A ficção tem alguns curiosos exemplos de personagens que ocupam uma função que mescla policial, juiz e executor.
O Robocop, que teve início em um filme de 1987, é um dos mais famosos exemplos deste tipo de personagem. Um humano modificado, de modo a ser parcialmente um ciborgue, ele carrega em sua memória orgânico-digital um código criminal e tem autorização para julgar qualquer pessoa a qualquer momento com base neste código, bem como executar a pena no mesmo instante.
Em se tratando de ficção, é interessante um personagem assim. Robocop é badass, implacável. Personagens que fazem execução sumária nos encantam, esta é a verdade. Justiceiros nos encantam, pois eles encarnam o nosso anseio por justiça rápida e garantida, diferente da vida real, quando um crime pode passar até décadas sem ser punido, enrolado em burocracias sem fim.
"Te dou um queijo, Jiban!" |
Inspirado no Robocop, em 1989 surgiu o tokusatsu do policial ciborgue Jiban que igualmente tinha estes poderes acumulados e "heroicamente" julgava seus inimigos sem impedimentos.
Uma década antes do Robocop, surgiu nos quadrinhos o Juiz Dredd, em 1977. Melhor do que ninguém, ele ilustra o conceito de um "juiz ambulante", um juiz-carrasco. No mundo distópico do personagem, o aumento da criminalidade em cidades superpovoadas colapsou o sistema judicial tradicional, de modo que a solução radical foi dar poderes a uma elite de policiais para que façam todo o processo criminal de forma arbitrária e imediata.
Execuções sumárias são típicas de sociedades em estado de barbárie. Em épocas de guerra, convulsão social e grande crise e miséria este comportamento vai se estabelecendo e normalizando. A prática do linchamento é a versão coletiva do juiz-carrasco. Neste caso, é um grupo local que toma para si o poder de julgar e punir de forma imediata. É comum que linchamentos ocorram devido à fúria e insatisfação da população diante da morosidade da justiça oficial.
A justiça sumária é tentadora, mas muito perigosa. Não raro casos de justiça deste tipo se mostram na verdade uma grande injustiça. Uma população pode ser atiçada contra uma pessoa por causa de um boato, uma mentira, e executar um linchamento contra um pobre inocente vítima de calúnia. Isto acontece justamente porque a justiça sumária não se dá ao devido trabalho de investigar o crime.
À medida em que civilizações avançam, elas se tornam mais complexas e inevitavelmente mais burocráticas no seu sistema judicial. Hoje em dia a coisa é tão intrincada que um julgamento pode passar por várias instâncias, ser anulado, revisado, o réu pode não apenas recorrer e questionar a decisão judicial, como pode também mover um processo, caso considere que está sendo julgado por um crime que não cometeu.
O problema não é a burocracia. Ao contrário. A burocracia e toda e complexidade deste processo é algo que previne a sociedade de punir injustamente alguém. Eis o princípio da presunção de inocência. A presunção de inocência dignifica o ser humano, reconhece que todos têm a chance de se defender de uma acusação. É uma das maiores conquistas da civilização em termos de valorização da vida humana.
Por outro lado, a excessiva burocracia moderna pode criar situações bem kafkianas em que pessoas se veem envolvidas em intermináveis julgamentos, além disso os corruptos, incluindo pessoas que fazem parte do sistema judiciário, podem tirar proveito desta burocracia, encontrar brechas ou abusar de seus poderes para incriminar inocentes e livrar culpados.
Este é um problema do sistema moderno, mas convenhamos que é um mal menor se comparado à lei de talião dos bárbaros. Pensando de forma otimista, estamos em uma fase de transição entre o péssimo e o ótimo. O péssimo é a justiça antiga da barbárie, o ótimo é a justiça futura melhorada pela tecnologia. Estamos no meio, numa justiça da papelada, das pilhas de processos que sobrecarregam o sistema.
A tecnologia trouxe terrores à humanidade, mas no balanço geral ela sempre fez mais bem do que mal. Os avanços tecnológicos melhoraram as condições de vida das populações, geraram riqueza, facilitaram o acesso a bens e serviços, ampliaram a comunicação e a difusão de informação, etc, etc.
Logo, gosto de pensar que os softwares vão cada vez mais ajudar policiais, juízes, promotores e advogados a agilizar seu trabalho, processando em dias ou horas uma quantidade de dados, analisando evidências e consultando leis em um volume que um ser humano levaria anos para processar. A papelada vai acabar um dia. Esta é a boa notícia.
A má notícia é que a tecnologia também aumentará a vigilância sobre todos, chegando a um nível invasivo (como já é) e contaminando a presunção de inocência com um estado de constante suspeita sobre tudo e todos. Eis o Big Brother, olhando todos, vigiando todos, o que pode criar um sentimento de que temos um vigia a nos olhar perpetuamente, o que é no mínimo desagradável, leva as pessoas a viver sob o medo do olho onipotente, uma espécie de tecno-teocracia.
A barbárie, então, pode existir também em uma sociedade tecnologicamente avançada. Uma barbárie que usa a tecnologia como ferramenta é um risco, é o que a ficção científica distópica constantemente nos alerta. Devemos ficar atentos sempre que a sociedade começe a flertar com o retorno da barbárie, ainda mais quando vem fortalecida pela tecnologia.
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