Qaligrafia
Séries, livros, games, filmes e eteceteras 🧙‍♂️

Helen Hunt, a terapeuta amorosa

Helen Hunt

É comum atores se especializarem em determinados tipos de personagens. É o chamado typecast. Isto tem lá suas vantagens, pois é mais fácil convencer o público quando um personagem se encaixa no tipo do ator. 

Eis que estes dias me dei conta que a Helen Hunt possui um typecast bem peculiar: a mulher "terapeuta de caras problemáticos".

Ela é tipo uma santa, cheia de paciência e maturidade, lidando com parceiros que desafiam a saúde do relacionamento. Em The Waterdance (1992), o namorado dela sofre um acidente e fica numa cadeira de rodas e ela vai precisar de muita disposição pra se adaptar e lidar com o amargor que tomou conta do cara. 

Em As Good as it Gets (1997), ela conhece o insuportável personagem do Jack Nicholson, um cinquentão rabugento que só sabe tratar mal as pessoas. Com muita paciência, ela acaba tornando o velho mais simpático.

Em Cast Away (2000) o marido dela é gente boa, mas se perde em um naufrágio, de modo que a coitada vai experimentar o luto e depois a estranha surpresa de reencontrá-lo vivo. Ela tem mesmo um azar para relacionamentos.

Por fim, em The Sessions (2012) ela é literalmente uma terapeuta, no caso, sexual. Seu paciente é um cara tetraplégico que ela ajuda a redescobrir a sexualidade mesmo em estado de invalidez. 

A estupidez da tirania

Scuola di Atene (Rafael)

A ficção do século XX consagrou dois grandes modelos de sociedade futurista: o modelo 1984 e o modelo Brave New World.

1984 retrata a pura tirania. As pessoas vivem numa tensão perene, com medo de infringir alguma regra, constantemente vigiadas pelo olho onipresente do Big Brother. É uma sociedade de miséria, com racionamento de comida, com uma péssima qualidade de vida. E nada há de novo. Não há arte, não há invenção, ao contrário, há regressão. Os "intelectuais" deste mundo são os responsáveis por editar a enciclopédia e ano após ano retiram termos, extinguem palavras, encolhem o saber e apagam a história.

Em Brave New World, as pessoas vivem em estado de satisfação. Não há tabus morais que reprimam um estilo de vida hedonista. Os relacionamentos são livres e não parece haver um clima de vigilância e criminalização das pessoas, de modo que cada um cuida da sua vida sem preocupações. 

Não que este mundo proposto por Huxley não tenha seus defeitos, mas é muito melhor que o mundo de 1984. É uma sociedade que prospera e que inventa. Há artistas, há cientistas, o cinema oferece real entretenimento, diferente do cinema de 1984 que é pura propaganda política e incitação ao ódio.

Estes dois modelos se repetem nas grandes franquias cósmicas Star Wars e Star Trek. Em Star Wars vemos um mundo que não consegue se acertar politicamente. Império, república, rebelião se alternam em conflitos e nunca nada melhora, as sociedades vivem em tensão. E vemos que é um mundo sucateado. As tecnologias são precárias, embora futuristas (veja-se as naves envelhecidas, os andróides com uma péssima inteligência artificial, a clonagem usada pra criar um exército de soldados trapalhões...).

No mundo de Star Trek, a sociedade conseguiu alcançar certa estabilidade política, de modo que as pessoas podem viver suas vidas, crescer, prosperar, criar. Vemos que as cidades florescem em criatividade, há cientistas, artistas, acadêmicos. A Enterprise e outras naves da Federação viajam pelo espaço com objetivos de enriquecimento cultural e intelectual. Não raro cientistas pegam carona para estudar fenômenos cósmicos.

A moral da história é: em sociedades livres e nas quais o Estado ou  poder estabelecido não impõe uma mão pesada sobre as pessoas, a civilização prospera tanto material quanto intelectual e culturalmente. A arte e o conhecimento são produzidos em abundância porque as pessoas têm liberdade para tal.

A tirania é estúpida por natureza, pois um governante seria muito mais beneficiado por um povo próspero, livre e produtivo. A tirania é o ego dominando o intelecto. É narcisismo e não estratégia.

Stallone dando bronca ao telefone

Rambo II (1985

Em Rambo II (1985) tem uma de tantas cenas icônicas desta franquia que se tornou parte da "fórmula Stallone": Rambo fala no rádio com o Marechal Murdock, cheio de fúria, e faz uma ameaça: "I'm coming to get you!".

Stallone Cobra (1986)
"Você é um cocô".

Já no ano seguinte, no filme Stallone Cobra (1986), uma situação semelhante acontece, quando ele está perseguindo o vilão da história em um armazém ou algo assim e fala no microfone um trecho que ficou famoso no Brasil por causa da tradução zoeira: "Cretino... Você adora dar tiro... Eu odeio gente assim... Você é um imaturo... Você é um cocô e eu vou matar você!".

The Specialist (1994)

The Specialist (1994)

The Specialist (1994)

Outro exemplo foi no filme O Especialista (1994), em que o clichê se repete duas vezes. Primeiro, ele fala ao telefone com o personagem do James Woods, um ex-colega que o traiu. Depois, fala com a personagem da Sharon Stone, também chateado com ela.

Este tipo de cena, o Stallone putaço falando com alguém por um aparelho de comunicação, deve ter várias outras recorrências em Rocky, nos Mercenários, etc, mas por hora fico nestes exemplos.

Taken (2009)

É um clichê que funciona porque cria a sensação de expectativa. O herói badass está putaço e por telefone avisa ao vilão que está chegando. Anos depois, o Lian Neeson deu vida nova a esta fórmula no filme Taken (2009), quando ele faz um discurso ao telefone apresentando seu currículo de fodão e ameaçando o  vilão:

"I don't know who you are. I don't know what you want. If you're looking for ransom, I can tell you I don't have money... but what I do have are a very particular set of skills. Skills I have acquired over a very long career. Skills that make me a nightmare for people like you. If you let my daughter go now, that will be the end of it - I will not look for you, I will not pursue you... but if you don't, I will look for you, I will find you... and I will kill you!".

Machete, o principal personagem da longa filmografia do Danny Trejo

Danny Trejo and Steven Seagal; Machete (2010)
O machete do Danny Trejo contra a katana do Steven Seagal.

A primeira vez em que vi o Danny Trejo foi no filme Con Air (1997) que passava infinitas vezes no SBT. Ele era um entre tantos criminosos naquele avião, mas tinha uma imponência que os outros não tinham. O bicho era um legítimo brucutu e tinha uma fotogenia. A cena em que ele sobe no no telhado e grita "Temos companhia!", com a câmera girando em torno dele, é um bom exemplo.

Com uma carreira de quatro décadas, o cara é onipresente. Parece que ele nunca diz não para um papel. No IMDb ele está creditado como ator mais de 400 vezes, aparecendo em tudo quanto é filme e série. Em alguns casos ele até faz chacota de si mesmo, como em Breaking Bad, onde interpretou um mafioso que contava vantagem e acabou morrendo de forma estúpida. 

Machete (2010) ocupa um lugar especial na looonga filmografia do ator porque é onde ele consagra seu mais famoso herói de ação ao estilo John Wick, só que sem medo de ser tosco. A tosqueira vai do começo ao fim, com cenas de combate que não se importam em ser verossímeis, linhas de diálogo com frases de efeito chiclês, o Machete falando de si mesmo em terceira pessoa, muito gore e uma trama que vai escalando pra ficar cada vez mais absurda. O resultado é excelente.

Uma das melhores cenas é quando ele corta a barriga de um cara e puxa o intestino, usando-o como corda para pular pela janela de um edifício!

Michelle Rodriguez; Machete (2010)
Michelle Rodriguez exibindo seu formidável abdomen.

O nome do personagem é Machete obviamente por esta ser a sua arma preferida, mas vemos que tudo na mão dele vira arma: instrumentos cirúrgicos, facas, armas de fogo, tesoura de poda, cortador de grama... Ele não é o único badass. Jessica Alba e Michelle Rodriguez são super duronas, principalmente a Michelle, que leva um tiro no olho, sobrevive e volta roubando a cena do final do filme. Até o padre da cidade pega em armas quando preciso. 

Apesar de ser um filme despretencioso e nada sério, brincando e zoando o gênero de ação, nos créditos finais ele já anuncia o ambicioso plano de compor uma trilogia, informando que o herói retornará em Machete Kills e Machete Kills Again. 

O Machete Kills realmente veio poucos anos depois, em 2013, quanto ao Machete Kills Again continua aguardando uma oportunidade, mas em 2020 soltaram um poster promocional deste terceiro filme que mais precisamente vai se chamar Machete Kills Again in Space. É, a coisa vai escalar do estilo western para uma opera espacial.

Machete Kills Again in Space

Auau

Um dog auauzando no vizinho.
Para de auauzar, doguinho, eu suplico.
Preciso dormir.

(19,09,2021)

Jason Statham sem camisa em The Meg

The Meg (2018)

No filme Jaws (1975), Steven Spielberg lançou e consagrou uma nova categoria de terror: os filmes de tubarão. Foi uma obra marcante e influente, não só para filmes com tubarões, mas envolvendo o medo de feras gigantes em geral, como a anaconda e o crocodilo. Apesar de ser terror, Jaws tem um certo ar zoeiro, uma pista de como este gênero deve ser tratado.

O terror das feras em filmes é mais um exemplo da vasta influência de Júlio Verne no cinema, pois já no Vinte Mil Léguas Submarinas (1870) ele abordava em alguns momentos a existência de criaturas marinhas enormes e mortais, como o polvo gigante que atacou o submarino Nautilus.

The Meg (2018) faz obviamente uma homenagem ao clássico, escalando o perigo para outro nível, pois agora temos um tubarão pré-histórico abissal gigantesco, o megalodonte, encontrado na Fossa das Marianas. Diferente do filme do Spielberg, desta vez há um brucutu para enfrentar o monstro num mano a mano, o Jason Statham.

O resultado é um filme Sessão da Tarde de ação que não é nem ótimo nem péssimo, é ok. O cinquentão Statham mostrou que está em plena forma física e o Rainn Wilson (o Dwight de The Office) é o capitalista malvadão que no fim vira comida de tubarão. Muita gente é devorada ao longo do filme, mas faltou uma abordagem mais gore, mais assustadora destas cenas.

Enfim, The Meg é mais uma entrte tantas homenagens a Jaws. A verdade é que nenhuma homenagem ao gênero consegue superar a franquia Sharknado, esta sim captou o espírito zueiro do terror de tubarões.

Jason Statham; The Meg (2018)
Sheipaaado!

O poder do medo

Quando um computador é submetido a um grande stress, a um pico de energia, ele superaquece além do limite. Normalmente os computadores têm um mecanismo de segurança contra o superaquecimento: o sistema reinicia, desliga-se e opera um reboot, de modo a retomar o controle de seus processos. Alguns computadores não conseguem disparar este mecanismo de segurança a tempo e queimam. Outros não chegam a queimar, mas também não entram em reboot, ficando presos em um estado de stress perpétuo, como zumbis que já não funcionam com a devida saúde. Em tempos de guerra, é comum o crescimento de um estado de histeria na sociedade humana. Esta histeria é provocada pelo medo que superaquece o sistema e o prende neste loop de pane. Em algumas pessoas, este superaquecimento extrapola os limites e quebra a psiquê, levando à loucura, stress traumático ou suicídio. Outras, após algum tempo, começam a entrar no modo de reboot, retomando a consciência, o equilíbrio necessário para uma vida não dominada pelo medo. Há também aquelas que ficam travadas no perpétuo estado de histeria. Não chegam a surtar, mas também não ativam o mecanismo de defesa do reboot. Uma mente assim dominada torna-se como um computador que foi feito de zumbi por um vírus que invadiu a memória mediante o stress e o superaquecimento. Ela agirá conforme a vontade do software invasor, que então ditará as tarefas para o sistema operacional. É assim que nas guerras os tiranos manipulam o povo, aproveitando o medo que superaquece o sistema para instalar seu controle sobre aqueles que estão travados em estado de pane.

(17,09,2021)

O porquê da democracia

A democracia não é um sistema perfeito ou mesmo ideal, mas é algo realizável, funcional. Sistemas ideais, como o próprio nome diz, existem no mundo das ideias, na imaginação dos utópicos e sonhadores. O ideal existe para contemplação, pois nunca se torna concreto; existe para inspirar e motivar, mas é por natureza algo irrealizável no mundo com toda sua complexidade, caos e imperfeição.

Entre os críticos da democracia, há quem diga que as coisas funcionariam de forma bem mais eficiente numa tecnocracia, onde todos os líderes e operadores de uma sociedade fossem escolhidos por critérios estritamente técnicos. Por exemplo, numa tecnocracia, políticos não seriam pessoas eleitas, mas gente academicamente formada em disciplinas ligadas à política e que ocupariam o cargo via concurso, como acontece com juízes e outros funcionários públicos.

À primeira vista parece uma boa ideia, mas acontece que a política tem camadas que os tecnocratas ignoram. Política é essencialmente a arte da negociação com as pessoas e esta arte não é algo que se aprende em livros. De toda forma, no fim das contas não se trata de escolher alguém pelo seu preparo técnico ou sua capacidade de negociação, trata-se do próprio direito à escolha.

Vejamos um exemplo para entender a lógica da democracia. Uma sociedade de pessoas, uma tribo, se forma pelo crescimento de sua população. Seguindo naturalmente o exemplo da família, a tribo se organiza com líderes, anciões, que, sem eleição, simplesmente se estabelecem por sua experiência, por serem os mais velhos e entendidos do grupo, recebendo tácitamente o reconhecimento dos demais.

Estes anciões ditam as regras e costumes, geralmente baseadas no senso comum, na tradição, no que aprenderam com os anciões do passado. À medida em que a tribo cresce, porém, cresce a diversidade de opiniões e pessoas começam a questionar os anciões, até mesmo no grupo dos anciões, cada vez maior, começam a surgir discordâncias. Surge aí a necessidade de uma centralização mais explícita da liderança. Começa a era dos monarcas.

Um monarca pode se estabelecer a príncípio por mérito. Uma pessoa que praticou atos heróicos, que exerceu liderança em situações de crise, que tem talentos especiais acaba se destacando, virando uma lenda, até um semideus, e com a ajuda dos anciões, organiza um governo centralizado em sua liderança, de modo que os anciões se tornam seus conselheiros, mas é dele que sempre vem a palavra final, evitando assim o caos do conflito de opiniões.

A comunidade continua crescendo e nem mesmo o monarca consegue manter a harmonia. Em alguns casos ele tenta fazer isto pela força, principalmente quando o reino começa a se expandir e entrar em choque com outros reinos e comunidades bárbaras. Surge o imperador, um monarca que se impõe pela força do sistema que já está bem robusto, rico e armado.

A manutenção de um império é cara e complexa, tanto em termos materiais quanto sociais. Se uma sociedade entra em crise e decadência e isto se soma a crises políticas, econômicas e conspirações, um império cai e se estabelece o caos.

Agora a sociedade está desnorteada. Em meio ao caos, diversos grupos combatem para tentar estabelecer a sua ideia de governo. Revolucionários e reacionários se enforcam mutuamente. A guerra civil põe a harmonia da sociedade em crise. Uma maneira desta crise acabar é um dos grupos vencer a guerra e se impor, subjugando os vencidos. 

Acontece que esta não é uma solução pacífica nem duradoura, já que os vencidos sempre estarão insatisfeitos e planejando uma retomada do poder. Isto pode gerar um ciclo perpétuo de tomadas e retomadas do poder, numa sociedade sempre insatisfeita com a ordem estabelecida de forma tirânica.

É aí que entra a proposta da democracia. A democracia propõe: "Façamos o seguinte: que todos os cidadãos se organizem conforme suas afinidades políticas e escolham representantes para cada grupo de interesse. Estes representantes vão disputar uns com os outros por meio da eleição, do voto de todos os cidadãos. O voto da maioria elegerá determinados representantes. O cargo destes tem um prazo limitado, de modo a haver um perpétuo ciclo de eleições que pode facilitar a troca de representantes e alternância de grupos de interesse no poder".

Ou seja, no sistema democrático, o mitológico embate de grupos, que no passado acontecia de maneira concreta por meio de intermináveis guerras e enforcamentos, é transformado em uma disputa simbólica, feita no papel por meio do voto. Toda eleição é uma guerra, mas uma guerra virtual, poupando a sociedade da barbárie pura.

Cansada de guerra e de tragédia, uma sociedade pode com alívio aceitar essa trégua histórica. Todos os lados da disputa (com exceção dos mais extremistas) aceitam a proposta da democracia como um acordo e uma maneira segura de continuarem a travar sua disputa de interesses sem levar a sociedade a um estado de contínuo terror.

Esta é, portanto, a filosofia por trás da democracia. O voto da maioria não existe porque a maioria necessariamente está certa ou tem a melhor ideia, mas existe para pacificar a sociedade. A existência de eleições periódicas existe para oferecer uma oportunidade de troca, de alternância, de mudança de governo sem a necessidade de toda vez se travar uma guerra real. 

Na democracia, portanto, a sociedade não vai necessariamente funcionar da melhor maneira por meio de suas escolhas, mas ela vai evitar que o stress do conflito de interesses suba até o nível de despertar novamente a barbárie humana. 

A democracia é uma ferramenta da civilização, e civilização é um estado de adormecimento da fera humana da barbárie que nunca terá fim, que está sempre ali, latente, escondida em sua caverna, e que não deve ser despertada.

É isto que os tecnocratas não entendem na política e na sociedade: o seu aspecto psíquico. Enxergam apenas o pragmatismo, aquilo que deve ser feito, mas não enxergam os sentimentos humanos. A política real é a arte de negociar com os interesses e também os sentimentos. Não à toa o fato de uma pessoa gostar ou não gostar de um político chega a níveis passionais. Pelo menos a pessoa descarrega estas energias no voto, na liberdade de expressão e nas instituições organizadas.

Este estado de civilidade está sempre andando na corda bamba. O risco de pessoas recorrerem à barbárie está sempre presente. O sistema, sendo imperfeito, também irá passar dos limites e semear insatisfações. 

O importante é que o acordo da sociedade continue de pé, o acordo de seguirem disputando, guerreando, no campo virtual da política, deixando a guerra real e a revolução apenas como uma hipotética carta na manga para o caso da democracia ser tomada por outra coisa pior, como um estado de cruel tirania.

Habemus Matrix 4

Keanu Reeves; Matrix 4 (2021)
John Wick 4, digo, Matrix 4.

Tenho uma relação de amor e decepção com as Wachowski. Matrix (que tem até uma tag dedicada no blog - Matrix) com certeza está na lista dos meus dez filmes preferidos de todos os tempos, mas as diretoras também fizeram um Jupiter Ascending da vida (2015)¹, que tem um conceito interessante em termos de sci-fi (a ideia de um império alienígena que cultiva as civilizações nos planetas como gado), mas a execução do filme é insossa. Cloud Atlas (2012) tem um roteiro brilhante, mas o filme é sonolento e eu não assistiria novamente. Sense8 (2015-2018)² tenta inovar no gênero de super-heróis, mas também não é uma história que dê vontade de rever.

Matrix segue sendo a grande obra da dupla, uma ficção imortal, atemporal. No próximo século, mesmo que já se torne antiquada nos efeitos especiais e no futurismo, será ainda uma obra influente e memorável, como ainda é hoje o secular Metropolis (1927).

Logo, é óbvio que fiquei empolgado quando soube que viria Matrix 4 (agora dirigido apenas por uma Wachowski, a Lana) e eis que veio um trailer. O curioso detalhe que chama atenção logo de cara é o fato do Keanu Reeves estar com seu cabelo de Jesus que ficou consagrado na série John Wick, diferente do clássico Neo que tinha o cabelo curtinho que lhe dava um ar mais robótico (aquele visual do Neo era proposital para gerar esta dúvida se ele era mesmo humano ou um software), mas tudo bem, o importante é que o Keanu Reeves está de volta à franquia.

O trailer não entrega muito, o que é bom. Além da história, que na época e ainda hoje tem um conceito mindblowing, Matrix marcou uma geração por sua estética, os efeitos visuais, a ambientação futurista daquele mundo. Hoje já estamos tão acostumados com efeitos de CGI que talvez este filme nem consiga nos surpreender neste aspecto, apenas entregando o esperado, algo nível Marvel, mas a criatividade Wachowski pode fazer diferença na maneira de usar estes recursos visuais, algo que o Nolan também sabe fazer.

O importante é que finalmente a franquia ressuscitou após 20 anos e mal posso esperar pra ver.

Matrix 4 (2021)
Alice e o coelho, um dos símbolos mais peculiares de Matrix.

Notas:


Sobre Robocop, justiça sumária, barbárie e tecnologia

Robocop (1987)

A ficção tem alguns curiosos exemplos de personagens que ocupam uma função que mescla policial, juiz e executor. 

O Robocop, que teve início em um filme de 1987, é um dos mais famosos exemplos deste tipo de personagem. Um humano modificado, de modo a ser parcialmente um ciborgue, ele carrega em sua memória orgânico-digital um código criminal e tem autorização para julgar qualquer pessoa a qualquer momento com base neste código, bem como executar a pena no mesmo instante.

Em se tratando de ficção, é interessante um personagem assim. Robocop é badass, implacável. Personagens que fazem execução sumária nos encantam, esta é a verdade. Justiceiros nos encantam, pois eles encarnam o nosso anseio por justiça rápida e garantida, diferente da vida real, quando um crime pode passar até décadas sem ser punido, enrolado em burocracias sem fim.

Jiban
"Te dou um queijo, Jiban!"

Inspirado no Robocop, em 1989 surgiu o tokusatsu do policial ciborgue Jiban que igualmente tinha estes poderes acumulados e "heroicamente" julgava seus inimigos sem impedimentos.

Uma década antes do Robocop, surgiu nos quadrinhos o Juiz Dredd, em 1977. Melhor do que ninguém, ele ilustra o conceito de um "juiz ambulante", um juiz-carrasco. No mundo distópico do personagem, o aumento da criminalidade em cidades superpovoadas colapsou o sistema judicial tradicional, de modo que a solução radical foi dar poderes a uma elite de policiais para que façam todo o processo criminal de forma arbitrária e imediata.

Judge Dredd

Execuções sumárias são típicas de sociedades em estado de barbárie. Em épocas de guerra, convulsão social e grande crise e miséria este comportamento vai se estabelecendo e normalizando. A prática do linchamento é a versão coletiva do juiz-carrasco. Neste caso, é um grupo local que toma para si o poder de julgar e punir de forma imediata. É comum que linchamentos ocorram devido à fúria e insatisfação da população diante da morosidade da justiça oficial.

A justiça sumária é tentadora, mas muito perigosa. Não raro casos de justiça deste tipo se mostram na verdade uma grande injustiça. Uma população pode ser atiçada contra uma pessoa por causa de um boato, uma mentira, e executar um linchamento contra um pobre inocente vítima de calúnia. Isto acontece justamente porque a justiça sumária não se dá ao devido trabalho de investigar o crime.

À medida em que civilizações avançam, elas se tornam mais complexas e inevitavelmente mais burocráticas no seu sistema judicial. Hoje em dia a coisa é tão intrincada que um julgamento pode passar por várias instâncias, ser anulado, revisado, o réu pode não apenas recorrer e questionar a decisão judicial, como pode também mover um processo, caso considere que está sendo julgado por um crime que não cometeu. 

O problema não é a burocracia. Ao contrário. A burocracia e toda e complexidade deste processo é algo que previne a sociedade de punir injustamente alguém. Eis o princípio da presunção de inocência. A presunção de inocência dignifica o ser humano, reconhece que todos têm a chance de se defender de uma acusação. É uma das maiores conquistas da civilização em termos de valorização da vida humana. 

Por outro lado, a excessiva burocracia moderna pode criar situações bem kafkianas em que pessoas se veem envolvidas em intermináveis julgamentos, além disso os corruptos, incluindo pessoas que fazem parte do sistema judiciário, podem tirar proveito desta burocracia, encontrar brechas ou abusar de seus poderes para incriminar inocentes e livrar culpados. 

Este é um problema do sistema moderno, mas convenhamos que é um mal menor se comparado à lei de talião dos bárbaros. Pensando de forma otimista, estamos em uma fase de transição entre o péssimo e o ótimo. O péssimo é a justiça antiga da barbárie, o ótimo é a justiça futura melhorada pela tecnologia. Estamos no meio, numa justiça da papelada, das pilhas de processos que sobrecarregam o sistema.

A tecnologia trouxe terrores à humanidade, mas no balanço geral ela sempre fez mais bem do que mal. Os avanços tecnológicos melhoraram as condições de vida das populações, geraram riqueza, facilitaram o acesso a bens e serviços, ampliaram a comunicação e a difusão de informação, etc, etc.

Logo, gosto de pensar que os softwares vão cada vez mais ajudar policiais, juízes, promotores e advogados a agilizar seu trabalho, processando em dias ou horas uma quantidade de dados, analisando evidências e consultando leis em um volume que um ser humano levaria anos para processar. A papelada vai acabar um dia. Esta é a boa notícia.

A má notícia é que a tecnologia também aumentará a vigilância sobre todos, chegando a um nível invasivo (como já é) e contaminando a presunção de inocência com um estado de constante suspeita sobre tudo e todos. Eis o Big Brother, olhando todos, vigiando todos, o que pode criar um sentimento de que temos um vigia a nos olhar perpetuamente, o que é no mínimo desagradável, leva as pessoas a viver sob o medo do olho onipotente, uma espécie de tecno-teocracia.

A barbárie, então, pode existir também em uma sociedade tecnologicamente avançada. Uma barbárie que usa a tecnologia como ferramenta é um risco, é o que a ficção científica distópica constantemente nos alerta. Devemos ficar atentos sempre que a sociedade começe a flertar com o retorno da barbárie, ainda mais quando vem fortalecida pela tecnologia.