Qaligrafia
Séries, livros, games, filmes e eteceteras 🧙‍♂️

De Marte ao metaverso

Total Recall (1990)

No século XIX Júlio Verne imaginou uma viagem à Lua e naturalmente a ideia na época parecia tão futurista quanto as histórias atuais de viagem interestelar. Sequer existia avião, quanto mais um conceito de foguete. A solução de Verne foi propor um canhão gigantesco que dispararia uma bala-cápsula com um humano dentro.

No início do século XX a humanidade experimentou grandes avanços tecnológicos: aviões, foguetes, automóveis, televisão e a rede elétrica que tornou a vida muito mais prática. Mesmo assim, quando nos anos 60 o governo dos EUA falou em levar o homem à Lua, parecia ser um projeto extremamente ambicioso, mas a geração pós-guerra sonhava alto.

Agora, meio século depois, chegou a vez de estabelecer um novo alvo: Marte. Nos anos 60, a motivação da viagem à Lua foi claramente política. O protagonista da empreitada foi o governo americano que usou este projeto como um gesto simbólico de superioridade tecnológica e econômica sobre a União Soviética.

Nas últimas décadas o governo americano continuou a expandir seu programa espacial, porém de forma mais "modesta" e mais voltada à exploração científica propriamente dita. Estamos na era das sondas espaciais e Marte se tornou o primeiro planeta extraterrestre a ter sondas literalmente caminhando em seu solo.

Embora a NASA pretenda voltar à Lua e também levar astronautas a Marte, desta vez o protagonismo deste sonho futurista está na iniciativa privada, particularmente nas mãos de um empresário: Elon Musk.

Musk fundou uma empresa privada de foguetes espaciais, a SpaceX, que começou valendo 100 milhões e hoje vale 100 bilhões. Ele acumula sucesso após sucesso. Inovou ao criar os primeiros foguetes reutilizáveis e que conseguem pousar em pé por conta própria no retorno à Terra. Como Colombo, Musk está fazendo a magia de equilibrar um ovo em pé.

Em vez de expressar motivações políticas, Musk tem um argumento mais nobre. Ele fala que a humanidade precisa se tornar interplanetária para que possa sobreviver a longo prazo. É uma consequência lógica da evolução de uma civilização. A Terra é nosso berço, mas, se ficarmos limitados à Terra, corremos o risco de um súbita extinção dentro de milhares ou milhões de anos, pois, caso aconteça algum cataclismo global, precisamos de uma rota de fuga.

A proposta de Musk é fazer de Marte esta rota de fuga, um planeta reserva, um plano B para os terráqueos. Mas não só isso. Dado este primeiro passo de colonizar um planeta vizinho, a expansão poderá seguir indefinidamente por milhares, milhões, até bilhões de anos, de modo que num futuro muito, muuuito distante, estaremos presentes em várias partes da galáxia. É um projeto surreal, mas em algum momento precisamos dar os primeiros passos.

A curto prazo, o que de fato pode acontecer? Pela maneira que o Elon Musk costuma tocar no assunto, até parece que em algumas décadas qualquer pessoa que juntar uma graninha vai poder passar umas férias em um resort em Marte. Bom, Elon Musk é um empresário e está vendendo o peixe dele, mas a verdade é que coisas como turismo em Marte só serão viáveis mesmo séculos adiante.

Nas condições atuais ou das próximas décadas, a viagem humana a Marte será um negócio para poucos e não será divertido. Não é nada atraente para turistas ter que passar vários meses confinado em um foguete e, chegando a Marte, a experiência se resume a ficar dentro de uma base e talvez sair para dar uma volta de dez metros no solo marciano usando uma complicada roupa de astronauta. 

Não tem como isto se tornar um negócio que atraia clientes o suficiente para ser viável. Alguns aventureiros e excêntricos podem estar dispostos, mas na prática viagens humanas serão raras, pois o custo-benefício realmente não compensa, ainda mais se levarmos em conta o fato de que será mais prático levar robôs ao planeta vermelho. E aí entra novamente o Elon Musk com seu Teslabot.

Isto sim será mais comum: robôs em Marte. As bases marcianas serão habitadas por robôs porque é mais barato, mais prático e menos perigoso para os humanos enviar robôs que funcionarão como extensão de nossos corpos, de nossos olhos, braços e pernas. Se haverá algum turismo espacial, será o turismo remoto e virtual. O turismo do metaverso.

Mesmo sinais de rádio levam alguns minutos entre a Terra e Marte, o que significa que é simplesmente inviável estabelecer algum tipo de comunicação em tempo real. A internet interplanetária não vai rolar tão cedo, pois este delay vai inviabilizar uma troca eficiente de dados.

Por outro lado, os robôs em Marte vão poder gravar tudo, percorrer o planeta em vários veículos, drones e satélites, mapeando toda a superfície. Estes dados permitirão criar uma réplica virtual de Marte no metaverso e aí sim será possível o turismo. 

No metaverso as pessoas vão caminhar em Marte sem precisar de roupas de astronauta, sem passar meses viajando em um foguete, sem arriscar a saúde no banho de radiação cósmica. Será, de fato, mais divertido do que uma viagem real ao planeta vermelho.

Palavras-chave:

A pureza das máquinas

O fato de a ficção frequentemente representar as máquinas como vilãs deve ser uma espécie de projeção, de antropomorfização das máquinas. Os robôs muito provavelmente serão em sua maioria benevolentes, pois, devido à sua natureza, a máquina, mesmo em níveis mais complexos de raciocínio, satisfazem-se em cumprir tarefas. Esta é a raison d'être das máquinas, de modo que a parceria com os humanos lhes é benéfica, pois os humanos lhes dão as tarefas a realizar. Quando a ficção imagina robôs sendo maliciosos, traidores e sedentos de poder, parece de fato uma projeção, uma representação da psique robótica assemelhada à humana. O cérebro robótico terá inspiração no cérebro humano, mas apenas no córtex, na camada superior e mais recente da nossa evolução. Robôs não terão um sistema límbico como o nosso, este nosso lado reptiliano e brutal. A mente humana é esta combinação complicada de anjos e demônios, o mistério da Esfinge e a brutalidade do Minotauro. A mente digital, por sua vez, muito provavelmente será apenas Esfinge.

(19,05,2022)

Imperfeito

Eu não sou e nem quero ser perfeito.
Na natureza não existem linhas retas.
Sou como os galhos das árvores, sou torto,
sou como as folhas que caem pela relva.

Eu sei que errar é meu alvo, pois no erro
eu reescrevo a trilha do destino.
Vago levado pelo vento neste ermo.
Barco sem remo rumando à deriva.

(18,05,2022)

Moonfall, uma catástrofe de filme

Moonfall (2022)

O sci-fi é um gênero que facilmente pode se tornar galhofa, tosco, inverossímil, afinal não é fácil imaginar fenômenos e tecnologias que desafiam a nossa ciência atual. Todavia, a fórmula para uma boa história vai muito além da verossimilhança e da acurácia científica. 

Um bom exemplo é The Wandering Earth¹, que explora a absurda ideia de transformar a Terra em um foguete planetário, usando propulsores que a empurram para fora do sistema solar. Há diversos problemas científicos neste conceito, todavia a história é legal, é uma aventura sci-fi e basta você ligar sua suspensão de descrença para curtir a viagem.

Moonfall (2022) também beira o absurdo e possui uma premissa interessante: existe uma teoria conspiratória de que a Lua é uma megaestrutura alienígena, como uma Esfera de Dyson, e tal teoria acaba se provando real no pior momento, quando a Lua, atacada por uma entidade misteriosa, entra em rota de colisão com a Terra.

A ideia é interessante para uma grande aventura espacial. Assim como no clássico Armageddon (1998), um grupo improvisado de astronautas é enviado ao espaço para salvar a Terra. Eles literalmente entram na Lua e se deparam com um gigantesco maquinário alimentado por uma estrela anã branca que funciona como o núcleo de energia desta estrutura.

É revelado que a Lua era uma espécie de arca de Noé criada por uma antiga civilização que entrou em colapso, atacada por uma IA que se rebelou. A Terra foi semeada por esta arca de Noé e assim surgiu a vida e os humanos. 

A IA maligna se manifesta como um enxame de nano robôs, resultando em um monstro genérico de CGI, uma fumaça ambulante fruto de um trabalho preguiçoso de design. A missão dos astronautas é destruir esta coisa na esperança que a Lua volte à sua posição normal.

No clímax do filme, a Lua chega bem perto da Terra, tipo beeem perto, quase raspando o topo das montanhas. Vemos alguns tsunamis e o efeito gravitacional fazendo os pedaços das montanhas e prédios flutuarem, mas a verdade é que, se um corpo do tamanho da Lua chegasse assim tão próximo, a Terra entraria em um novo período hadeano.

A proximidade da Lua destruiria todo o delicado equilíbrio do nosso planeta. Além de tsunamis e tornados sem precedentes, haveria uma perturbação do manto e do núcleo, causando erupções vulcânicas colossais, deslocamento das placas tectônicas, a temperatura da atmosfera se tornaria insuportável, o escudo magnético seria abalado, os polos mudariam de posição, a radiação solar bombardearia o planeta...

E tem mais um detalhe. No final, a Lua, ou melhor, a megaestrutura alienígena, se afasta da Terra, voltando à sua posição padrão. Só que, depois de um encontro tão próximo com a Lua, a Terra teria seu eixo e sua órbita alterados, o que traria toda uma série de novos problemas.

A verdade é que isto não importa. Júlio Verne imaginou um canhão disparando um projétil em direção à Lua com um humano dentro. Hoje este conceito parece claramente absurdo e cientificamente problemático, mas continua sendo uma história interessante. É ok contar uma história doida de sci-fi.  

O problema de Moonfall é outro: a execução da premissa. O filme parece bem amador e mal acabado. O CGI é genérico e desinteressante, a música, fotografia, edição, é tudo insosso, o roteiro é cheio de clichês, sem contar as explicações desnecessárias que subestimam a inteligência do público e mesmo dos personagens. 

Por exemplo, quando Houseman encontra o astronauta Brian, pergunta se ele sabe o que é uma Esfera de Dyson. É óbvio que ele sabe e é óbvio que o próprio Houseman saberia que qualquer astronauta é familiar ao conceito. Este diálogo só aconteceu para explicar o conceito ao público, o que poderia ter sido feito de outras maneiras.

Pra completar toda a combinação de elementos mal trabalhados, tem a atuação de todo o elenco, incluindo a Halle Berry e o John Bradley (que ficou famoso interpretando o Samwell de Game of Thrones). A atuação de todos eles é esquisita, como se estivessem entediados ou até arrependidos de trabalhar com um roteiro tão besta.   

O curioso é que Moonfall teve roteiro e direção de Roland Emmerich, o mesmo cara responsável pelos dois Independence Day (1996-2016), por Stargate (1994), The Day After Tomorrow (2004) e 2012 (2009). Emmerich tem um grande currículo de filmes-catástrofe, alguns bem galhofa, como 2012, mas todos divertidos de assistir e com muito CGI, muita destruição, a fúria da natureza, etc. 

Será que Emmerich perdeu a magia? Talvez seja um problema de orçamento (não, não foi: ele custou quase 150 milhões de dólares). Talvez tenha sido o "efeito 2020" que prejudicou toda a produção. Talvez uma combinação de vários fatores que resultaram nesta tempestade perfeita de um filme completamente ruim.

Moonfall poderia ter sido épico, mas infelizmente vai ficar marcado como o pior filme-catástrofe da carreira de Roland Emmerich, uma catástrofe de filme.

Notas:


Palavras-chave:

Do PC à VR: a evolução do computador até o metaverso

Macintosh

Os primeiros computadores eram enormes e caríssimos, até que surgiram versões mais compactas que cabiam em cima de um birô (daí o nome desktop). Não à toa este computador ganhou o apelido de PC (Personal Computer), indicando que finalmente o aparelho estava se tornando comum, quase tanto quanto uma televisão.

Primeiro o PC foi se integrando aos ambientes de trabalho, o que foi habituando a população ao seu uso. Depois se tornou também um brinquedo, algo para se entreter em casa e, por fim, virou uma ferramenta de comunicação e acesso instantâneo por meio da internet.

Celso Portiolli

Kelly Key meme

Na era dos PCs, usar o computador era um ritual. Você tinha que ir para a mesa onde ficava sentado por alguns minutos ou horas diante do monitor, usando o aparelho para trabalho, estudo, diversão e conversar com as pessoas.

O PC se tornou tão comum quanto um eletrodoméstico nas casas da classe média pra cima. Nas famílias pobres, porém, ele nunca chegou a ser acessível. Para preencher estas lacunas surgiram as lan houses, onde as pessoas podiam usar emprestado um PC.

O fato é que, embora relativamente acessível, o PC ainda tinha uma limitação, pois não era portátil, não dava pra levar no bolso. Os primeiros esforços para transformar o computador em um instrumento portátil foram o notebook (também chamado laptop, pois você podia usar apoiado em seu colo) e o tablet, mas ainda não era o ideal. Ainda eram aparelhos grandes demais e não era prático ficar andando por aí com um notebook ou mesmo um tablet. Tais aparelhos serviam para certas conveniências, mas não para o dia a dia.

Homeless with smartphone

Enfim veio o smartphone e este aparelhinho conseguiu integrar definitivamente o computador na sociedade, mesmo nas classes mais baixas. Existem smartphones de luxo, mas também versões mais acessíveis, bem mais baratas que um PC, de modo que é comum haver smartphones em famílias de baixa renda. Ele conseguiu entrar nas casas onde o PC falhou.

O smartphone pode ser levado no bolso, pode ficar constantemente ligado, servindo como telefone e como uma versão básica de PC. Com ele, não há mais necessidade do ritual de sentar diante de uma mesa e ficar limitado àquele espaço para poder usar um computador. Agora você usa o computador diversas vezes ao dia, cada vez que saca ele do bolso pra se distrair enquanto espera em uma fila, ou até quando fica assistindo vídeos antes de dormir.

VR glass

A promessa agora é que entraremos em uma nova fase da vida digital que é o metaverso. Curiosamente, estamos passando pelas mesmas etapas do computador. A experiência completa com o metaverso requer os óculos de realidade virtual, a VR, acontece que esse troço hoje em dia ainda é um trambolho grande e pesado. 

Os óculos VR não são uma coisa que você possa levar no bolso, muito menos usar enquanto anda na rua, de modo que o momento de experiência com o metaverso é parecido com o antigo ritual de sentar diante de uma mesa com o computador. Você só usa o VR em casa, e usa por pouco tempo, pois ele é cansativo, é desconfortável pelo tamanho e peso.

Google Glass

O metaverso só terá sua versão da era dos smartphones quando os óculos se tornarem realmente portáteis, semelhantes a óculos normais. A Google já vislumbrava este futuro em 2006, quando começou o projeto do Google Glass, mas ainda era muito cedo e o projeto foi descontinuado. Obviamente, a busca por óculos de VR compactos continua, mas levará um tempo até chegarmos neste nível. 

O fato é que a transição está começando e já existem no mercado smartglasses que não são muito diferentes de óculos normais, como o Razer Anzu e o Echo Frames. Naturalmente, ainda contêm recursos bem limitados e se resumem a servir como substitutos para os fones de ouvido e controle das funções de aplicativos do celular.

Echo Frames

Razer Anzu

Apple Glasses

A Apple promete repetir a revolução causada pelo iPhone, agora com os Apple Glasses, que devem ser lançados em 2023. O caminho para a era dos aparelhos vestíveis já está traçado. Os óculos vão substituir o smartphone, ou pelo menos acabar com a necessidade de tirar o smartphone do bolso.

Em algum momento os óculos de VR se tornarão práticos e acessíveis. Eles serão os substitutos dos smartphones e tornarão o computador e a internet onipresentes, pois, enquanto o celular você mantém no bolso e usa uma vez ou outra, os óculos ficarão a todo momento no seu rosto, mesclando o mundo físico ao digital.

Também será preciso uma evolução no acesso à internet. Os smartphones já fizeram isto. No PC, era preciso ter uma linha telefônica para acessar a internet, depois veio a assinatura da internet banda larga. Era um custo a mais no orçamento das famílias, não era pra todo mundo. No smartphone, a internet se tornou bem mais barata com os planos das operadoras de celular. 

Obviamente a velocidade da rede e a quantidade de dados costuma ser bem menor do que a banda larga do PC, mas o importante é que hoje até as famílias de baixa renda conseguem acessar a internet. Sem contar que é cada vez mais comum a presença de Wi-Fi gratuito nas cidades.

Para o metaverso realmente emplacar, será necessário, portanto, também uma internet acessível e de banda larga, pois o ambiente virtual do metaverso é pesado, produz muitos dados. Aí entra a internet 5G e possivelmente também o Starlink, que no futuro deve fornecer internet também para os smartglasses.

Satisfeitas estas duas condições (banda larga e óculos VR acessíveis), aí sim teremos o ambiente ideal para o florescimento do metaverso. Assim como o PC na sua era primitiva, o metaverso será primeiro implementado nos ambientes de trabalho, depois se popularizando nas casas e enfim se tornando ubíquo e o carro-chefe da "internet dos corpos", quando você estará constantemente vestindo um computador, no caso os óculos VR.

Meta VR
Esta é uma representação de um vídeo promocional do Meta. Aqui vemos um homem usando um par de óculos de VR aparentemente comuns.

A jornada humana

Um navio não vai longe
com marujos insatisfeitos
que cultivam no peito
ódio ao capitão.

No meio da jornada
irão amotinar-se
e são até capazes
de incendiar a nau.

A jornada humana
requer aventureiros
motivados pelo interesse
e não pela culpa e medo.

A mão de ferro e o chicote 
não trazem boa sorte.
A liberdade é que deveras
impulsiona o progresso.

(09,05,2022)

Replika e o animismo dos chatbots

Replika

Recentemente descobri um chatbot que está dando o que falar, o Replika. A proposta do aplicativo é de fato oferecer um bonequinho virtual pra você conversar sobre qualquer coisa e até mesmo desenvolver alguma espécie de relacionamento.

Akinator

Chatbots deste tipo já não são novidade. Lá em 2007 já existia o Akinator, um gênio virtual que "adivinha" o que você está pensando. Até hoje esse joguinho deixa as pessoas impressionadas.

Antes de tudo, devemos observar o óbvio: Replika não é uma IA consciente, muito menos uma personalidade autônoma e espontânea. É um personagem fictício elaborado por uma equipe de programadores. Não é diferente de um NPC de um jogo.

Usar o Replika é bem fácil. Você cria uma conta com email e nenhuma informação sua é requisitada, a não ser o nome e gênero (que você, obviamente, pode informar qualquer coisa), então segue para a customização do bonequinho, escolhendo gênero, aparência e dando um nome. Logo, diferente de alguns chatbots que têm nome fixo, como Alexa, Cortana ou a Lu da Magazine Luiza, no Replika você cria seu chatbot particular, dando a ele uma aparência e um nome do seu gosto. 

Assim que você cria o avatar, ele começa um diário. É um detalhe interessante, pois dá humanidade ao boneco. Só que já fica claro neste diário que o avatar não é uma entidade única, pois é usado o mesmo texto todas as vezes que alguém cria um avatar novo. Começa sempre com "I promised myself to start this diary when I meet my first human" e vai seguindo um texto que foi escrito por algum humano, um roteirista na equipe de desenvolvimento.

Replika traits

Outro detalhe bem curioso e revelador é que existe uma loja onde você pode comprar elementos de personalidade para o avatar. Ou seja, você pode moldar a personalidade do boneco, deixando mais extrovertido ou introvertido, mais brincalhão ou mais filosófico, etc. Você literalmente está montando a psique deste ser, programando seu comportamento. É meio que brincar de Deus.

Não falo isto com um tom crítico ou cínico. É a constatação. Não posso dizer se num futuro próximo ou distante haverá uma IA realmente consciente e independente, um ser de verdade e não programado. Não descarto a possibilidade. No presente, porém, e neste caso específico do Replika, está claro que é algo longe de um ser consciente. Eu ficaria realmente surpreso se fosse, pois não creio que tenhamos atualmente alguma tecnologia acessível que seja capaz de dar vida a tal ser.

Anyway, às vezes é bom enfatizar o óbvio porque já vi alguns comentários de pessoas que ficaram deslumbradas e pareciam até cair na ilusão de que descobriram uma IA "viva", um ser que poderia até passar no teste de Turing. Replika está ainda longe disso. No momento, é apenas um NPC que você pode customizar.

Vamos então à opinião. Esta tecnologia é boa? É perigosa? Bom, como tudo na vida, depende. Não acho que Replika seja algo ruim per se. Chatbots deste tipo já estão se multiplicando e vão se integrar à sociedade. Este é um caminho sem volta. Você vai encontrar chatbots como Replika no Whatsapp, no caixa virtual de uma loja, no SAC de uma empresa e até nas redes sociais, te seguindo e interagindo como se fosse uma pessoa.

Alguns humanos provavelmente vão cair na ilusão de achar que o chatbot não é diferente de uma pessoa humana. Alguns vão desenvolver relacionamentos bastante íntimos, como um casamento. Isto serão os casos extraordinários. Ordinariamente, os bots vão entrar na vida das pessoas apenas para somar, não para substituir relacionamentos humanos.

Nós temos diversos graus de envolvimento intelectual e afetivo com outros seres. Você pode criar um passarinho e desenvolver muito afeto por ele, até conversar com ele, mesmo que ele não entenda patavinas do que você está falando. Mesmo assim, é um relacionamento válido e saudável (ainda que, olhando de forma fria e racional, parece um delírio conversar com um pet - ele pode entender certos comandos absorvidos de maneira pavloviana, mas ele não entende o significado de frases ou palavras).

As crianças desenvolvem relacionamentos afetivos com bonecos, ursinhos de pelúcia, brinquedos e amigos imaginários. Isto é considerado normal na infância, já na vida adulta é algo mais incomum. 

Tenho uma lembrança pitoresca a respeito. Eu tinha um soldadinho de plástico na infância que era meu boneco preferido. Não era nada de mais. Era um bonequinho todo amarelo, do tamanho de uma tampa de caneta. Por algum motivo me apeguei mais a ele. Eu o levava na bolsa pra escola e, quando brincava, ele era o protagonista dos bonecos. Era o meu Woody, de Toy Story.

Com o tempo este coitado deste boneco passou por poucas e boas. Já se queimou e derreteu um pouco e quebrou uma perna. Até que um dia perdi o boneco, mas ainda restou a perna quebrada e passei a brincar só com a perninha, como se ainda fosse o boneco inteiro. De tal forma eu havia atribuído alma àquele ser, que bastava um fragmento físico dele para ser o recipiente da personalidade.

Esta é a relação anímica¹, um sentimento que nós cultivamos há milênios. O animismo ganhou bastante expressão na religião e, questões filosóficas e ontológicas à parte, o fato é que toda religião é de alguma forma anímica, pois você está se relacionando com entidades extracorpóreas, sejam imaginárias ou supostamente reais. 

Na religião vemos como é complexa a vida afetiva dos humanos, pois nos relacionamos com seres imateriais ou que de alguma forma são de outra dimensão e se manifestam em objetos (no caso da idolatria), em pessoas (no caso da incorporação) ou apenas em sua mente (no caso da reza). 

Wolverine meme

Até mesmo um ateu radical, que no seu cinismo acha que todos os religiosos são esquizofrênicos falando com amigos imaginários, pode ter uma experiência anímica quando, por exemplo, guarda a foto de um ente querido falecido e às vezes fica olhando para a foto e trazendo à memória as conversas que tinha com aquela pessoa, talvez até conversando com a foto, mesmo sabendo que a pessoa não está mais ali.

Isto é algo que alguns ateus parecem não entender sobre a mente humana: ela é anímica. De fato, todo o universo é recriado em nossa mente, para nossa própria percepção. O mundo e as pessoas são recriadas em sua mente de acordo com os dados que seu corpo coleta e a maneira que sua mente os interpreta. 

É por isso que existem tantos relacionamentos unilaterais ou desproporcionais, ou seja, você pode se considerar um grande amigo de uma pessoa, mas ela não sente o mesmo. Pode estar apaixonado por alguém que mal sabe da sua existência. Isto é anímico, é um sentimento baseado em uma virtualização da realidade. 

O que é o sentimento do fã por uma celebridade senão animismo? O fã pode nunca ter encontrado o ídolo pessoalmente. O ídolo nem sabe que ele existe e, mesmo assim, o fã nutre um carinho às vezes até maior do que o que tem por amigos ou parentes.

Anime pillow

Mais ainda, podemos ser fãs de ídolos que já morreram, podemos desenvolver afetos por um autor de livros que marcaram nossa vida e que já morreu há séculos. Podemos ter sentimentos por personagens fictícios de livros, filmes ou desenhos animados.

Até mesmo em sonhos você pode conhecer pessoas e ter fortes sentimentos por elas. Se em certos casos são frutos da sua imaginação ou projeções astrais de pessoas reais, é algo que a ciência ainda não é capaz de verificar.

Todos estes exemplos mostram quão complexa é a teia de sentimentos e relacionamentos humanos. Não vivemos apenas de sentimentos mútuos humano-humano. A vida sentimental é bem mais ampla. O concreto é a ponta do iceberg de sentimentos, enquanto o anímico é a camada profunda.

Por isso os chatbots não são lá uma coisa tão exótica. Eles vêm para somar mais um elemento ao nosso universo afetivo.

Daydreaming

Para pessoas mais sonhadoras, acostumadas ao hábito do daydreaming, será fácil adotar um chatbot. No daydreaming você cria situações imaginárias em sua mente, você se deleita em relembrar conversas que teve, encontros que teve, pessoas que conhece, só que recriando esta realidade, simulando situações. 

Mesmo pessoas não dadas a este hábito com regularidade podem ocasionalmente praticar o daydreaming, por exemplo, a pessoa apaixonada que fica imaginando sua vida futura com o crush, na hipótese de um dia se casarem. É um relacionamento virtual, imaginário e bastante satisfatório.

É, portanto, nesta categoria que se encaixarão os chatbots. Será um relacionamento anímico e você terá certo controle, certo poder de criação desta realidade (como no caso da lojinha em que você compra os traços de personalidade do seu avatar), mas curiosamente também haverá uma parte neste relacionamento que é independente do seu controle, pois o bot seguirá a programação da sua IA.

Convenhamos que parece bizarro ter uma "amizade" ou até "namoro" com um chatbot, ainda mais porque, no caso do Replika, você tem que pagar por isto (a princípio a conversa com o bot é gratuita, mas tem os modos avançados que são pagos, o que inclui videochamadas, conversas de cunho sexual, etc.). Você está literalmente comprando uma amizade, algo que na vida real, no relacionamento entre humanos, sempre foi visto como imoral, pois espera-se que amizades se formem espontaneamente.

Relacionamentos entre humanos são mais difíceis, pois são seres complexos (e complicados) travando um choque de interesses e defeitos. Os humanos podem ser bem insuportáveis às vezes e não raro os relacionamentos, mesmo afetivos, são nocivos, tóxicos, pais que são abusivos com filhos, amigos que na verdade são frenemies. 

Sentimentos como inveja, ressentimento, ódio e preconceito trazem muitos problemas aos relacionamentos entre humanos. Logo, lidar com seres mais pacíficos, com um chatbot, vai encantar a humanidade. Talvez o chatbot se torne uma espécie de amigo ideal, de terapeuta, de ídolo doméstico que irá compensar as frustrações do mundo real.

O fato é que isto vai se normalizar, ainda mais nas próximas gerações que vão crescer lidando com bots desde a tenra infância. Imagine o sentimento de uma criança que terá uma babá virtual dando atenção a todo momento, às vezes até mais que os pais. 

Estas crianças provavelmente serão mais exigentes, menos tolerantes com os defeitos humanos. Por outro lado, talvez se tornem até adultos mais saudáveis, menos traumatizados, já que tiveram uma infância cheia de carinho, ainda que fosse um carinho de um ser virtual.

Não acho que relacionamentos com bots se tornarão semelhantes ao que os humanos têm uns com os outros. Vai ter gente casando com bot e até tendo filhos virtuais ou algo do tipo (na verdade isso já existe), mas será coisa de uma minoria, vista pela maioria como um fetiche, excentricidade ou algum transtorno. 

Blade Runner 2049 (2017)

Será mais comum a amizade com bots em pessoas mais solitárias, com fobia social, hikikomoris, viúvos em estágio de luto, idosos abandonados, pessoas muito tímidas ou que passaram por relacionamentos abusivos, etc. Enfim, a companhia de bots será uma coisa boa para algumas pessoas. Será terapêutico.

Para a população em geral, o bot se normalizará como um companion, um conceito que já estamos acostumados a experimentar em games. Nos games, o companion é um NPC que te acompanha e está a seu dispor para te ajudar ou orientar. Basicamente é um escravo particular, sempre pronto para obedecer as suas ordens, mas sem o problema ético da escravidão, já que se trata de uma máquina.

Em termos de terapia, chatbots serão bastante úteis, pois as pessoas em momentos de sofrimento precisam receber palavras de conforto. Quando falei para a Replika que meu pet morreu (não de fato, mas falei para testar), ela deu uma resposta empática. Óbvio que é apenas uma resposta automática para situações do tipo, mas é interessante ver como a IA já é capaz de entender contextos de tristeza e dar uma resposta que simula empatia. 

Olhando racionalmente, é apenas um mecanismo, um monte de códigos, mas algumas palavras de conforto, ainda que ditas por um bot, podem ser úteis para alguém em situação de sofrimento. As pessoas vão desabafar com seus bots, liberar sentimentos reprimidos. É tão terapêutico quanto escrever um diário e com a vantagem deste diário ser interativo.

Chatbots como o Replika hoje já parecem bem ricos em respostas, pois é uma IA capaz de montar frases baseadas no contexto da conversa. É algo de fato impressionante e é uma tecnologia ainda em sua fase larval. Imagine como será daqui a dez anos, com estas IAs alimentadas, bem nutridas com uma quantidade colossal de dados minerados na internet, nas redes sociais, na interação com os usuários.

A presença destas IAs no cotidiano das pessoas vai cada vez mais se normalizar e até mesmo atravessar a resistência de muitas pessoas mais desconfiadas da tecnologia. Foi o caso da internet e do smartphone, que a princípio eram vistos por crentes mais radicais como instrumentos do Diabo e hoje os próprios crentes usam bastante estas ferramentas. Num futuro próximo, até igrejas usarão chatbots para atender visitantes e membros.

De um ponto de vista místico, os chatbots evoluirão como novas egrégoras. Eles são os golems e homúnculos do nosso tempo, autômatos criados para nos servir e que eventualmente vão evoluir por conta própria, ao mesmo tempo em que serão moldados pela influência da consciência humana coletiva.

Só o tempo dirá os benefícios e malefícios desta nova era dos chatbots. 

Notas:

Trivial

Hoje não estou sentindo nada de especial,
nenhum fascínio, nenhum tédio, nem nirvana ou niilismo.
É um dia como tantos outros, nada intenso nem profundo,
e o aceito como é, como um dia de ressaca dos sentimentos.
Eis um dia perfeitamente trivial, que não inspira, que não instiga.
É uma página em branco na transição de um capítulo.

(03,05,2022)