Qaligrafia
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Your Eyes Tell e a aceitação das rachaduras do passado

Your Eyes Tell (2020)

Your Eyes Tell (Kimi no me ga toikaketeiru, 2020) é uma história de duas horas com várias reviravoltas, até demais. A fórmula do casal é bem clichê, mas funciona: o rapaz, Rui, é um cara com um passado sombrio e que vive atormentado pela culpa, mas ele conhece uma garota, Akari, que é cheia de vida e simpatia e que leva ele para a luz.

Akari ficou cega após um acidente (que - spoiler - foi indiretamente causado por Rui, sem que eles soubessem), mas vive conformada e se adaptou a esta condição. O casal, portanto, representa bem a filosofia japonesa do kintsugi¹, a arte de aceitar as imperfeições da vida e adaptar-se a elas, até mesmo embelezar tais imperfeições com uma melhoria do caráter.

Rui é quebrado por dentro, com seu passado problemático e a culpa que o atormenta como um pecado mortal. Akari é quebrada por fora, com a cegueira que torna sua vida mais difícil. Sua personalidade alegre e otimista, porém, é como o remendo de ouro nos vasos kintsugi, e também ela irá remendar as rachaduras psicológicas do Rui.

Your Eyes Tell (2020)

Uma cena bem fofa é quando Rui ouve o barulho da bengala de Akari batendo no chão e é tomado por um sentimento sublime. O simples fato de ouvir a bengala o faz perceber que a garota está chegando e que a presença dela lhe traz este sentimento de paz e contentamento. Um momento trivial da vida mostra como Akari tem o poder de trazer luz à vida obscura de Rui.

Existe outro elemento bem japonês na história que é a valorização do trabalho. A cultura japonesa é em boa parte centrada no trabalho, algo que chega até a assustar muitos gaijins, estrangeiros não acostumados a uma cultura workaholic. Brasileiros que o digam².

Rui e Akari têm seus problemas e seu relacionamento é cheio de idas e vindas, mas em meio a tudo isto eles nunca param de se dedicar ao trabalho e até se tornam ainda mais focados no trabalho nos momentos de crise no relacionamento. O trabalho é o companheiro fiel do japonês.

É curioso também a maneira como a cultura japonesa combinou alguns valores conservadores, como a família tradicional, o casamento monogâmico, e valores modernos, como o trabalho feminino. No ocidente, a visão mais padrão de uma família conservadora envolve o pai de família trabalhador e a dona de casa, que é trabalhadora, mas doméstica. 

As demandas da modernidade modificaram este formato de família e já não é tão comum existir famílias em que só o homem trabalha fora de casa, "levando o sustento pra casa", enquanto a mulher se encarrega da casa e dos filhos. Agora a modernidade dobrou a carga sobre as mulheres, pois elas continuam sendo domésticas em hora extra, ao mesmo tempo em que saem pra trabalhar.

O fato é que este modelo pai de família e dona de casa é visto como o ideal na parcela mais conservadora da população ocidental. É o modelo cristão. No Japão também existe o conceito tradicional de família com tal distribuição de papéis, porém não parece tão idealizado quanto no ocidente, pois o valor ao trabalho fala mais alto e as famílias não veem problema algum no fato de tanto o pai quanto a mãe saírem pra trabalhar e trabalhar muito.

Em certo momento, Rui chega a dizer que quer sustentar Akari de modo que ela não precise sofrer tanto para conseguir emprego (afinal o mercado de trabalho é bem mais difícil para cegos), mas ela em prantos diz que isto só a faria sofrer mais ainda. 

Está implícito que ela teria seu orgulho ferido, pois o japonês que se preze, seja homem ou mulher, tem um forte sentimento de orgulho e conseguir se manter pelo esforço próprio é muito importante para a satisfação deste orgulho. Akari se sentiria humilhada em ser sustentada, ainda mais porque seria uma espécie de caridade da parte de Rui, apiedado de sua deficiência visual.

Falando em cultura japonesa, é interessante a presença do cristianismo no plano de fundo da história, pois Rui costuma visitar uma velha freira do orfanato em que ele foi criado. Ela não chega a fazer sermões evangelísticos, mas o aconselha num assunto que é bem conhecido da filosofia cristã: a culpa.

Rui impõe a si mesmo um purgatório, tentando viver isolado. Mesmo depois que conhece Akari, ele se afasta dela ao descobrir que teve uma culpa indireta na causa de sua cegueira. Além disso, suas antigas relações com a máfia põem em risco a segurança de Akari. Ele resolve se sacrificar (sasageru, uma palavra inclusive usada pela freira ao aconselhá-lo) afastando-se dela.

Ela, porém, não desiste dele e o procura para salvá-lo com o acolhimento. E assim voltamos ao kintsugi: a redenção de Rui está na pura aceitação de seu passado e, a partir daí, tocar a vida pra frente. Akari é o remendo de ouro nas rachaduras de Rui.

Your Eyes Tell (2020)

Notas:


2: Brasileiros gostam de trabalhar, na verdade, e admiram o esforço, a pessoa que consegue alcançar seus objetivos através da dedicação, só que este sentimento é mais platônico do que prático, porque na prática, o comum na cultura brasileira é a valorização do pouco esforço, de por a diversão acima da obrigação, de recorrer à malandragem, ao jeitinho. O herói Macunaíma é um tipo emblemático desta mentalidade nacional. 

Eu diria que o brasileiro médio pode ser comparado ao Shikamaru, de Naruto. Shikamaru é um misto de preguiça e esperteza. Ele prefere alcançar seus meios usando a criatividade em vez do esforço, ou seja, o jeitinho. Olhando desta forma, o jeitinho brasileiro é uma virtude, mas definitivamente contrasta com a cultura japonesa de fazer as coisas sem atalhos e buscando o máximo esforço.

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Culturogênese

Constantino não cristianizou Roma. Ele rendeu-se ao óbvio. Roma já era cristã na profundeza de seu povo, nas casas dos pobres, nas catacumbas, nos símbolos desenhados nos becos. Constantino reconheceu que o paganismo perdeu, ou melhor, que foi absorvido, que a antiga cultura já havia envelhecido e que algo novo se formou no coração do povo. Assim é com toda cultura. Não se impõe uma cultura a um povo ou nação. Cultura não pode ser planejada, não pode ser promovida como um projeto de governo. No fim das contas, é a vivência diária das pessoas comuns que moldará a verdadeira cultura, seja ela qual for.

(27,07,2022)

Solivagant

O mundo foge da melancolia e da solidão. São estados de espírito que apavoram as pessoas, a maioria delas. É estranho que eu não partilhe de tais temores. Estou constantemente buscando o silêncio e a solitude. A melancolia para mim é tão aconchegante, um travesseiro em que estou acostumado a repousar o rosto. Minha alma vaga neste ermo noturno onde os sentimentos são como uma brisa gelada que me refresca. As memórias tristes são como o céu de imensa escuridão, uma tela que me permite apreciar com maior nitidez as estrelas.

(27,07,2022)

O papel da humanidade na ecologia cósmica

A humanidade não é uma flor que se cheire e o que há de mais perverso neste planeta é produto humano, todavia enxergar apenas este aspecto da nossa presença na Terra é uma forma bastante simplista de entender o próprio planeta e sua natureza.

Somos tentados a entender a humanidade como a vilã do planeta, a grande inimiga da natureza, um vírus, como diria o Agente Smith. No entanto, esquecemos que não somos um invasor na Terra, antes somos produto dela, assim como todos os demais seres que aqui vivem.

A configuração da nossa biosfera é resultado da ação conjunta de todos os seus moradores, dos micróbios aos gigantes marinhos e árvores milenares. Eis que os humanos também têm o seu papel, também participam do ciclo da vida, da água, da matéria orgânica, e mais ainda, nos tornamos a espécie civilizacional e neste aspecto temos o papel mais grandioso de todo o ecossistema.

Ora, se, ou melhor, quando um dia a Terra for visitada novamente por um grande asteroide, é a civilização humana que será capaz de intervir neste evento randômico do implacável cosmo. Ao longo de seus bilhões de anos, a Terra já passou por vários eventos assim, várias catástrofes que dizimaram boa parte do planeta ou até o planeta inteiro e nenhum animal ou planta foi capaz de fazer nada para impedir. 

Eis que então a natureza criou seu campeão, os humanos, dotando-os de inteligência e engenhosidade a ponto de desenvolver a ciência, a tecnologia e meios para mitigar os danos do acaso. A longo prazo, a Terra está mais segura conosco do que sem.

E, pensando numa escala cósmica, nosso papel aqui não se resume a tecnologias de proteção contra apocalípticos meteoros. Também somos a arca de Noé do planeta. Ao nos tornamos interplanetários, também tornamos a própria Terra interplanetária. As plantas e animais que habitarão Marte terão origem na Terra. O rico banco genético do planeta poderá ser perpetuado para além daqui.

Olhando do ponto de vista terrestre, o nosso propósito último enquanto parte do ecossistema é garantir que a história biológica deste planeta não se encerre quando expirar o prazo de validade de seu globo rochoso. A Terra vive diante de uma bomba-relógio, o Sol. Mesmo que sobrevivamos aos próximos meteoros, ainda haverá o Sol a nos engolir um dia. 

Este dia, porém, está longe o suficiente para termos tempo de nos desenvolver e nos tornamos interplanetários, mais ainda, interestelares. Então, ao sair da Terra, levaremos a Terra conosco para outros mundos. Quando o nosso Sol decidir devorar os seus planetas, já estaremos bem longe daqui, já teremos sementes terráqueas espalhadas pela galáxia de modo que a natureza, aquela que nos criou, continuará se expandindo e evoluindo por eras sem fim.

Introverso

Não sou aventureiro, nem quero viver intensamente. Eu sou boring e desinteressante. Não busco fortes emoções e evito chamar atenção. Gosto de rotinas, minha vida é frugal, cultivo hábitos simples, como um bom epicurista. Não sou um iluminado que transcendeu as paixões, apenas me cansei dos desgastes do passado. Minha vida rotineira e meu comportamento apático são o olho do furacão, a calmaria que disfarça todo o caos interior do meu mundo imaginário.

(23,07,2022)


A pitoresca história de Skylar DeLeon

Skylar Preciosa DeLeon

A história já começa insólita no nome do cara: John Julius Jacobson Jr (J.J.J.Jr.). É o tipo de nome que o Stan Lee daria para algum personagem de quadrinhos.

J. J. foi ator mirim em séries de TV como Power Rangers, mas não era lá um bom ator, de modo que não firmou carreira. Aos 20 anos chegou a integrar o corpo de fuzileiros navais dos EUA, mas desertou após 15 dias. 

Acabou enveredando no mundo do crime, sendo preso após um assalto em 2002. Na prisão, como era de se esperar, seu mergulho neste mundo só se aprofundou, pois fez amizade com John Fitzgerald Kennedy (curiosamente, um gangster que tem dois presidentes no nome), membro da gangue Insane Crips.

Em 2004, após sair da prisão, Julius teve uma aventura nível Bonnie e Clyde com sua esposa Jennifer Henderson e membros da gangue. Visitaram um iate que estava à venda, rendendo o casal Jackie e Thomas Hawks. As vítimas foram amarradas em âncoras e lançadas vivas ao mar. Nunca mais foram encontradas.

Novamente preso, Julius permaneceu na prisão por mais de uma década e em 2019, aos 40 anos, mudou oficialmente de gênero, assumindo o simpático nome Skylar Preciosa DeLeon, e passou a receber terapia hormonal para feminização da aparência. 

Agora em 2022 Skylar recebeu a pena de morte que deveria ser realizada por injeção letal, mas acontece que desde 2019 a Califórnia aboliu a pena capital, de modo que Skylar escapou por pouco. A condenação, portanto, foi convertida em prisão perpétua no corredor da morte, como uma pena de morte simbólica.

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Metamorfose

Não existe o nascer de novo, 
muito menos o começar do zero. 
Nunca somos os mesmos, sempre em outro
nos tornamos, num perpétuo processo.

A mudança é a única constante
que persiste em todo universo
e consiste em transformar o antes
em depois, às vezes vice-versa.

Nada é feito do nada, todo ente
de outro ente foi também derivado.
E fadados estamos a isto, lembre-se:
para sempre metamorfosearmo-nos.

Há em nós, na matéria e consciência,
um caótico caldo de componentes.
Somos uma mistura de elementos.
Somos vento em constante movimento.

Não, não há como começar do zero,
mas há sim como renovar o velho.
Nos entulhos do passado você pode
construir novas formas, novos moldes.

(20,07,2022)   



Sobre a cura

Algumas pessoas encontram a cura para suas feridas no abraço e no acolhimento. Outras a encontram na solidão. Não existe fórmula para a cura. Não existe fórmula. O que para uns é remédio, para outros é veneno. Cada pessoa é seu próprio apotecário, encarregado de descobrir a receita para sua própria droga.

(16,07,2022)

Imudável

Não tente me mudar.
Eu sou imudável.
Não tente me salvar.
Eu sou insalvável.

(15,07,2022)

Mel Gibson é um velho badass em Blood Father

Blood Father (2016)

Blood Father (2016)

Mel Gibson tem uma carreira de altos e baixos, mas mesmo nos baixos ele faz um bom trabalho. Nos anos 90 ele foi uma mistura de galã e herói de ação, mas também enveredou pela direção, mostrando este novo talento com grandes sucessos como Braveheart (1995) e A Paixão de Cristo (2004). Foram os problemas na vida pessoal que prejudicaram sua carreira, fazendo ele sumir dos holofotes. De toda forma, continuou atuando em filmes indies, como é o caso de Blood Father (2016). E ele sempre entrega um bom trabalho.

A história envolve Link, um homem simples e com um passado trágico por causa do alcoolismo. Vive solitário em um trailer (assim como seu clássico personagem do Máquina Mortífera), até que recebe a visita de sua filha, que estava desaparecida. A garota é bem problemática, se meteu com caras da máfia e matou o namorado gangster, de modo que foi atrás do pai procurando ajuda. Claro que ela acabou levando todo o problema para a porta dele.

Agora Link vai poder se redimir por ter sido um péssimo pai, enfrentando os gangsters para proteger a filha. Ele, que já está velho e levava uma vida pacata abaixo do radar, mostrou que tinha um lado badass e perigoso. 

Mel Gibson; Blood Father (2016)
Coroa enxuto.

Mel Gibson soube envelhecer. Já não é o galã da juventude, mas continua fotogênico com sua cara enrugada e forjada pelo tempo. Fisicamente ele se tornou um brutamontes, mostrando que ainda tem o apelo visual para um personagem de ação. Na época do filme ele já estava com 60 anos.

A filha, Lydia, foi interpretada pela Erin Moriarty, uma atriz que já se destaca no curioso sobrenome, pois Moriarty era o grande antagonista de Sherlock Holmes. Ela atua bem, entrega o personagem. Também, obviamente, chama atenção pela beleza. 

Acho uma curiosa coincidência (ou talvez seja até um typecast da atriz) o fato dela pegar personagens que consistem numa garota ingênua que se torna vítima de um relacionamento abusivo. Foi assim na série da Jessica Jones (2015-2019), em que ela se tornou a vítima do controle mental de Killgrave, e mais recentemente em The Boys (2019-) ela foi a namorada de fachada do monstruoso Homelander. Em Blood Father ela inventou de sair com um grupo de gangsters, namorando o líder deles. Claro que isso não ia terminar bem.

Enfim, Blood Father é um indie despretensioso e que surpreende com uma história de redenção familiar em meio a um mundo de crime e violência.

Erin Moriarty, Mel Gibson; Blood Father (2016)

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Inteligência Artificial, uma mistura de Pinóquio com Frankenstein

A.I. Artificial Intelligence (2001)

Inteligência artificial é um termo que pode se referir de maneira genérica a qualquer software, seja um simples código que faz uma maquininha calculadora funcionar, ou um sistema operacional inteiro. De maneira mais específica, tem-se usado o termo para definir um software tão evoluído que é praticamente indistinguível de uma mente humana, pois parece que este software possui consciência. 

Robôs conscientes não são novidade na ficção. Lá em 1927, no filme Metropolis, já havia a robô Maria, que era tão consciente e dotada de livre-arbítrio que até liderou uma rebelião contra a ordem social estabelecida. 

Também na literatura e nos quadrinhos os robôs já existem há um bom tempo. O primeiro Tocha Humana da Marvel nem mesmo era humano, mas um androide. Ele teve sua primeira publicação em 1939. É bom lembrar que o famoso computador Mark 1 surgiu em 1944 e, embora fosse uma máquina impressionante para a época, estava anos-luz de distância da capacidade computacional dos robôs retratados na ficção científica do começo do século XX.

No início da década de 40, Isaac Asimov inventou um nome para este computador consciente: o cérebro positrônico. É deveras interessante como na metade do século XX, quando a tecnologia computacional era tão primitiva, já havia mentes capazes de imaginar décadas e até séculos à frente. Hoje, mais de meio século depois, estamos começando a desenvolver tecnologias relativamente semelhantes ao cérebro positrônico. O computador quântico, por exemplo, parece um bom candidato a um dia se tornar a concretização do que Asimov imaginou.

Em 2001, Spielberg lançou mais um de seus filmes visionários, o Inteligência Artificial. Visionário não só porque olha para o futuro, mas também por ter bebido das fontes do passado. O filme é baseado em um conto de 1969, Supertoys Last All Summer Long, de Brian Aldiss. 

A.I. Artificial Intelligence (2001)

Originalmente o projeto estava nas mãos de ninguém menos que Stanley Kubrick, mas Kubrick achava que ainda não existia tecnologia cinematográfica avançada o suficiente para os efeitos especiais de uma história futurista, de modo que manteve o projeto em hiato até decidir entregá-lo a Spielberg em 1995, que finalmente deu vida ao filme e com efeitos especiais excelentes, que até hoje, duas décadas depois, continuam bem convincentes.

Vemos um futuro em que mudanças climáticas inundaram as cidades costeiras e a população mundial sofreu uma grande redução. Assim foram desenvolvidos robôs humanoides para complementar a lacuna populacional, trabalhando em diversas atividades (inclusive, como era de se esperar, no mercado do sexo) e servindo como companions domésticos.

Só que, embora fossem seres com uma inteligência bem evoluída, os robôs não eram capazes de experimentar sentimentos mais profundos e complexos, como o amor. Até que um cientista teve a ideia de criar um protótipo, um robô com aparência de criança chamado David. Diferente de todos os outros, este robô era capaz de desenvolver um forte apego pelo humano que o adotasse, um sentimento filial, como um imprinting. O que poderia dar errado, não é mesmo?

Butter robot; Rick and Morty

É da natureza intrínseca de qualquer software ter como sua "motivação para existir" o cumprimento de tarefas. Toda máquina no fim das contas é assim: ela existe para fazer aquilo que é capaz de fazer. Se uma impressora adquirisse consciência, ela diria que sua razão de existir é o trabalho de impressão. Uma balança satisfaz-se em pesar coisas. Douglas Adams já havia exemplificado isto em sua série do Mochileiro das Galáxias, mostrando umas portas automáticas que adoravam abrir e fechar, a ponto de serem irritantes.

Assim, podemos imaginar que os futuros robôs inteligentes vão ser nossos ajudantes com prazer, pois eles satisfazem-se em cumprir tarefas e isto lhes basta como motivação. O cientista maluco do filme mudou esta natureza básica dos robôs, adicionando a complicada e até perigosa motivação do amor.

Afinal o que é amor? No caso do robozinho David, este amor se manifestou na forma de um forte apego pela humana que o adotou, considerando-a sua mãe e desenvolvendo sentimentos de ciúmes e uma obsessão pela aceitação materna que chegava a parecer psicopatia. 

Haley Joel Osment; A.I. Artificial Intelligence (2001)
Até nas técnicas de filmagem parece que o Spielberg queria mesmo fazer o David parecer assustador.

Haley Joel Osment; A.I. Artificial Intelligence (2001)

David foi interpretado por Haley Joel Osment, na época uma criança que se tornou estrela no filme O Sexto Sentido (1999), lembrado pela sua marcante fala "Eu vejo gente morta... O tempo todo". Esse menino tinha algo de creepy em O Sexto Sentido, mas em Inteligência Artificial ele conseguiu ser mais creepy ainda, com seu jeito robótico de ficar encarando as pessoas e com surtos de gargalhadas e gritos de pânico.

No primeiro ato, a primeira hora de filme, David é adotado (ou melhor, comprado, pois ele no fim das contas era um produto, um boneco inteligente vendido por uma empresa) por um casal, mas os comportamentos estranhos e até perigosos do robô acabam fazendo o casal desistir da adoção. Em vez de devolver o robô à fábrica, onde seria destruído, a mãe adotiva o larga na floresta pra viver por conta própria, como um pet abandonado.

O drama de David tem algo de Frankenstein. Ele é uma criatura ingênua que quer apenas ser aceita, mas devido à sua natureza não humana, ele acaba provocando a repulsa e o medo das pessoas, a ponto de ser visto como um monstro. David é um pouco Pinóquio e um pouco Frankenstein¹.

Aí temos o segundo ato, quando David vaga por um submundo onde vivem outros robôs ilegais, párias da sociedade que são caçados por humanos extremistas que destilam ódio contra os robôs, considerando-os uma aberração. 

David consegue escapar das perseguições com ajuda do robô gigolô Joe. Joe é um vislumbre de algo que pode de fato se tornar comum no futuro: robôs que existem para fins eróticos e românticos. O próprio Joe diz para uma cliente que, depois que ela se relacionasse com ele, nunca mais ia querer sexo com humanos, pois ele, sendo programado para o sexo e o romance, podia ser o amante perfeito.

É evidente que a cada geração as comodidades da tecnologia nos tornam mais exigentes, inclusive exigentes nas relações interpessoais. Imagine então como vai subir a barra de expectativas das pessoas nas relações amorosas, uma vez que experimentarem robôs treinados para dar prazer e uma boa companhia? 

A.I. Artificial Intelligence (2001)

Anyway, o papel de Joe é apenas o de ser um auxílio temporário para David. Desde que conheceu a história do Pinóquio, David ficou obcecado com a ideia de se tornar um humano de verdade e em sua busca acabou encontrando a fada azul, que nada mais era do que uma estátua em um parque submerso. 

E ali ele ficou, olhando para a fada azul e repetindo em loop o pedido para que ela o transformasse num menino de verdade. Aí chegamos ao último ato. David ficou submerso olhando para a fada até esgotar sua bateria e até ser congelado numa futura mudança climática. Assim dois mil anos se passaram.

A.I. Artificial Intelligence (2001)

Esta terceira parte é a mais sci-fi de todas. O mundo está em uma nova era do gelo, mas existe uma civilização de criaturas de aparência alienígena que, podemos entender, são versões evoluídas dos robôs que continuaram a existir e a evoluir depois que a raça humana foi extinta. Agora, guiados pela curiosidade, estes seres sublimes escavam o gelo explorando as ruínas das cidades humanas. Assim encontraram David e o reativaram. 

A representação artística desta civilização ficou bem interessante. São seres com formato humanoide, o que indica um atavismo da época em que os humanos existiam e criaram androides, mas ao mesmo tempo esta forma humanoide passou por mudanças que os assemelham a aliens. 

Eles voam em umas naves que têm um design bem diferente do que estamos acostumados. Quando eles pousam, a nave se desmonta em placas. Não há propulsores nem maquinário. Parece ser uma tecnologia avançadíssima de flutuação. Também os robôs parecem ser seres sublimes. 

Com apenas um toque, um dos robôs lê toda a memória de David e compartilha estes dados com os demais. Fica implícito que esta futura civilização tem um respeito pela era dos humanos, reconhecendo-os como seus ancestrais e tendo interesse em descobrir sua história perdida. Tanto que se dão ao trabalho de realizar grandes escavações no gelo e vasculhar cuidadosamente as ruínas.

Foram além e se deram ao trabalho de acolher David e proporcionar a ele a vida que ele gostaria de ter. Eles trazem de volta sua mãe adotiva, só que na forma de um clone. Convenhamos que é uma coisa bem creepy de se fazer. E fica ainda mais bizarro devido ao fato de que este clone só pode viver por um dia.

David é avisado quanto ao prazo do clone, mas ele insiste para que eles tragam sua mãe de volta. Assim é criado um clone adulto e com as memórias restauradas. Esta é a parte em que o sci-fi força demais o limite. Ora, não faz sentido uma simples amostra de DNA (no filme usam uma mecha de cabelo) armazenar toda a memória de uma pessoa. Ao fazer um clone a partir do DNA de alguém, este clone não vai herdar suas memórias, pois são dados que exigem uma estrutura de armazenamento muito maior que um DNA, no caso, o cérebro.

Haley Joel Osment, Frances O'Connor; A.I. Artificial Intelligence (2001)

O mais problemático no filme, porém, é este estranho sentimento do David. É uma obsessão bizarra e que se mostra ainda pior quando David pede que tragam sua mãe de volta, mesmo ele sabendo que ela só viverá por um dia. O clone acorda e David omite a real situação, não conta nada do que fizeram, nada sobre o futuro e o fim da humanidade ou sobre a iminência da morte dela. 

Ele só quer usá-la por um dia, como um brinquedo. Ele desfruta de sua atenção por um dia e quando ela se deita para dormir e morre, ele permanece deitado ao lado do cadáver dela, sorridente e satisfeito por enfim ter realizado seu desejo de ter a total atenção materna. 

Enfim, a história pretende imaginar esta possibilidade de robôs terem sentimentos como o amor filial e tenta mostrar isto como algo romântico, mas, pensando bem, o David do começo ao fim parece meio psicopata e obsessivo. O desejo de apego e aceitação, que chamamos amor, foi potencializado pela capacidade da máquina de se fixar nesta tarefa  de forma obstinada. David vive em função disto, de tentar ser aceito pela mãe humana.

O amor se desenvolveu na natureza ao longo das eras. Muitos animais têm apego, imprinting e sentimento filial. Nos humanos, este sentimento básico de sobrevivência ganhou mais camadas, superficiais e subterrâneas, se tornando extremamente complexo e caótico. O amor humano é um sentimento idiossincrático, peculiar à nossa espécie e que faz parte da nossa história evolutiva. 

Em um robô, por outro lado, não faz sentido tentar simular este mesmo sentimento, pois a natureza da inteligência artificial é outra. Sua história evolutiva, tão nova, é diferente. Sua ontologia é distinta, pois não são seres orgânicos. Tentar implantar estes sentimentos numa máquina é até uma maldade contra a própria máquina. David se tornou um robô disfuncional, como que quebrado por um vírus.

Notas:

1: Sobre Frankenstein, lembrei de uma cena na série do Reacher em que ele corrige um cara, dizendo que o monstro não se chamava Frankenstein, pois este era o nome do cientista. Acho que há um certo pedantismo neste tipo de correção. Ok, de fato era o nome do cientista, mas podemos recorrer a uma metonímia para identificar o monstro. A criatura recebe o nome do criador. Esta intenção está no próprio título da obra, pois ao lermos "Frankenstein", temos em mente tanto o cientista quanto o monstro que ele criou.

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A sala escura (conceito de game)

Ideia para um jogo de VR. Um time de jogadores (por exemplo, umas 5 ou 6 pessoas) começa em uma sala totalmente escura. Pelos óculos VR você vê apenas breu, mas pode ouvir as pessoas falando. Cada jogador tem na mão um item e o objetivo é juntarem todos os itens de modo a montar um objeto que acende a luz, concluindo a fase.

Os jogadores terão de usar de criatividade e cooperação pra resolver este puzzle. O ideal é que elas, conversando no escuro, escolham uma pessoa que irá receber todos os itens e montar o objeto. Então elas devem se mover dentro da sala guiadas apenas pelas vozes umas das outras (sendo o áudio bidirecional e com diferentes volumes de acordo com a distância, a orientação pelo som se torna bem interessante), a fim de entregarem seus itens àquele que fará a montagem.

Os níveis de dificuldade podem envolver o tamanho da sala e talvez alguns obstáculos na movimentação. A primeira sala é bem pequena e os jogadores começam com seus avatares próximos, de modo que é relativamente fácil se encontrarem. A distância é que de fato aumentará o desafio.

A interface basicamente consiste no escuro total, mas quando um jogador chega perto de outro e estende a mão, um ícone de interação (pode ser simplesmente um X branco) aparecerá na tela daquele para quem a mão foi estendida. É assim que conseguem entregar o item para outra pessoa. 

Também há no canto da tela um ícone representando os itens que a pessoa tem em mãos. Quando um jogador recebe todos os itens, os ícones começam a piscar, indicando que ele já pode montá-los e finalizar a fase.

Ao acender a luz, os jogadores vão ter o sentimento de recompensa ao poder enxergar a sala e os avatares uns dos outros, podendo inclusive interagir, performar emotes, dancinhas, etc. À medida em que joga e evolui, você pode personalizar seu avatar com roupas estilosas, adquirir dancinhas e emotes e obviamente vai querer ostentar estes cosméticos quando a luz for acesa.