A democracia não é um sistema perfeito ou mesmo ideal, mas é algo realizável, funcional. Sistemas ideais, como o próprio nome diz, existem no mundo das ideias, na imaginação dos utópicos e sonhadores. O ideal existe para contemplação, pois nunca se torna concreto; existe para inspirar e motivar, mas é por natureza algo irrealizável no mundo com toda sua complexidade, caos e imperfeição.
Entre os críticos da democracia, há quem diga que as coisas funcionariam de forma bem mais eficiente numa tecnocracia, onde todos os líderes e operadores de uma sociedade fossem escolhidos por critérios estritamente técnicos. Por exemplo, numa tecnocracia, políticos não seriam pessoas eleitas, mas gente academicamente formada em disciplinas ligadas à política e que ocupariam o cargo via concurso, como acontece com juízes e outros funcionários públicos.
À primeira vista parece uma boa ideia, mas acontece que a política tem camadas que os tecnocratas ignoram. Política é essencialmente a arte da negociação com as pessoas e esta arte não é algo que se aprende em livros. De toda forma, no fim das contas não se trata de escolher alguém pelo seu preparo técnico ou sua capacidade de negociação, trata-se do próprio direito à escolha.
Vejamos um exemplo para entender a lógica da democracia. Uma sociedade de pessoas, uma tribo, se forma pelo crescimento de sua população. Seguindo naturalmente o exemplo da família, a tribo se organiza com líderes, anciões, que, sem eleição, simplesmente se estabelecem por sua experiência, por serem os mais velhos e entendidos do grupo, recebendo tácitamente o reconhecimento dos demais.
Estes anciões ditam as regras e costumes, geralmente baseadas no senso comum, na tradição, no que aprenderam com os anciões do passado. À medida em que a tribo cresce, porém, cresce a diversidade de opiniões e pessoas começam a questionar os anciões, até mesmo no grupo dos anciões, cada vez maior, começam a surgir discordâncias. Surge aí a necessidade de uma centralização mais explícita da liderança. Começa a era dos monarcas.
Um monarca pode se estabelecer a príncípio por mérito. Uma pessoa que praticou atos heróicos, que exerceu liderança em situações de crise, que tem talentos especiais acaba se destacando, virando uma lenda, até um semideus, e com a ajuda dos anciões, organiza um governo centralizado em sua liderança, de modo que os anciões se tornam seus conselheiros, mas é dele que sempre vem a palavra final, evitando assim o caos do conflito de opiniões.
A comunidade continua crescendo e nem mesmo o monarca consegue manter a harmonia. Em alguns casos ele tenta fazer isto pela força, principalmente quando o reino começa a se expandir e entrar em choque com outros reinos e comunidades bárbaras. Surge o imperador, um monarca que se impõe pela força do sistema que já está bem robusto, rico e armado.
A manutenção de um império é cara e complexa, tanto em termos materiais quanto sociais. Se uma sociedade entra em crise e decadência e isto se soma a crises políticas, econômicas e conspirações, um império cai e se estabelece o caos.
Agora a sociedade está desnorteada. Em meio ao caos, diversos grupos combatem para tentar estabelecer a sua ideia de governo. Revolucionários e reacionários se enforcam mutuamente. A guerra civil põe a harmonia da sociedade em crise. Uma maneira desta crise acabar é um dos grupos vencer a guerra e se impor, subjugando os vencidos.
Acontece que esta não é uma solução pacífica nem duradoura, já que os vencidos sempre estarão insatisfeitos e planejando uma retomada do poder. Isto pode gerar um ciclo perpétuo de tomadas e retomadas do poder, numa sociedade sempre insatisfeita com a ordem estabelecida de forma tirânica.
É aí que entra a proposta da democracia. A democracia propõe: "Façamos o seguinte: que todos os cidadãos se organizem conforme suas afinidades políticas e escolham representantes para cada grupo de interesse. Estes representantes vão disputar uns com os outros por meio da eleição, do voto de todos os cidadãos. O voto da maioria elegerá determinados representantes. O cargo destes tem um prazo limitado, de modo a haver um perpétuo ciclo de eleições que pode facilitar a troca de representantes e alternância de grupos de interesse no poder".
Ou seja, no sistema democrático, o mitológico embate de grupos, que no passado acontecia de maneira concreta por meio de intermináveis guerras e enforcamentos, é transformado em uma disputa simbólica, feita no papel por meio do voto. Toda eleição é uma guerra, mas uma guerra virtual, poupando a sociedade da barbárie pura.
Cansada de guerra e de tragédia, uma sociedade pode com alívio aceitar essa trégua histórica. Todos os lados da disputa (com exceção dos mais extremistas) aceitam a proposta da democracia como um acordo e uma maneira segura de continuarem a travar sua disputa de interesses sem levar a sociedade a um estado de contínuo terror.
Esta é, portanto, a filosofia por trás da democracia. O voto da maioria não existe porque a maioria necessariamente está certa ou tem a melhor ideia, mas existe para pacificar a sociedade. A existência de eleições periódicas existe para oferecer uma oportunidade de troca, de alternância, de mudança de governo sem a necessidade de toda vez se travar uma guerra real.
Na democracia, portanto, a sociedade não vai necessariamente funcionar da melhor maneira por meio de suas escolhas, mas ela vai evitar que o stress do conflito de interesses suba até o nível de despertar novamente a barbárie humana.
A democracia é uma ferramenta da civilização, e civilização é um estado de adormecimento da fera humana da barbárie que nunca terá fim, que está sempre ali, latente, escondida em sua caverna, e que não deve ser despertada.
É isto que os tecnocratas não entendem na política e na sociedade: o seu aspecto psíquico. Enxergam apenas o pragmatismo, aquilo que deve ser feito, mas não enxergam os sentimentos humanos. A política real é a arte de negociar com os interesses e também os sentimentos. Não à toa o fato de uma pessoa gostar ou não gostar de um político chega a níveis passionais. Pelo menos a pessoa descarrega estas energias no voto, na liberdade de expressão e nas instituições organizadas.
Este estado de civilidade está sempre andando na corda bamba. O risco de pessoas recorrerem à barbárie está sempre presente. O sistema, sendo imperfeito, também irá passar dos limites e semear insatisfações.
O importante é que o acordo da sociedade continue de pé, o acordo de seguirem disputando, guerreando, no campo virtual da política, deixando a guerra real e a revolução apenas como uma hipotética carta na manga para o caso da democracia ser tomada por outra coisa pior, como um estado de cruel tirania.
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