Qaligrafia
Séries, livros, games, filmes e eteceteras 🧙‍♂️

Ataraxia

Creio que já não sou mais capaz de sentir. Já não me enfureço, nem fico triste, já não sei o que é euforia ou mesmo desespero. Tudo o que sinto são espectros de verdadeiros sentimentos, uma robótica simulação que sou capaz de ligar e desligar a qualquer momento. Sentimentos para mim são apenas uma lembrança, algo que observo de longe, como quem olha os pássaros ou as luzes da cidade à noite. E confesso que este estado de ataraxia tem a vaidade de cultivar apenas um pequeno sentimento: o alívio.

(26,04,2023)

[Conceito de game] A influência dos players na vegetação

Existem MMOs com skill de gardening. Um bom exemplo é o Runescape, onde você pode plantar ervas, árvores frutíferas e até enormes árvores para coleta de lenha. Acontece que isto é limitado a pequenos spots no mapa, de modo que esta atividade não tem um impacto profundo no ambiente.

O que temos até hoje na forma como a vegetação funciona em MMO é um spawn repetitivo da mesma planta crescendo de novo e de novo no mesmo local. Se você corta uma árvore, em minutos outra árvore idêntica nascerá no local.

Agora imaginemos um mundo de MMO onde o spawn das plantas seja mais complexo e até mesmo dependa da atividade dos players. Se você corta uma árvore e deixa o toco, ok, a árvore pode voltar a crescer a partir do toco. Todavia, pode haver a opção do player remover o toco (coletando com isto itens específicos que não consegue coletar no tronco da árvore, como raízes úteis para alguma poção, etc) e, neste caso, não cresce mais árvore ali. Este tipo de mecânica existe por exemplo em Don't Starve, um joguinho de sobrevivência aparentemente simples, mas que tem uma natureza com comportamento relativamente complexo.

No caso de plantas pequenas e frutíferas, Don't Starve também tem um mesmo exemplo. Você pode simplesmente colher frutinhas e deixar a planta lá, de modo que depois outras frutas vão spawnar. Por outro lado, você pode remover a plantinha completamente com uma pá, e aí acabou, não nasce outra no lugar a não ser que você mesmo plante um broto.

Este conceito seria interessante em um MMO. Alguns players vão remover as plantas sem se importar com as consequências, mas logo a comunidade deve desenvolver uma mentalidade de plantio, assim que começarem a sentir as consequências da escassez. 

Na verdade, uma vez que o plantio é uma skill, provavelmente não haverá desmatamento por muito tempo, já que sempre terá players upando esta skill, plantando árvores e sementes pelo mapa. As recompensas envolvidas nesta skill devem estimular os players a praticá-la. 

Obviamente os únicos locais onde é possível um player plantar algo devem ser aqueles projetados para funcionar como floresta. Todavia, deve haver uma liberdade para a criatividade. Imagine players brincando de fazer desenhos enfileirando árvores.

Desta forma, os cenários se tornam mais dinâmicos. Alguém pode inventar de fazer uma horta inteira de determinada fruta. Como, porém, brotos e sementes têm um preço, ninguém vai sair brincando à toa com isto. Uma fruta rara deve continuar rara porque custa caro plantar uma árvore dela e ninguém vai querer correr o risco de gastar uma fortuna plantando uma horta de fruta rara se a qualquer momento outro player troll ou desavisado pode chegar lá e remover a raiz.

De toda forma haverá plantio de frutas raras, pois deve haver missões e recompensar para players que estão upando a skill de gardening. "Plante dez arvores da fruta tal para ganhar a recompensa tal".

Se o player tiver uma casa, ali ele pode plantar uma horta só dele e que só ele pode colher. No entanto, seu terreno é limitado, e sabendo que pode plantar também na vasta natureza, o player vai sair plantando por aí, mesmo sabendo que neste caso qualquer um pode colher os frutos.

Todas as plantas têm uma pequena chance de adoecer. Deste modo, uma árvore em algum momento pode secar ou murchar. Os players podem colher madeira seca deste tipo de árvore, mas, se deixarem o toco, ela não volta a crescer, pois é um toco de árvore seca. Pode acontecer então de uma área abandonada por players se transformar em uma floresta de árvores e tocos secos.

Ainda outra variável entra nesta fórmula de ambiente em constante mutação: o clima, as estações. O conceito de mundo que varia com o clima já está sendo explorando nos novos MMOs e deve se expandir no futuro. Pegando outro exemplo de joguinho simples, no Stardew Valley tem sementes que só nascem em determinadas estações. 

Certas plantas podem precisar de chuva, outras podem estragar com a chuva. Algumas só nascem em certas áreas do mapa, o que faz com que cada região, cada cidade se torne conhecida por um tipo específico de material. Em áreas mais perigosas e inóspitas é que ficam as plantas mais raras e caras.

O conceito de corrupção é outro que tem se tornado cada vez mais comum em vários jogos e ela pode afetar a flora. Quando um foco de corrupção contamina determinada área da floresta, as plantas dali se transformam, seus frutos viram frutos corruptos, que são úteis para determinadas poções mágicas. Logo, players podem se interessar em plantar também em áreas corruptas.

A interação física dos players com a vegetação também pode ser mais complexa. Para cortar uma árvore, por exemplo, você terá à disposição uma variedade de machados, do mais noob ao mais profissional. A forma mais rápida de cortar uma árvore será com machados, mas mesmo com socos você pode causar algum dano. Um player maluco pode tentar derrubar uma árvore no soco, o que levará vários minutos e a coleta de lenha não será tão boa, já que os socos não fatiam o tronco.

Você pode bater numa árvore com uma espada e até atirar uma bola de fogo nela. A árvore vai arder em chamas até restar apenas carvão. 

Anyway, tanta variedade na interação com itens do cenário é um desafio no desenvolvimento de um jogo, mas é algo que vai se tornar cada vez mais viável no futuro.

Palavras-chave:

Metamorfose

A morte como aniquilação
não passa de uma mera ilusão.
Nada extingue-se, tudo se transforma.
A semente sepultada vira a rosa.

Quantas vezes já fui sepultado.
Já não sou mais o que fui, porém agora
a semente plantada no passado
desenvolve seu broto e aflora.

E de novo e de novo e outra vez
sempre metamorfosear-me-ei.

(24,04,2023)

Após a tempestade

"Depois da tempestade vem a bonança", é o que dizem. Mas existe um detalhe nesta bonança: os estragos da tempestade permanecem. É preciso esperar a água baixar, remover os entulhos, salvar aquilo que não foi totalmente destruído, calcular as perdas e tentar recomeçar. Sim, depois da tempestade vem a bonança, mas também um longo e trabalhoso processo de reconstrução.

(22,04,2023)

Frankenstein, o incel primordial

Frankenstein

O termo "incel" (involuntary celibacy) ficou mais popular na internet nos últimos anos. Supostamente ele teve origem lá em 1993, quando uma garota chamada Alana criou um site (Alana's Involuntary Celibacy Project) para trocar confidências com outras pessoas sobre a dificuldade em encontrar relacionamentos, o que ela chamou de "invcell", um celibato involuntário.

O tempo passou e o termo foi se tornando mais pejorativo, especialmente ao ser associado a um tipo específico de jovem, como o perturbado Elliot Rodger, que em 2014, aos 22 anos, esfaqueou e atirou em várias pessoas na região de Isla Vista, Califórnia. 

Assim, a palavra passou a designar um sujeito problemático, provavelmente psicopata, antissocial e que tem um ódio particular por mulheres devido ao fato de ser rejeitado por elas. Por outro lado, incel foi ganhando outros usos. Há quem se identifique como incel e supostamente existe até mesmo uma subcultura de pessoas que partilham de experiências e visões de mundo parecidas segundo as quais eles não conseguem ter relacionamentos porque são feios ou pobres ou lhes falta habilidade social e portanto não atendem aos padrões de exigência das mulheres. Estas pessoas aparentemente nunca viram quantos homens feios e pobres casados há no mundo.

O termo incel também acabou se tornando um insulto gratuito, assim como "virjão", usado nas discussões de internet para provocar ou rotular alguém, algumas vezes pelas mesmas pessoas que se dizem contra preconceitos e discriminações.

Nunca usei este termo para me referir a ninguém, pois acho que a idiossincrasia humana não pode ser resumida em rótulos generalizantes, mas na ficção é mais fácil rotular e por isso tomo a liberdade de aplicar o rótulo a um personagem específico: o monstro de Frankenstein.

Na história da brilhante Mary Shelley, um curioso detalhe chama atenção sobre o drama existencial de Frankenstein (sim, o monstro pode ser chamado pelo mesmo nome de seu criador e, para evitar a confusão, costuma-se chamar o cientista pelo seu primeiro nome, Victor): sua vida teria sido bem diferente se ele não fosse grotescamente feio.

O maior problema do Frankenstein não era o fato dele ter sido criado por um cientista louco, de ter sido feito de partes de cadáveres, revivido como um zumbi, a cria de um necromante. Seu problema mesmo é que ele não conseguia a simpatia das pessoas porque era feio demais.

Ao longo do livro, o monstro, que se tornou bem culto e eloquente (ao contrário da caricatura geralmente feita em filmes, animações e séries, com um Frankenstein bobalhão e que mal sabe falar), descreve suas tentativas de se aproximar das pessoas, de fazer amizades, sempre tendo como resposta o pavor de todos, assustados com sua aparência monstruosa.

A feiura extrema sempre foi no imaginário humano associada a monstros. Quando Frankenstein tenta raptar uma criança para adotá-la (pois é, ele chegou a um ponto em que tentou fazer amigos à força), o menino (que por ironia do destino era filho do cientista que o criou) disse: "Monstro, feio miserável, você quer me comer e me rasgar em pedaços. Você é um ogro".

Vampiros são criaturas sinistras, verdadeiros psicopatas, mas são belos e charmosos (você não, Nosferatu), de modo que, em vez de repelir as pessoas como Frankenstein, eles atraem, seduzem. Há monstros e monstros. Alguns são monstros simplesmente por causa da feiura.

Então Frankenstein desiste de vez de sua busca por simpatia humana e vai para o lado negro, cometendo seus primeiros assassinatos. Ele mata a criança e encontra uma foto da mãe do menino que o deixa encantado. 

"Por alguns momentos eu me deleitei com seus olhos escuros, orlados por cílios compridos, e seus belos lábios; mas logo a minha raiva retornou. Lembrei-me de que estava para sempre privado dos prazeres que tais belas criaturas podiam conceder e que a semelhança que eu contemplava, em relação a mim, mudava esse ar de bondade divina para uma expressão de nojo e pavor".

Este trecho curiosamente se encaixa muito bem na caracterização do que hoje se chama incel. Frankenstein sabia que jamais teria qualquer chance com uma bela mulher, pois ele era feio demais, de modo que ele passou a sentir raiva da humanidade, mas particularmente das mulheres bonitas, já que elas contrastavam tanto com ele próprio.

Pois é, Frankenstein foi o incel primordial. Mas a história não para por aí, pois ele chega à conclusão que a solução de seu problema de feiura e rejeição é criar outro ser semelhante a ele, a noiva de Frankenstein. 

Mas voltemos à questão da feiura. É obviamente simplista atribuir a rejeição social e sexual de uma pessoa apenas à sua aparência. Convenhamos, em termos sexuais as pessoas mais bonitas têm de fato um privilégio (quem não gosta disso vá reclamar com a Mãe Natureza), mas o que mais tem no mundo é gente feia fazendo amigos, namorando, transando e casando.

Há vários elementos na fórmula da socialização, e os elementos psicológicos superam os físicos. Os tais incels costumam ter problemas maiores que a aparência, problemas psiquiátricos, familiares, etc.

Não se pode negar, porém, que a feiura tem um limite para ser suportável e, passando deste limite, o feio torna-se grotesco. Aí realmente é difícil para qualquer ser humano comum lidar com o grotesco. Você beijaria o Predador? Então...

Predador
Me dá uma bitoca.

Frankenstein é uma história que pode despertar muitas reflexões sobre temas como os limites éticos da ciência, o perigo da tecnologia criar monstros ou qualquer coisa que ameace a vida humana, a criação de vida e inteligência artificial, o preconceito das pessoas com o estranho e diferente, as consequências da rejeição na formação psicológica das crianças, etc. 

Aqui apenas abordei o aspecto mais raso da aparência física, da feiura. Frankenstein é como os contos de fada, só que ao contrário. Em vez do protagonista ser uma bela adormecida, é um horroroso renascido dos mortos.

Palavras-chave:

John Wick, Top Gun e Super Mario: o segredo do sucesso é ser simples

Anya Taylor-Joy; The Menu (2022)

No filme The Menu (2022)¹, a personagem da Anya Taylor-Joy pede um cheeseburger ao chef gourmet, mas ela quer algo trivial, não uma obra de arte, "not some fancy, deconstructed avant bullshit". Esta cena ilustra bem a diferença entre os chamados filmes de arte e filmes de entretenimento.

Ok fazer certos filmes para críticos especializados, como um prato gourmet que o especialista degusta e identifica traços de canela do sudoeste da Índia. Acontece que este tipo de produção sempre será mais indie e limitado e a indústria em geral não pode sobreviver disso. O que alimenta a grande máquina são os cheeseburgers tradicionais, feitos para o grande público.

A sobrevivência da indústria do cinema como um todo depende dos filmes de entretenimento. Logo, seria um grande tiro no pé tentar sabotar este negócio desconstruindo o entretenimento, incluindo elementos que o público não tem interesse. 

Um caso curioso tem sido a Marvel. Desde o primeiro Homem de Ferro (2008) até Vingadores Ultimato (2019), a Marvel viveu uma década inteira de grandes sucessos, simplesmente seguindo a fórmula do entretenimento, oferecendo ao público ação, efeitos especiais, personagens carismáticos, algumas piadinhas bem encaixadas. 

Aí a partir da fase quatro começaram a querer reinventar o gênero. Em Thor Love and Thunder, o Taika Waititi quis ser ousado e debochado, desconstruindo o Thor e a virilidade que ele possuía desde sua primeira aparição no MCU, resultando em um filme desastrado. 

Em Doctor Strange in the Multiverse of Madness, o Sam Raimi também debochou do gênero, dando um fim patético a personagens consagrados dos quadrinhos. A cena em que o Senhor Fantástico apresenta o Black Bolt como sua carta na manga é ridícula e virou alvo de memes pela internet. O tal homem mais inteligente do universo ingenuamente entregou sua estratégia de mão beijada para a Wanda.

Desnecessário é falar da série da She-Hulk que abertamente tira sarro dos fãs de quadrinhos. É como se estes filmes e séries recentes fossem feitos por gente que de fato não curte quadrinhos, não entende os fãs. Eles só querem fazer o seu cheeseburger gourmet desconstruído sem se importar com a opinião do público. E quando a bilheteria não alcança um bom resultado, culpam os fãs por não terem entendido a proposta.

Obviamente existem casos de sucesso na reinvenção do gênero. O Christopher Nolan deu uma abordagem bem peculiar, bem autoral ao Batman, o mesmo aconteceu com o Batman noir do Matt Reeves, o Logan do James Mangold e mais ainda com o Joker do Todd Phillips, mas aí são pontos fora da curva, feitos por criadores brilhantes. Tentar reinventar um gênero é algo que poucos sabem fazer com maestria, de modo que não é qualquer um que deve se aventurar nessa empreitada.

Por outro lado, estão surgindo os casos de retorno à fonte, de retorno ao bom e velho cheeseburger de beira de estrada, feito para matar a fome e agradar o paladar do consumidor médio. Temos aí três grandes exemplos: Top Gun 2, John Wick 4 e mais recentemente Super Mario Bros que está explodindo em bilheteria e seguindo rumo ao bilhão.

O que estes três têm em comum é o fato de entenderem o gênero a que pertencem, de modo que entregam exatamente aquilo que o público gosta. Dos três, a franquia John Wick é a que mais envereda pelo experimentalismo, tentando dar uma nova roupa ao gênero (literalmente criando um herói de ação que luta de terno), só que faz isto da maneira correta, sem deboche, sem destruir os elementos de um filme de ação com armas, ao contrário, enfatiza estes elementos.

A franquia John Wick é uma lição de como produzir filmes de forma sustentável. O primeiro filme teve um modestíssimo orçamento de 30 milhões, arrecadando quase o triplo, com 86 milhões de bilheteria. Pegaram então metade dessa fortuna, 40 milhões, para fazer o segundo filme que arrecadou 174 milhões, quase o quádruplo do que foi gasto. O terceiro filme custou 73 milhões e arrecadou 327. O quarto filme custou 100 milhões e até o momento arrecadou 314.

É assim que a roda gira. John Wick não só manteve uma relação sustentável entre custo e receita, como foi evoluindo a cada filme, e isso sem jamais cair na tentação de debochar de seu público com desnecessárias desconstruções do gênero.

Tudo bem um restaurante servir alguns pratos gourmet, uma sobremesa mais sofisticada para pessoas com um paladar peculiar, mas o que vai manter o restaurante em pé (inclusive garantindo a própria sobrevivência do serviço gourmet) é o lanche do dia a dia, o cheeseburger tradicional. A indústria do cinema e os críticos jamais devem esquecer isso.

Notas:


Palavras-chave:

A complexidade do indivíduo

O indivíduo é uma construção complexa, fruto de várias influências. Temos a influência ancestral, milenar, atávica. A evolução de nossos antepassados, as experiências e eras que gravaram fortes impressões, medos, desejos, símbolos. Há tantas coisas que você acredita, gosta, odeia, teme, simplesmente porque tais sentimentos foram herdados de um passado longínquo.

Existe a influência mais recente e marcante da família, dos pais, irmãos, até mesmo vizinhos, amigos de infância. As sensações que você experimentou ainda no ventre materno e até pequenos momentos vividos na fase mais plástica da vida contribuíram para moldar sua visão de mundo e maneira de ser.

Ao longo dos anos você encontra pessoas, tem com elas experiências boas e ruins, lê livros, vê filmes, apaixona-se, encanta-se e desencanta-se, passa por momentos de guerra e paz. Tem experiências religiosas ou antirreligiosas, desenvolve opiniões políticas, existenciais, gostos musicais e tudo o mais.

Seu país, sua cidade natal, seu sexo, sua raça, sua classe social, seu idioma, sua altura, seu peso, sua cor, seus olhos, seu rosto, sua voz, seu sorriso, cada mínimo detalhe vai compondo o complexo e inclassificável conjunto do seu ser, e cada um destes detalhes influencia a forma como as outras pessoas te veem, a imagem que fazem de você, a maneira como vão te tratar, e tais reações e opiniões dos outros também exercem alguma influência sobre si, adicionando mais reagentes à formula da personalidade.

Há tantas outras coisas que contribuem para o caos da consciência e a composição do ser. Influências cósmicas, transcendentes, incognoscíveis. Qualquer tipo de rótulo que usemos, até mesmo o nome próprio, o rótulo primordial, são apenas tentativas simplistas de identificar a complexidade do eu.

Xadrez e a psique

No xadrez é possível ter um sentimento de como é a psique do oponente. Em cada lance o jogador se revela, se expressa. É possível ver se é uma pessoa muito agressiva ou defensiva, se é cautelosa ou ousada, se é aberta a negociação, a trocar peças com facilidade, ou se possui um espírito de avareza, trancando-se em uma defesa mesquinha que se recusa a avançar para o estágio do jogo em que peças são removidas. Se for sádico ou vingativo, fará questão de adiar a vitória, caso tenha a oportunidade de despedaçar o oponente antes do golpe final. Se for orgulhoso demais, se recusará a render-se, mesmo quando não tiver mais saída. 

A metamorfose feminina

As mulheres são mais metamórficas que os homens. Elas estão acostumadas à mudança, a transformar-se. A transição da menina para a mulher é muito marcante, com transformações no corpo e no comportamento mais conspícuas. Por meio da maquiagem, acostumam-se a modificar o rosto, tornando-se outra pessoa a cada estilo de adorno e de roupa. Mais do que os homens, as mulheres dominam a arte da dissimulação (o que inclui a arte de negar esta dissimulação), da linguagem indireta; entendem a diversidade de comportamentos que devemos assumir em diferentes ocasiões, diferentes ambientes e interações sociais. A mulher sabe quando se vestir de forma casual, elegante, erótica ou profissional. Homens são mais limitados nestes aspectos, mais monolíticos, a não ser que possuam um forte aspecto feminino, pois andróginos são mais dados à metamorfose, uma habilidade feminina. O masculino é a rocha que pouco muda e que exige muita força para ser modificada; o feminino é a água que molda-se e adapta-se, plástica, elástica, assumindo várias formas e fases.

A maldade humana e natural

Há pessoas que costumam falar que gostam mais dos animais do que da humanidade porque eles são puros, inocentes, sem maldade. A verdade é bem diferente disso.

Eu tinha umas galinhas e notei um curioso comportamento em algumas delas. Eram quatro e duas delas tinham uma atitude dominadora sobre as outras. Por exemplo, sempre que eu colocava comida, as duas valentonas expulsavam as outras duas, simplesmente não permitiam que elas comessem. Passei então a distribuir a comida em dois pontos diferentes, um para as valentonas e outro para as rejeitadas. O que aconteceu? As valentonas deixavam a comida que coloquei para elas e iam até onde estavam as rejeitadas só para expulsá-las de lá e ficar com a comida delas. Aí as coitadas tentavam mudar de spot, indo para a comida que as valentonas deixaram para trás. Assim que as valentonas viam isso, voltavam de novo para lá a fim de expulsar as bichinhas.

Pois é, não se tratava de escassez, de luta por recursos, pois eu colocava bastante para todas. Era simplesmente um sentimento vil de egoísmo, de ganância. Este tipo de comportamento existe no mundo animal. Estas valentonas não toleravam sequer que as rejeitadas ciscassem perto delas e já avançavam, adotavam uma atitude ameaçadora.

Quem cria gatos também deve se deparar com situações de sadismo animal. Se você já viu um gato "brincando" com um passarinho, deve saber como estes felinos, por mais fofinhos que sejam com o seu cuidador humano, podem ser bem sádicos com outro ser vivo, arrancando as penas do pássaro uma a uma, sem se importar com seu sofrimento. E sim, o gato sabe quando está machucando alguém, pois ele sabe dosar a força de seu arranhão ou sua mordida no humano. Ele sabe mordiscar de leve uma pessoa, pois tem noção que se morder forte demais vai machucar. Quando brinca com uma presa, ele não se importa com isto.

Estes exemplos são bobos se comparados à real violência bruta da natureza selvagem, dos leões que estripam cervos e os comem ainda vivos e em estado de choque. Machos de diversas espécies se envolvem em brigas que podem resultar em morte ou em grave aleijamento, tudo para impor seu monopólio sexual sobre as fêmeas disponíveis.

Há outras coisas que animais cometem que é melhor nem descrever aqui.

Ao mesmo tempo, também podemos encontrar exemplos de animais afetuosos, de gatas adotando pintinhos como filhotes, de cães pulando na correnteza para salvar outra criatura, etc. 

A natureza, assim como a humanidade, tem exemplos tanto de candura quanto de selvageria. Afinal, humanos são a natureza, somos fruto dela. É incoerente a misantropia que julga a natureza melhor que os humanos, pois os humanos são um produto da natureza. Somos o que somos graças à ela e à sua evolução de milhões de anos. Não somos anjos caídos que se rebelaram contra a natureza. Foi ela quem nos moldou assim.

Os sentimentos de ganância, egoísmo e competitividade exacerbada existem tanto na humanidade quanto nas galinhas, nos gorilas, nos pets mais fofinhos. Os humanos, de fato, são os únicos animais que questionam este aspecto sombrio da natureza. Somos os únicos que ficamos enojados com a injustiça, que temos um conceito bem definido de maldade e buscamos um mundo menos cruel.

A misantropia é como uma doença autoimune surgida deste nosso desejo de bondade e justiça. Este desejo se deturpa, perde o propósito e vira ódio generalizado à espécie humana. É um sentimento ontologicamente paradoxal, pois um verdadeiro misantropo, se realmente deseja o fim de toda a humanidade, deveria começar dando o exemplo com o próprio fim. É impossível ser um misantropo honesto e continuar existindo.

O ódio à injustiça não deve se transformar em misantropia, sob risco de perder sua nobreza, seu grande propósito. Questionar a injustiça e a maldade é questionar a própria natureza. Nós somos o esforço da natureza em superar sua própria brutalidade.

The New Frontier, a Liga da Justiça nos anos 60

Justice League: The New Frontier (2008)

Desde que James Gunn assumiu o DCU, rumores e mais rumores surgiram sobre possíveis histórias dos quadrinhos que podem ser adaptadas para live action. Recentemente, uma das especulações tem a ver com a graphic novel DC: The New Frontier, escrita e desenhada por Darwyn Cooke em 2004.

Seria uma escolha bem ousada e peculiar para um live action, pois esta minissérie se passa nos anos 50-60, explorando uma origem da Liga da Justiça no período pós-guerra, em plena polarização do mundo capitalista contra o comunismo soviético.

Filmes de super-heróis costumam ser ambientados em um mundo mais futurista e tecnológico que o nosso. As tecnologias usadas pelo Tony Stark no MCU, por exemplo, estão ainda bem à frente daquilo que hoje temos disponível. Raramente surge algum live action que segue o caminho oposto e ambienta-se no passado, como foi o caso de Watchmen (2009). Logo, seria no mínimo interessante um filme da Liga da Justiça "de época", retratando o mundo da Guerra Fria.

Coincidentemente, seria um ambiente adequado para o zeitgeist atual do mundo, já que vivemos um renascimento da antiga polarização, novamente vemos o mundo dividido entre o ocidente liderado pelos EUA e uma aliança Rússia-China. 

The Centre; Justice League: The New Frontier (2008)

A mensagem de The New Frontier, porém, é de união, uma vez que surge uma ameaça comum à toda humanidade, um alien que vivia nas profundezas da Terra chamada O Centro.

De fato, é o tipo de história que cairia no gosto de James Gunn, pois ele na certa aproveitaria o retorno aos anos 60 para montar uma playlist de clássicos do rock, talvez até encaixando um Elvis, e o vilão como um gigantesco kaiju também é o tipo de monstro que ele já mostrou ter interesse.

O Centro é visivelmente uma criatura de inspiração lovecraftiana. Até mesmo existe uma obscura seita que surge para temer este ser que pretende extinguir a humanidade da face da Terra. Eu diria que O Centro representa a misantropia do extremismo ecológico que chega ao ponto de desejar a extinção da humanidade, considerando-a uma praga na Terra.

Anyway, a possibilidade do James Gunn adotar esta história não passa de especulação e o mais provável é que tenhamos uma Liga da Justiça contemporânea mesmo. De toda forma, a série em quadrinhos já ganhou uma adaptação em um filme animado de 2008, Justice League: The New Frontier.

Wonder Woman; Justice League: The New Frontier (2008)

É bem satisfatório ver o Superman com seu uniforme mais antigo, a Wonder Woman é literalmente um mulherão, alta, com uma atitude guerreira, o Batman recebe ênfase no seu lado detetive e seu rosto lembra o Adam West, mas quem ganha mais atenção em toda a equipe é o Hal Jordan, tanto que é ele quem no fim das contas conclui a batalha contra O Centro. Até mesmo tiraram o Superman de cena para que Hal Jordan pudesse protagonizar a batalha.

DC: The New Frontier (2004)

Palavras-chave:


New World e seu problema com datas

New World Fellowship and Fire

New World foi uma grande surpresa no mundo dos MMOs, um belo jogo, tanto visualmente quanto na sonoplastia, tem uma jogabilidade interessante e já falei bastante sobre ele em outros posts desde o beta aberto. Por outro lado, desde o início tem se mostrado problemático no desenvolvimento e na comunicação com a comunidade.

Logo no início, houve muitos bugs que irritaram bastante a maioria dos jogadores, tanto que a grande massa que lotou os servidores no começo foi embora para nunca mais voltar. Pegaram ranço. New World se tornou uma espécie de Cyberpunk 2077 dos MMOs. 

O jogo de fato melhorou ao longo dos anos, teve uma grande expansão de mapa e vários aprimoramentos em toda a gameplay, no craft, nas missões, nas armas, etc. Nada disso, porém, conseguiu convencer a grande massa de players a retornar.

Nos primeiros meses de 2021, o New World chegava a bater de 500 mil a 900 mil players diários! Mesmo com um natural abandono que acontece em qualquer jogo após o lançamento, seria de se esperar uma certa retenção. Se 10% dessa galera permanecesse, teríamos uma média de 50 a 90 mil players jogando todos os dias. A queda porém foi vertiginosa e hoje em dia a média é de 10 a 15 mil. Uma retenção absurdamente baixa.

Eu mesmo havia parado de jogar em 2022, até que me deparei com os planos para 2023, todo um calendário de eventos, novidades, melhorias, a tão esperada montaria e até um sistema de passe de batalha. Fiquei curioso e animado novamente, mas mais uma vez eles conseguiram jogar um balde de água fria na hype por falta de organização.

Aconteceu o seguinte: quando chegou o dia 25, publicaram uma nota no fórum e no Twitter informando que o update seria adiado porque durante um teste descobriram um problema. Deixaram a data indefinida, nenhuma previsão oficial.

Tudo bem, bugs acontecem e a comunidade em geral se mostrou compreensiva, entendendo que o studio fez bem em adiar o lançamento para garantir um polimento final do conteúdo. Melhor isto do que lançar e expor os players a desgostos com bugs. Acontece que sequer especificaram o problema. Foi uma nota bastante vaga.

No dia 28 postaram outra nota no fórum (e nada no Twitter), dizendo que haveria uma tentativa de update no dia 30. A galera não cansava de perguntar no chat do jogo e torcer para dia 30 a coisa dar certo. Chegou o dia 30 e uma nova nota adiou para dia 31. É, a coisa começou a ficar estranha. Pois bem, já adiaram 2 vezes. Não é possível que adiem de novo, certo? Eis que no dia 31 veio outra nota adiando para o dia 2 de Abril e algumas horas depois adiaram novamente para o dia 4...

Nota-se aí no mínimo um problema de tato na comunicação com a comunidade, bem como um problema de organização do cronograma. Tudo bem que problemas aparecem, mas claramente não souberam lidar com isto de uma maneira que minimizasse os danos na confiança dos jogadores.

Se você tem um trabalho a entregar e se depara com um problema, deve planejar bem uma estimativa do tempo necessário para resolver o problema e fazer isto com uma margem de erro. Se acha que pode resolver em 2 dias, informe ao cliente uma data de 3 ou 4 dias, por exemplo. Isto reduz o risco de chegar o prazo marcado e você ter que passar vergonha pedindo para marcar uma nova data.

Teria sido mais sábio se o studio informasse um adiamento de uma ou duas semanas, de modo que na impressão dos jogadores, haveria apenas 1 adiamento. Em vez disso, ficaram empurrando os prazos dia após dia, de modo que até agora já somam 4 adiamentos informados ao longo de 3 dias. Isto não passa uma boa impressão, faz os players pensarem que "virou bagunça".

Curiosamente, na tarde do dia 31 o líder do desenvolvimento de Ashes of Creation, o Steven Sharif, fez uma live na Twitch mostrando as novidades, os planos para a fase alfa 2. Ele disse algo que me chamou atenção com respeito a prazos:

"I have learned a considerable amount over what it takes to build these games over the last six years and we made a promise to the community that we would not give dates again in the future unless we were very certain that we were going to hit those dates or at least be very close to hitting them".

Pois é, esta fala cai como uma luva no problema recente do New World. Não dê datas se não tiver certeza de que pode cumpri-las. 

Ashes of Creation schedule

O desenvolvimento de Ashes of Creation é um exemplo de organização em termos de cronograma. Desde o alfa 0 em 2017 eles vêm prestando contas com a comunidade a cada nova etapa. O próprio Steven participa de lives, faz o Q&A, soltam vídeos no Youtube, e não à toa a comunidade do Ashes se mantém no hype por todos estes anos, pois há comunicação e organização. Neste aspecto, o New World tem muito o que aprender.

Palavras-chave: