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Frankenstein, o incel primordial

Frankenstein

O termo "incel" (involuntary celibacy) ficou mais popular na internet nos últimos anos. Supostamente ele teve origem lá em 1993, quando uma garota chamada Alana criou um site (Alana's Involuntary Celibacy Project) para trocar confidências com outras pessoas sobre a dificuldade em encontrar relacionamentos, o que ela chamou de "invcell", um celibato involuntário.

O tempo passou e o termo foi se tornando mais pejorativo, especialmente ao ser associado a um tipo específico de jovem, como o perturbado Elliot Rodger, que em 2014, aos 22 anos, esfaqueou e atirou em várias pessoas na região de Isla Vista, Califórnia. 

Assim, a palavra passou a designar um sujeito problemático, provavelmente psicopata, antissocial e que tem um ódio particular por mulheres devido ao fato de ser rejeitado por elas. Por outro lado, incel foi ganhando outros usos. Há quem se identifique como incel e supostamente existe até mesmo uma subcultura de pessoas que partilham de experiências e visões de mundo parecidas segundo as quais eles não conseguem ter relacionamentos porque são feios ou pobres ou lhes falta habilidade social e portanto não atendem aos padrões de exigência das mulheres. Estas pessoas aparentemente nunca viram quantos homens feios e pobres casados há no mundo.

O termo incel também acabou se tornando um insulto gratuito, assim como "virjão", usado nas discussões de internet para provocar ou rotular alguém, algumas vezes pelas mesmas pessoas que se dizem contra preconceitos e discriminações.

Nunca usei este termo para me referir a ninguém, pois acho que a idiossincrasia humana não pode ser resumida em rótulos generalizantes, mas na ficção é mais fácil rotular e por isso tomo a liberdade de aplicar o rótulo a um personagem específico: o monstro de Frankenstein.

Na história da brilhante Mary Shelley, um curioso detalhe chama atenção sobre o drama existencial de Frankenstein (sim, o monstro pode ser chamado pelo mesmo nome de seu criador e, para evitar a confusão, costuma-se chamar o cientista pelo seu primeiro nome, Victor): sua vida teria sido bem diferente se ele não fosse grotescamente feio.

O maior problema do Frankenstein não era o fato dele ter sido criado por um cientista louco, de ter sido feito de partes de cadáveres, revivido como um zumbi, a cria de um necromante. Seu problema mesmo é que ele não conseguia a simpatia das pessoas porque era feio demais.

Ao longo do livro, o monstro, que se tornou bem culto e eloquente (ao contrário da caricatura geralmente feita em filmes, animações e séries, com um Frankenstein bobalhão e que mal sabe falar), descreve suas tentativas de se aproximar das pessoas, de fazer amizades, sempre tendo como resposta o pavor de todos, assustados com sua aparência monstruosa.

A feiura extrema sempre foi no imaginário humano associada a monstros. Quando Frankenstein tenta raptar uma criança para adotá-la (pois é, ele chegou a um ponto em que tentou fazer amigos à força), o menino (que por ironia do destino era filho do cientista que o criou) disse: "Monstro, feio miserável, você quer me comer e me rasgar em pedaços. Você é um ogro".

Vampiros são criaturas sinistras, verdadeiros psicopatas, mas são belos e charmosos (você não, Nosferatu), de modo que, em vez de repelir as pessoas como Frankenstein, eles atraem, seduzem. Há monstros e monstros. Alguns são monstros simplesmente por causa da feiura.

Então Frankenstein desiste de vez de sua busca por simpatia humana e vai para o lado negro, cometendo seus primeiros assassinatos. Ele mata a criança e encontra uma foto da mãe do menino que o deixa encantado. 

"Por alguns momentos eu me deleitei com seus olhos escuros, orlados por cílios compridos, e seus belos lábios; mas logo a minha raiva retornou. Lembrei-me de que estava para sempre privado dos prazeres que tais belas criaturas podiam conceder e que a semelhança que eu contemplava, em relação a mim, mudava esse ar de bondade divina para uma expressão de nojo e pavor".

Este trecho curiosamente se encaixa muito bem na caracterização do que hoje se chama incel. Frankenstein sabia que jamais teria qualquer chance com uma bela mulher, pois ele era feio demais, de modo que ele passou a sentir raiva da humanidade, mas particularmente das mulheres bonitas, já que elas contrastavam tanto com ele próprio.

Pois é, Frankenstein foi o incel primordial. Mas a história não para por aí, pois ele chega à conclusão que a solução de seu problema de feiura e rejeição é criar outro ser semelhante a ele, a noiva de Frankenstein. 

Mas voltemos à questão da feiura. É obviamente simplista atribuir a rejeição social e sexual de uma pessoa apenas à sua aparência. Convenhamos, em termos sexuais as pessoas mais bonitas têm de fato um privilégio (quem não gosta disso vá reclamar com a Mãe Natureza), mas o que mais tem no mundo é gente feia fazendo amigos, namorando, transando e casando.

Há vários elementos na fórmula da socialização, e os elementos psicológicos superam os físicos. Os tais incels costumam ter problemas maiores que a aparência, problemas psiquiátricos, familiares, etc.

Não se pode negar, porém, que a feiura tem um limite para ser suportável e, passando deste limite, o feio torna-se grotesco. Aí realmente é difícil para qualquer ser humano comum lidar com o grotesco. Você beijaria o Predador? Então...

Predador
Me dá uma bitoca.

Frankenstein é uma história que pode despertar muitas reflexões sobre temas como os limites éticos da ciência, o perigo da tecnologia criar monstros ou qualquer coisa que ameace a vida humana, a criação de vida e inteligência artificial, o preconceito das pessoas com o estranho e diferente, as consequências da rejeição na formação psicológica das crianças, etc. 

Aqui apenas abordei o aspecto mais raso da aparência física, da feiura. Frankenstein é como os contos de fada, só que ao contrário. Em vez do protagonista ser uma bela adormecida, é um horroroso renascido dos mortos.

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