Your Eyes Tell (Kimi no me ga toikaketeiru, 2020) é uma história de duas horas com várias reviravoltas, até demais. A fórmula do casal é bem clichê, mas funciona: o rapaz, Rui, é um cara com um passado sombrio e que vive atormentado pela culpa, mas ele conhece uma garota, Akari, que é cheia de vida e simpatia e que leva ele para a luz.
Akari ficou cega após um acidente (que - spoiler - foi indiretamente causado por Rui, sem que eles soubessem), mas vive conformada e se adaptou a esta condição. O casal, portanto, representa bem a filosofia japonesa do kintsugi¹, a arte de aceitar as imperfeições da vida e adaptar-se a elas, até mesmo embelezar tais imperfeições com uma melhoria do caráter.
Rui é quebrado por dentro, com seu passado problemático e a culpa que o atormenta como um pecado mortal. Akari é quebrada por fora, com a cegueira que torna sua vida mais difícil. Sua personalidade alegre e otimista, porém, é como o remendo de ouro nos vasos kintsugi, e também ela irá remendar as rachaduras psicológicas do Rui.
Uma cena bem fofa é quando Rui ouve o barulho da bengala de Akari batendo no chão e é tomado por um sentimento sublime. O simples fato de ouvir a bengala o faz perceber que a garota está chegando e que a presença dela lhe traz este sentimento de paz e contentamento. Um momento trivial da vida mostra como Akari tem o poder de trazer luz à vida obscura de Rui.
Existe outro elemento bem japonês na história que é a valorização do trabalho. A cultura japonesa é em boa parte centrada no trabalho, algo que chega até a assustar muitos gaijins, estrangeiros não acostumados a uma cultura workaholic. Brasileiros que o digam².
Rui e Akari têm seus problemas e seu relacionamento é cheio de idas e vindas, mas em meio a tudo isto eles nunca param de se dedicar ao trabalho e até se tornam ainda mais focados no trabalho nos momentos de crise no relacionamento. O trabalho é o companheiro fiel do japonês.
É curioso também a maneira como a cultura japonesa combinou alguns valores conservadores, como a família tradicional, o casamento monogâmico, e valores modernos, como o trabalho feminino. No ocidente, a visão mais padrão de uma família conservadora envolve o pai de família trabalhador e a dona de casa, que é trabalhadora, mas doméstica.
As demandas da modernidade modificaram este formato de família e já não é tão comum existir famílias em que só o homem trabalha fora de casa, "levando o sustento pra casa", enquanto a mulher se encarrega da casa e dos filhos. Agora a modernidade dobrou a carga sobre as mulheres, pois elas continuam sendo domésticas em hora extra, ao mesmo tempo em que saem pra trabalhar.
O fato é que este modelo pai de família e dona de casa é visto como o ideal na parcela mais conservadora da população ocidental. É o modelo cristão. No Japão também existe o conceito tradicional de família com tal distribuição de papéis, porém não parece tão idealizado quanto no ocidente, pois o valor ao trabalho fala mais alto e as famílias não veem problema algum no fato de tanto o pai quanto a mãe saírem pra trabalhar e trabalhar muito.
Em certo momento, Rui chega a dizer que quer sustentar Akari de modo que ela não precise sofrer tanto para conseguir emprego (afinal o mercado de trabalho é bem mais difícil para cegos), mas ela em prantos diz que isto só a faria sofrer mais ainda.
Está implícito que ela teria seu orgulho ferido, pois o japonês que se preze, seja homem ou mulher, tem um forte sentimento de orgulho e conseguir se manter pelo esforço próprio é muito importante para a satisfação deste orgulho. Akari se sentiria humilhada em ser sustentada, ainda mais porque seria uma espécie de caridade da parte de Rui, apiedado de sua deficiência visual.
Falando em cultura japonesa, é interessante a presença do cristianismo no plano de fundo da história, pois Rui costuma visitar uma velha freira do orfanato em que ele foi criado. Ela não chega a fazer sermões evangelísticos, mas o aconselha num assunto que é bem conhecido da filosofia cristã: a culpa.
Rui impõe a si mesmo um purgatório, tentando viver isolado. Mesmo depois que conhece Akari, ele se afasta dela ao descobrir que teve uma culpa indireta na causa de sua cegueira. Além disso, suas antigas relações com a máfia põem em risco a segurança de Akari. Ele resolve se sacrificar (sasageru, uma palavra inclusive usada pela freira ao aconselhá-lo) afastando-se dela.
Ela, porém, não desiste dele e o procura para salvá-lo com o acolhimento. E assim voltamos ao kintsugi: a redenção de Rui está na pura aceitação de seu passado e, a partir daí, tocar a vida pra frente. Akari é o remendo de ouro nas rachaduras de Rui.
Notas:
2: Brasileiros gostam de trabalhar, na verdade, e admiram o esforço, a pessoa que consegue alcançar seus objetivos através da dedicação, só que este sentimento é mais platônico do que prático, porque na prática, o comum na cultura brasileira é a valorização do pouco esforço, de por a diversão acima da obrigação, de recorrer à malandragem, ao jeitinho. O herói Macunaíma é um tipo emblemático desta mentalidade nacional.
Eu diria que o brasileiro médio pode ser comparado ao Shikamaru, de Naruto. Shikamaru é um misto de preguiça e esperteza. Ele prefere alcançar seus meios usando a criatividade em vez do esforço, ou seja, o jeitinho. Olhando desta forma, o jeitinho brasileiro é uma virtude, mas definitivamente contrasta com a cultura japonesa de fazer as coisas sem atalhos e buscando o máximo esforço.
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