. Ele já tem mais de 200 anos. Este foi o último encontro dos dois únicos Swordholders da humanidade.

Luo Ji quis permanecer seus últimos dias em Plutão, enquanto Cheng Xin e AA partiram rumo às estrelas, mais especificamente, até a estrela que Yun Tianming havia simbolicamente dado de presente para ela. 

Para sua surpresa, havia um planeta com condições bem parecidas com a Terra, que ela batizou de Planeta Azul, e para maior surpresa, ela encontrou outro humano ali, Guan Yifan, um dos sobreviventes da nave Gravity.

Ele explica como a Gravity conseguiu colonizar quatro planetas, permitindo um recomeço para a humanidade. No fim das contas, esta nave funcionou como um backup para a espécie humana e agora eles poderiam dar continuidade à civilização longe do sistema solar. Agora cientes da floresta sombria, tomariam o cuidado de permanecer discretos no universo, evitando qualquer contato com outros mundos.

“How many worlds are there?” “Four. And two more are being opened up for settlement.” “Where are all these worlds?” Guan Yifan gently deposited AA on the ground and laughed. “A word of advice: In the future, no matter who you meet—human or otherwise—don’t ask for the location of their worlds. That’s a basic bit of manners in the cosmos—like how it’s impolite to ask a lady’s age...."

Na conversa de Cheng Xin com Yifan, há um breve trecho que mostra como Cixin Liu consegue impregnar sua história com questões científicas reais e muitas vezes de uma forma bem casual.

Yifan explica que o sistema solar se tornou invisível por estar bidimensional e não ter espessura, mas que ainda havia uma forma de detectar sua presença, pois ele emitia gravidade. Então ele ri e diz: "Parece matéria escura, não é?". 

Eles mudam de assunto sem se aprofundar neste interessantíssimo detalhe, mas ficou aí a insinuação acerca de um tema que tem ocupado a mente dos astrofísicos ultimamente. Até hoje não se sabe ao certo no que consiste a matéria escura. Sua presença é deduzida pelo fato de que a massa das estrelas não é suficiente para explicar a força gravitacional presente no universo. Existe algo mais, algo invisível que parece constituir a massa não observável.

Uma das hipóteses é que esta força gravitacional extra do universo venha de outras dimensões que não conseguimos observar. Nesta breve fala de Yifan, o autor dá uma acariciada em duas possíveis teorias, a teoria das cordas e a teoria das branas, que sugerem exatamente a influência de outras dimensões na força gravitacional. O autor faz isto sem entrar em complicadas explicações científicas. Apenas sugere a ideia que será captada como um fan service pelos leitores que conhecem o conceito.

O reset cósmico

Chegamos aqui ao grande clímax de toda a trilogia, então esteja avisado de que tudo o que vem adiante é um importante spoiler.

Já perto do final do terceiro livro a coisa toda escala rapidamente para um nível grandioso e a trama passa a envolver o destino de todo o universo. Existem seres que intencionalmente estão destruindo as dimensões do universo, reduzindo-o a dimensões cada vez mais inferiores, com o fim de literalmente resetar a existência.

Eles são chamados de Resetters ou Zero-Homers. Não se sabe ao certo quem são ou quais suas verdadeiras motivações. Uma das hipóteses é que eles queiram restaurar o universo à sua forma gloriosa.

Em um passado remotíssimo, o universo era extremamente rico e complexo, chegando a ter até dez dimensões. Estas dimensões foram gradativamente destruídas por causa da "poluição" cósmica causada pelas bombas dimensionais e tecnologias de viagem espacial que deixavam fendas no tecido do espaço, de modo que o universo foi simplificando, como uma floresta sofrendo a desertificação. Para nós, o universo parece um mundo gigantesco e abundante, mas ele é apenas um deserto comparado ao que já foi em outras eras.

A princípio, a decadência das dimensões não foi algo projetado para acontecer. Acontece que, se o universo é uma floresta sombria, então as civilizações avançadas estão sempre tentando eliminar umas às outras numa guerra sem fim e usando os meios mais poderosos, as próprias leis fundamentais do universo. 

"The physicists and cosmologists of the new world are focused on trying to recover the original appearance of the universe before the wars more than ten billion years ago. They’ve already constructed a fairly clear theoretical model describing the pre-war universe. That was a really lovely time, when the universe itself was a Garden of Eden. Of course, the beauty could only be described mathematically. We can’t picture it: Our brains don’t have enough dimensions.”

Assim, as bombas dimensionais foram degradando o universo de modo que no momento ele se encontra na terceira dimensão, mas aos poucos sendo reduzido à segunda dimensão. Os Resetters então, percebendo que não havia como restaurar as dimensões superiores, resolveram seguir pelo caminho contrário, destruindo o que resta das dimensões até chegar à dimensão zero. A partir daí, o universo não teria outro caminho senão reiniciar, trazendo de volta as dez dimensões.

Este conceito já foi explorado há milênios no gnosticismo, na ideia de que existem vários éons, como camadas cada vez mais simples e decaídas, distanciando-se do Pleroma, que era a fonte original. 

“They’re also called Resetters. Maybe they’re a group of intelligent individuals, or a civilization, or a group of civilizations. We don’t know exactly who they are, but we’ve confirmed their existence. The Zero-Homers want to reset the universe and return it to the Garden of Eden... By moving the hour hand of the clock past twelve. Take spatial dimensions as an example. It’s practically impossible to drag a universe in lower dimensions back into higher dimensions, so maybe it’s better to work forward in the other direction. If the universe can be lowered into zero dimensions and then beyond, the clock might be reset and everything returned to the beginning. The universe might possess ten macroscopic dimensions again.”

Cheng Xin é informada que Yun Tianming foi liberado pelos trisolarianos e veio até o Planeta Azul. Empolgada, ela parte na nave com Guan Yifan, mas são capturados por uma fenda no espaço. Dentro desta fenda o tempo e mesmo a velocidade da luz são intensamente desacelerados. Quando enfim eles conseguem sair, se passaram 18 milhões de anos no lado de fora! 

A dupla encontra o Planeta Azul desértico, sem qualquer traço de civilização. Afinal, 18 milhões de anos se passaram, tempo suficiente para uma civilização florescer, desaparecer e ter todos seus rastros apagados. Só que descobriram também que Yun Tianming deixou uma mensagem para ela gravada profundamente nas rochas, dizendo que ele teve uma vida feliz com AA. Também deixou um presente para ela: um micro-universo construído com tecnologia trisolariana.

O universo estava rapidamente se deteriorando, e era previsto que em algum momento ele entraria em colapso, dando início a um novo big bang. As civilizações mais avançadas já estavam se preparando para este evento, refugiando-se em bolhas de micro-universos. Depois disto poderiam retornar e habitar o universo renascido e que viria em todo seu esplendor.

Assim, Cheng Xin e Guan Yifan entraram nesta bolha, vivendo lá por um tempo e também contando com a presença de ninguém menos que a Sophon, que foi deixada de presente para gerenciar o micro-universo.

Acontece que Sophon começou a captar sinais vindos do macro-universo, sinais de milhões de civilizações que ainda estavam lá fora. Elas convocavam os refugiados nos micro-universos a retornarem, pois a soma total de massa usada na composição destas bolhas era crucial para conduzir o colapso gravitacional no universo. Caso não fizessem isto, em vez de colapsar o universo seguiria se expandindo e diluindo numa lenta morte, sem direito a renascer.

"A notice from the Returners: The total mass of our universe has decreased to below the critical threshold. The universe will turn from being closed to open, and die a slow death in perpetual expansion. All lives and all memories will also die. Please return the mass you have taken away and send only memories to the new universe."

Assim Cheng Xin decide voltar, retornando ao universo, devolvendo a massa que foi emprestada dele. Ela e todas as outras civilizações ainda existentes, inclusive trisolarianos e humanos, agora aguardariam o colapso e renascimento do universo.

As bolhas continuariam a existir, mas totalmente esvaziadas de massa. A única coisa que cada refugiado deixaria dentro da bolha seria algum registro com as memórias de sua civilização. Assim, depois que o universo renascesse, novas civilizações surgiriam e ocasionalmente poderiam encontrar estas memórias, tomando conhecimento do universo que existiu antes deles.

Otimismo no fim de tudo

No fim dos tempos, algo parece mudar na forma como as civilizações cósmicas se comportam. Depois de bilhões de anos de guerras, destruindo o próprio universo, empobrecendo-o, reduzindo suas dimensões, as civilizações restantes acabam se unindo em um propósito comum: a busca pela renovação do universo.

Já não há mais floresta sombria, pois agora estes povos enviam uma mensagem para todo o universo, mais ainda, para os universos-bolha que existem além dele, uma mensagem de unificação, pedindo que todos retornem e se unam nesta congregação que aguarda o colapso e renascimento do cosmo.

Existe algo de "cristão" no fim da história, pois Cixin Liu apresenta uma espécie de apocalipse cientificamente embasado, um evento de destruição do mundo decadente que trará um novo mundo maravilhoso e paradisíaco, o mundo decadimensional. 

O fato das civilizações deixarem suas memórias salvas nas bolhas para que sejam encontradas futuramente pode oferecer uma lição para as civilizações que irão surgir no novo universo, uma lição sobre a destruição causada pelas guerras e a necessidade de uma convivência mais harmoniosa dos povos. Aprendendo com as lições do passado, o novo universo tem tudo para ser um mundo utópico, celestial e, uma vez que não cometerão o erro de destruir as dez dimensões, este universo pode superar a entropia, alcançando a eternidade. O fim da morte.

Notas:




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