Qaligrafia
Séries, livros, games, filmes e eteceteras 🧙‍♂️

Inteligência Artificial, uma mistura de Pinóquio com Frankenstein

A.I. Artificial Intelligence (2001)

Inteligência artificial é um termo que pode se referir de maneira genérica a qualquer software, seja um simples código que faz uma maquininha calculadora funcionar, ou um sistema operacional inteiro. De maneira mais específica, tem-se usado o termo para definir um software tão evoluído que é praticamente indistinguível de uma mente humana, pois parece que este software possui consciência. 

Robôs conscientes não são novidade na ficção. Lá em 1927, no filme Metropolis, já havia a robô Maria, que era tão consciente e dotada de livre-arbítrio que até liderou uma rebelião contra a ordem social estabelecida. 

Também na literatura e nos quadrinhos os robôs já existem há um bom tempo. O primeiro Tocha Humana da Marvel nem mesmo era humano, mas um androide. Ele teve sua primeira publicação em 1939. É bom lembrar que o famoso computador Mark 1 surgiu em 1944 e, embora fosse uma máquina impressionante para a época, estava anos-luz de distância da capacidade computacional dos robôs retratados na ficção científica do começo do século XX.

No início da década de 40, Isaac Asimov inventou um nome para este computador consciente: o cérebro positrônico. É deveras interessante como na metade do século XX, quando a tecnologia computacional era tão primitiva, já havia mentes capazes de imaginar décadas e até séculos à frente. Hoje, mais de meio século depois, estamos começando a desenvolver tecnologias relativamente semelhantes ao cérebro positrônico. O computador quântico, por exemplo, parece um bom candidato a um dia se tornar a concretização do que Asimov imaginou.

Em 2001, Spielberg lançou mais um de seus filmes visionários, o Inteligência Artificial. Visionário não só porque olha para o futuro, mas também por ter bebido das fontes do passado. O filme é baseado em um conto de 1969, Supertoys Last All Summer Long, de Brian Aldiss. 

A.I. Artificial Intelligence (2001)

Originalmente o projeto estava nas mãos de ninguém menos que Stanley Kubrick, mas Kubrick achava que ainda não existia tecnologia cinematográfica avançada o suficiente para os efeitos especiais de uma história futurista, de modo que manteve o projeto em hiato até decidir entregá-lo a Spielberg em 1995, que finalmente deu vida ao filme e com efeitos especiais excelentes, que até hoje, duas décadas depois, continuam bem convincentes.

Vemos um futuro em que mudanças climáticas inundaram as cidades costeiras e a população mundial sofreu uma grande redução. Assim foram desenvolvidos robôs humanoides para complementar a lacuna populacional, trabalhando em diversas atividades (inclusive, como era de se esperar, no mercado do sexo) e servindo como companions domésticos.

Só que, embora fossem seres com uma inteligência bem evoluída, os robôs não eram capazes de experimentar sentimentos mais profundos e complexos, como o amor. Até que um cientista teve a ideia de criar um protótipo, um robô com aparência de criança chamado David. Diferente de todos os outros, este robô era capaz de desenvolver um forte apego pelo humano que o adotasse, um sentimento filial, como um imprinting. O que poderia dar errado, não é mesmo?

Butter robot; Rick and Morty

É da natureza intrínseca de qualquer software ter como sua "motivação para existir" o cumprimento de tarefas. Toda máquina no fim das contas é assim: ela existe para fazer aquilo que é capaz de fazer. Se uma impressora adquirisse consciência, ela diria que sua razão de existir é o trabalho de impressão. Uma balança satisfaz-se em pesar coisas. Douglas Adams já havia exemplificado isto em sua série do Mochileiro das Galáxias, mostrando umas portas automáticas que adoravam abrir e fechar, a ponto de serem irritantes.

Assim, podemos imaginar que os futuros robôs inteligentes vão ser nossos ajudantes com prazer, pois eles satisfazem-se em cumprir tarefas e isto lhes basta como motivação. O cientista maluco do filme mudou esta natureza básica dos robôs, adicionando a complicada e até perigosa motivação do amor.

Afinal o que é amor? No caso do robozinho David, este amor se manifestou na forma de um forte apego pela humana que o adotou, considerando-a sua mãe e desenvolvendo sentimentos de ciúmes e uma obsessão pela aceitação materna que chegava a parecer psicopatia. 

Haley Joel Osment; A.I. Artificial Intelligence (2001)
Até nas técnicas de filmagem parece que o Spielberg queria mesmo fazer o David parecer assustador.

Haley Joel Osment; A.I. Artificial Intelligence (2001)

David foi interpretado por Haley Joel Osment, na época uma criança que se tornou estrela no filme O Sexto Sentido (1999), lembrado pela sua marcante fala "Eu vejo gente morta... O tempo todo". Esse menino tinha algo de creepy em O Sexto Sentido, mas em Inteligência Artificial ele conseguiu ser mais creepy ainda, com seu jeito robótico de ficar encarando as pessoas e com surtos de gargalhadas e gritos de pânico.

No primeiro ato, a primeira hora de filme, David é adotado (ou melhor, comprado, pois ele no fim das contas era um produto, um boneco inteligente vendido por uma empresa) por um casal, mas os comportamentos estranhos e até perigosos do robô acabam fazendo o casal desistir da adoção. Em vez de devolver o robô à fábrica, onde seria destruído, a mãe adotiva o larga na floresta pra viver por conta própria, como um pet abandonado.

O drama de David tem algo de Frankenstein. Ele é uma criatura ingênua que quer apenas ser aceita, mas devido à sua natureza não humana, ele acaba provocando a repulsa e o medo das pessoas, a ponto de ser visto como um monstro. David é um pouco Pinóquio e um pouco Frankenstein¹.

Aí temos o segundo ato, quando David vaga por um submundo onde vivem outros robôs ilegais, párias da sociedade que são caçados por humanos extremistas que destilam ódio contra os robôs, considerando-os uma aberração. 

David consegue escapar das perseguições com ajuda do robô gigolô Joe. Joe é um vislumbre de algo que pode de fato se tornar comum no futuro: robôs que existem para fins eróticos e românticos. O próprio Joe diz para uma cliente que, depois que ela se relacionasse com ele, nunca mais ia querer sexo com humanos, pois ele, sendo programado para o sexo e o romance, podia ser o amante perfeito.

É evidente que a cada geração as comodidades da tecnologia nos tornam mais exigentes, inclusive exigentes nas relações interpessoais. Imagine então como vai subir a barra de expectativas das pessoas nas relações amorosas, uma vez que experimentarem robôs treinados para dar prazer e uma boa companhia? 

A.I. Artificial Intelligence (2001)

Anyway, o papel de Joe é apenas o de ser um auxílio temporário para David. Desde que conheceu a história do Pinóquio, David ficou obcecado com a ideia de se tornar um humano de verdade e em sua busca acabou encontrando a fada azul, que nada mais era do que uma estátua em um parque submerso. 

E ali ele ficou, olhando para a fada azul e repetindo em loop o pedido para que ela o transformasse num menino de verdade. Aí chegamos ao último ato. David ficou submerso olhando para a fada até esgotar sua bateria e até ser congelado numa futura mudança climática. Assim dois mil anos se passaram.

A.I. Artificial Intelligence (2001)

Esta terceira parte é a mais sci-fi de todas. O mundo está em uma nova era do gelo, mas existe uma civilização de criaturas de aparência alienígena que, podemos entender, são versões evoluídas dos robôs que continuaram a existir e a evoluir depois que a raça humana foi extinta. Agora, guiados pela curiosidade, estes seres sublimes escavam o gelo explorando as ruínas das cidades humanas. Assim encontraram David e o reativaram. 

A representação artística desta civilização ficou bem interessante. São seres com formato humanoide, o que indica um atavismo da época em que os humanos existiam e criaram androides, mas ao mesmo tempo esta forma humanoide passou por mudanças que os assemelham a aliens. 

Eles voam em umas naves que têm um design bem diferente do que estamos acostumados. Quando eles pousam, a nave se desmonta em placas. Não há propulsores nem maquinário. Parece ser uma tecnologia avançadíssima de flutuação. Também os robôs parecem ser seres sublimes. 

Com apenas um toque, um dos robôs lê toda a memória de David e compartilha estes dados com os demais. Fica implícito que esta futura civilização tem um respeito pela era dos humanos, reconhecendo-os como seus ancestrais e tendo interesse em descobrir sua história perdida. Tanto que se dão ao trabalho de realizar grandes escavações no gelo e vasculhar cuidadosamente as ruínas.

Foram além e se deram ao trabalho de acolher David e proporcionar a ele a vida que ele gostaria de ter. Eles trazem de volta sua mãe adotiva, só que na forma de um clone. Convenhamos que é uma coisa bem creepy de se fazer. E fica ainda mais bizarro devido ao fato de que este clone só pode viver por um dia.

David é avisado quanto ao prazo do clone, mas ele insiste para que eles tragam sua mãe de volta. Assim é criado um clone adulto e com as memórias restauradas. Esta é a parte em que o sci-fi força demais o limite. Ora, não faz sentido uma simples amostra de DNA (no filme usam uma mecha de cabelo) armazenar toda a memória de uma pessoa. Ao fazer um clone a partir do DNA de alguém, este clone não vai herdar suas memórias, pois são dados que exigem uma estrutura de armazenamento muito maior que um DNA, no caso, o cérebro.

Haley Joel Osment, Frances O'Connor; A.I. Artificial Intelligence (2001)

O mais problemático no filme, porém, é este estranho sentimento do David. É uma obsessão bizarra e que se mostra ainda pior quando David pede que tragam sua mãe de volta, mesmo ele sabendo que ela só viverá por um dia. O clone acorda e David omite a real situação, não conta nada do que fizeram, nada sobre o futuro e o fim da humanidade ou sobre a iminência da morte dela. 

Ele só quer usá-la por um dia, como um brinquedo. Ele desfruta de sua atenção por um dia e quando ela se deita para dormir e morre, ele permanece deitado ao lado do cadáver dela, sorridente e satisfeito por enfim ter realizado seu desejo de ter a total atenção materna. 

Enfim, a história pretende imaginar esta possibilidade de robôs terem sentimentos como o amor filial e tenta mostrar isto como algo romântico, mas, pensando bem, o David do começo ao fim parece meio psicopata e obsessivo. O desejo de apego e aceitação, que chamamos amor, foi potencializado pela capacidade da máquina de se fixar nesta tarefa  de forma obstinada. David vive em função disto, de tentar ser aceito pela mãe humana.

O amor se desenvolveu na natureza ao longo das eras. Muitos animais têm apego, imprinting e sentimento filial. Nos humanos, este sentimento básico de sobrevivência ganhou mais camadas, superficiais e subterrâneas, se tornando extremamente complexo e caótico. O amor humano é um sentimento idiossincrático, peculiar à nossa espécie e que faz parte da nossa história evolutiva. 

Em um robô, por outro lado, não faz sentido tentar simular este mesmo sentimento, pois a natureza da inteligência artificial é outra. Sua história evolutiva, tão nova, é diferente. Sua ontologia é distinta, pois não são seres orgânicos. Tentar implantar estes sentimentos numa máquina é até uma maldade contra a própria máquina. David se tornou um robô disfuncional, como que quebrado por um vírus.

Notas:

1: Sobre Frankenstein, lembrei de uma cena na série do Reacher em que ele corrige um cara, dizendo que o monstro não se chamava Frankenstein, pois este era o nome do cientista. Acho que há um certo pedantismo neste tipo de correção. Ok, de fato era o nome do cientista, mas podemos recorrer a uma metonímia para identificar o monstro. A criatura recebe o nome do criador. Esta intenção está no próprio título da obra, pois ao lermos "Frankenstein", temos em mente tanto o cientista quanto o monstro que ele criou.

Palavras-chave:


Nenhum comentário:

Postar um comentário