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Lembranças da inflação dos anos 80, URV e Real

Notas de 1 Real

Uma das lembranças de infância que tenho de minhas rasas percepções do ambiente político e econômico do Brasil nos anos 80 e 90 é a palavra "inflação". 

De fato, eu entendia a inflação na prática, pois, sempre que eu ia na bodega da esquina comprar pão, o preço havia aumentado alguns centavos. Era uma situação de instabilidade constante. Ao longo do século XX a moeda brasileira mudou de nome várias vezes e eu cheguei a brincar de colecionar algumas notas antigas, pois teve Cruzeiro, Cruzado, Cruzeiro Novo, Cruzeiro Real, etc.

Beeem antes destas moedas, a que ficou gravada na memória popular foi a primeirona, que durou por séculos, os Réis (nascida ainda no período colonial e que foi até 1942). Era comum ouvir os velhos chamarem dinheiro de "mil réis" ou "merréis". Inclusive tem aquela divertida música de Luiz Gonzaga:

Eu lhe dei vinte mil réis
Pra pagar três e trezentos
Você tem que me voltar
Dezesseis e setecentos.

O Sarney, primeiro presidente após a redemocratização, não soube resolver esse problemão. Ele tentou congelar preços e inventou os tais "fiscais do Sarney" que ficavam denunciando mercados que alteravam os preços. O Collor adotou o desastrado plano de confiscar as poupanças¹. Naqueles anos surgiu uma musiquinha popular que expressava a realidade da hiperinflação:

Jingle bell, jingle bell
Acabou o papel
Não faz mal, não faz mal
Limpa com jornal

O jornal tá caro
Caro pra xuxu
Como é que eu vou fazer
Pra limpar o meu bumbum?²

Medida Provisória do URV

Então veio o Plano Real, idealizado ainda no governo de Itamar. Há exatos 29 anos, em 27 de Fevereiro de 1994, ele assinou a Medida Provisória instituindo a Unidade Real de Valor (URV), que faria a transição para uma nova moeda, o Real.

Também tenho lembranças adolescentes deste período. Eu costumava ir uma vez por semana a uma banca de revistas na praça, gastar minhas moedinhas (que eu poupava voltando a pé pra casa em vez de pegar ônibus) com gibis. Era a época do Homem-Aranha 2099, uma maravilhosa versão alternativa do Aranha em um universo cyberpunk.

Homem Aranha 2099 1(1993)

Toda semana, quando eu comprava alguma revista na banca, o velho da banca pegava uma folha com uma tabela impressa. Na capa da revista não havia um preço em Cruzeiros, mas um código que representava o preço a ser conferido na tabela de conversão de Cruzeiros para URV. 

Foi a maneira das editoras resolverem o problema da constante variação de preço do URV. Assim não precisavam reimprimir as capas ou fazer gambiarras com etiquetas para corrigir o preço semanalmente. 

Esta variação era intencional, pois o objetivo dessa fase de transição era fazer um ajuste fino do mercado até estabilizar a moeda, o que de fato funcionou, já que o Real continua em voga trinta anos depois. Obviamente a moeda sofreu ao longo das décadas com a inevitável inflação (o Real chegou a valer 1 Dólar, hoje cada Dólar equivale a cerca de 5 Reais), mas nada que se compare à hiperinflação dos anos 80-90. O Real é, de fato, uma moeda estável.

A verdade é que não existe economia alguma no mundo que não experimente inflação. A inflação é um processo natural no ciclo de vida dos mercados e é simplesmente inevitável. Qualquer medida autoritária que tente barrar a inflação por decretos arbitrários resulta em crise econômica. O máximo que os governos podem fazer é tentar minimizar o avanço da inflação, mantendo-a em uma taxa segura. 

Os países que têm conseguido acalmar o faminto dragão da inflação costumam manter uma taxa entre 3% e 6% e o Brasil está nesta seleta lista de países que domaram o monstro. Já estamos vacinados, após décadas tentando de tudo para lidar com o problema. Ao ver países vivendo hiperinflação, o Brasil pode dizer "been there done that". A Argentina, por exemplo, está com a bizarra taxa de inflação de 98%! 

Notas:

1: A política está longe de ser uma ciência exata e ela é antes de tudo humana. O mesmo vale para a economia e o chamado mercado financeiro, bem como os hábitos financeiros de toda a população, sejam pobres, ricos, letrados ou iletrados. Em tudo isto existe o fator humano, psicológico.

O confisco da poupança no governo Collor, por exemplo, teve uma marcante consequência psicológica na educação financeira daquela geração. Aquilo criou uma sensação de insegurança e incerteza com relação a poupar dinheiro. "Pra que vou guardar dinheiro se a qualquer momento um político pode mexer nele e até barrar meu acesso a meu próprio dinheiro?"

É provável então que essa simples medida desastrada do confisco da poupança tenha gerado um efeito dominó de retração da economia por anos ou décadas, pois só recentemente tem se normalizado na mentalidade brasileira a ideia de poupar, investir, etc.

Quando a população aplica seu dinheiro nos bancos, sem saber está aquecendo a economia, pois os bancos ganham mais capacidade de fazer empréstimos, financiando empresas e indivíduos que podem usar os empréstimos para se qualificar, estudar, ou simplesmente fazer compras, o que movimenta a economia. 

Ao contrário, se as pessoas aplicam menos dinheiro nos bancos, também os bancos dificultam mais o crédito, há menos financiamentos de casa, carro, empreendimentos, etc. A economia desacelera.

Obviamente a indiferença do brasileiro quanto à poupança se deve principalmente ao fato de que no século XX não havia uma cultura de educação financeira e as décadas de inflação desestimulavam o hábito de guardar dinheiro, já que ele rapidamente desvalorizava. O baque do confisco veio para piorar ainda mais a situação.

A propósito, tenho a curiosa lembrança de um caso da novela Tieta, novela que foi um sucesso enorme nos anos 90, em que a Tieta, que enriqueceu na "cidade grande", enviava dinheiro para seus pobres pais no interior e o velho, com uma mentalidade retrógrada, guardava as notas literalmente debaixo do colchão.

Os anos se passaram e Tieta ficou intrigada porque os pais continuavam vivendo de forma miserável, então o velho mostrou o colchão cheio de notas. Acontece que aquelas notas já não valiam nada porque a moeda mudou. Se ele tivesse guardado no banco, o dinheiro ainda teria valor.

2: Esta é a versão mais corretinha da música. A mais famosa, porém, dizia "o que é que eu faço/ pra limpar meu cu".

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