Qaligrafia
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Helen Hunt, a terapeuta amorosa

Helen Hunt

É comum atores se especializarem em determinados tipos de personagens. É o chamado typecast. Isto tem lá suas vantagens, pois é mais fácil convencer o público quando um personagem se encaixa no tipo do ator. 

Eis que estes dias me dei conta que a Helen Hunt possui um typecast bem peculiar: a mulher "terapeuta de caras problemáticos".

Ela é tipo uma santa, cheia de paciência e maturidade, lidando com parceiros que desafiam a saúde do relacionamento. Em The Waterdance (1992), o namorado dela sofre um acidente e fica numa cadeira de rodas e ela vai precisar de muita disposição pra se adaptar e lidar com o amargor que tomou conta do cara. 

Em As Good as it Gets (1997), ela conhece o insuportável personagem do Jack Nicholson, um cinquentão rabugento que só sabe tratar mal as pessoas. Com muita paciência, ela acaba tornando o velho mais simpático.

Em Cast Away (2000) o marido dela é gente boa, mas se perde em um naufrágio, de modo que a coitada vai experimentar o luto e depois a estranha surpresa de reencontrá-lo vivo. Ela tem mesmo um azar para relacionamentos.

Por fim, em The Sessions (2012) ela é literalmente uma terapeuta, no caso, sexual. Seu paciente é um cara tetraplégico que ela ajuda a redescobrir a sexualidade mesmo em estado de invalidez. 

A estupidez da tirania

Scuola di Atene (Rafael)

A ficção do século XX consagrou dois grandes modelos de sociedade futurista: o modelo 1984 e o modelo Brave New World.

1984 retrata a pura tirania. As pessoas vivem numa tensão perene, com medo de infringir alguma regra, constantemente vigiadas pelo olho onipresente do Big Brother. É uma sociedade de miséria, com racionamento de comida, com uma péssima qualidade de vida. E nada há de novo. Não há arte, não há invenção, ao contrário, há regressão. Os "intelectuais" deste mundo são os responsáveis por editar a enciclopédia e ano após ano retiram termos, extinguem palavras, encolhem o saber e apagam a história.

Em Brave New World, as pessoas vivem em estado de satisfação. Não há tabus morais que reprimam um estilo de vida hedonista. Os relacionamentos são livres e não parece haver um clima de vigilância e criminalização das pessoas, de modo que cada um cuida da sua vida sem preocupações. 

Não que este mundo proposto por Huxley não tenha seus defeitos, mas é muito melhor que o mundo de 1984. É uma sociedade que prospera e que inventa. Há artistas, há cientistas, o cinema oferece real entretenimento, diferente do cinema de 1984 que é pura propaganda política e incitação ao ódio.

Estes dois modelos se repetem nas grandes franquias cósmicas Star Wars e Star Trek. Em Star Wars vemos um mundo que não consegue se acertar politicamente. Império, república, rebelião se alternam em conflitos e nunca nada melhora, as sociedades vivem em tensão. E vemos que é um mundo sucateado. As tecnologias são precárias, embora futuristas (veja-se as naves envelhecidas, os andróides com uma péssima inteligência artificial, a clonagem usada pra criar um exército de soldados trapalhões...).

No mundo de Star Trek, a sociedade conseguiu alcançar certa estabilidade política, de modo que as pessoas podem viver suas vidas, crescer, prosperar, criar. Vemos que as cidades florescem em criatividade, há cientistas, artistas, acadêmicos. A Enterprise e outras naves da Federação viajam pelo espaço com objetivos de enriquecimento cultural e intelectual. Não raro cientistas pegam carona para estudar fenômenos cósmicos.

A moral da história é: em sociedades livres e nas quais o Estado ou  poder estabelecido não impõe uma mão pesada sobre as pessoas, a civilização prospera tanto material quanto intelectual e culturalmente. A arte e o conhecimento são produzidos em abundância porque as pessoas têm liberdade para tal.

A tirania é estúpida por natureza, pois um governante seria muito mais beneficiado por um povo próspero, livre e produtivo. A tirania é o ego dominando o intelecto. É narcisismo e não estratégia.

Stallone dando bronca ao telefone

Rambo II (1985

Em Rambo II (1985) tem uma de tantas cenas icônicas desta franquia que se tornou parte da "fórmula Stallone": Rambo fala no rádio com o Marechal Murdock, cheio de fúria, e faz uma ameaça: "I'm coming to get you!".

Stallone Cobra (1986)
"Você é um cocô".

Já no ano seguinte, no filme Stallone Cobra (1986), uma situação semelhante acontece, quando ele está perseguindo o vilão da história em um armazém ou algo assim e fala no microfone um trecho que ficou famoso no Brasil por causa da tradução zoeira: "Cretino... Você adora dar tiro... Eu odeio gente assim... Você é um imaturo... Você é um cocô e eu vou matar você!".

The Specialist (1994)

The Specialist (1994)

The Specialist (1994)

Outro exemplo foi no filme O Especialista (1994), em que o clichê se repete duas vezes. Primeiro, ele fala ao telefone com o personagem do James Woods, um ex-colega que o traiu. Depois, fala com a personagem da Sharon Stone, também chateado com ela.

Este tipo de cena, o Stallone putaço falando com alguém por um aparelho de comunicação, deve ter várias outras recorrências em Rocky, nos Mercenários, etc, mas por hora fico nestes exemplos.

Taken (2009)

É um clichê que funciona porque cria a sensação de expectativa. O herói badass está putaço e por telefone avisa ao vilão que está chegando. Anos depois, o Lian Neeson deu vida nova a esta fórmula no filme Taken (2009), quando ele faz um discurso ao telefone apresentando seu currículo de fodão e ameaçando o  vilão:

"I don't know who you are. I don't know what you want. If you're looking for ransom, I can tell you I don't have money... but what I do have are a very particular set of skills. Skills I have acquired over a very long career. Skills that make me a nightmare for people like you. If you let my daughter go now, that will be the end of it - I will not look for you, I will not pursue you... but if you don't, I will look for you, I will find you... and I will kill you!".

Machete, o principal personagem da longa filmografia do Danny Trejo

Danny Trejo and Steven Seagal; Machete (2010)
O machete do Danny Trejo contra a katana do Steven Seagal.

A primeira vez em que vi o Danny Trejo foi no filme Con Air (1997) que passava infinitas vezes no SBT. Ele era um entre tantos criminosos naquele avião, mas tinha uma imponência que os outros não tinham. O bicho era um legítimo brucutu e tinha uma fotogenia. A cena em que ele sobe no no telhado e grita "Temos companhia!", com a câmera girando em torno dele, é um bom exemplo.

Com uma carreira de quatro décadas, o cara é onipresente. Parece que ele nunca diz não para um papel. No IMDb ele está creditado como ator mais de 400 vezes, aparecendo em tudo quanto é filme e série. Em alguns casos ele até faz chacota de si mesmo, como em Breaking Bad, onde interpretou um mafioso que contava vantagem e acabou morrendo de forma estúpida. 

Machete (2010) ocupa um lugar especial na looonga filmografia do ator porque é onde ele consagra seu mais famoso herói de ação ao estilo John Wick, só que sem medo de ser tosco. A tosqueira vai do começo ao fim, com cenas de combate que não se importam em ser verossímeis, linhas de diálogo com frases de efeito chiclês, o Machete falando de si mesmo em terceira pessoa, muito gore e uma trama que vai escalando pra ficar cada vez mais absurda. O resultado é excelente.

Uma das melhores cenas é quando ele corta a barriga de um cara e puxa o intestino, usando-o como corda para pular pela janela de um edifício!

Michelle Rodriguez; Machete (2010)
Michelle Rodriguez exibindo seu formidável abdomen.

O nome do personagem é Machete obviamente por esta ser a sua arma preferida, mas vemos que tudo na mão dele vira arma: instrumentos cirúrgicos, facas, armas de fogo, tesoura de poda, cortador de grama... Ele não é o único badass. Jessica Alba e Michelle Rodriguez são super duronas, principalmente a Michelle, que leva um tiro no olho, sobrevive e volta roubando a cena do final do filme. Até o padre da cidade pega em armas quando preciso. 

Apesar de ser um filme despretencioso e nada sério, brincando e zoando o gênero de ação, nos créditos finais ele já anuncia o ambicioso plano de compor uma trilogia, informando que o herói retornará em Machete Kills e Machete Kills Again. 

O Machete Kills realmente veio poucos anos depois, em 2013, quanto ao Machete Kills Again continua aguardando uma oportunidade, mas em 2020 soltaram um poster promocional deste terceiro filme que mais precisamente vai se chamar Machete Kills Again in Space. É, a coisa vai escalar do estilo western para uma opera espacial.

Machete Kills Again in Space

Auau

Um dog auauzando no vizinho.
Para de auauzar, doguinho, eu suplico.
Preciso dormir.

(19,09,2021)

Jason Statham sem camisa em The Meg

The Meg (2018)

No filme Jaws (1975), Steven Spielberg lançou e consagrou uma nova categoria de terror: os filmes de tubarão. Foi uma obra marcante e influente, não só para filmes com tubarões, mas envolvendo o medo de feras gigantes em geral, como a anaconda e o crocodilo. Apesar de ser terror, Jaws tem um certo ar zoeiro, uma pista de como este gênero deve ser tratado.

O terror das feras em filmes é mais um exemplo da vasta influência de Júlio Verne no cinema, pois já no Vinte Mil Léguas Submarinas (1870) ele abordava em alguns momentos a existência de criaturas marinhas enormes e mortais, como o polvo gigante que atacou o submarino Nautilus.

The Meg (2018) faz obviamente uma homenagem ao clássico, escalando o perigo para outro nível, pois agora temos um tubarão pré-histórico abissal gigantesco, o megalodonte, encontrado na Fossa das Marianas. Diferente do filme do Spielberg, desta vez há um brucutu para enfrentar o monstro num mano a mano, o Jason Statham.

O resultado é um filme Sessão da Tarde de ação que não é nem ótimo nem péssimo, é ok. O cinquentão Statham mostrou que está em plena forma física e o Rainn Wilson (o Dwight de The Office) é o capitalista malvadão que no fim vira comida de tubarão. Muita gente é devorada ao longo do filme, mas faltou uma abordagem mais gore, mais assustadora destas cenas.

Enfim, The Meg é mais uma entrte tantas homenagens a Jaws. A verdade é que nenhuma homenagem ao gênero consegue superar a franquia Sharknado, esta sim captou o espírito zueiro do terror de tubarões.

Jason Statham; The Meg (2018)
Sheipaaado!

O poder do medo

Quando um computador é submetido a um grande stress, a um pico de energia, ele superaquece além do limite. Normalmente os computadores têm um mecanismo de segurança contra o superaquecimento: o sistema reinicia, desliga-se e opera um reboot, de modo a retomar o controle de seus processos. Alguns computadores não conseguem disparar este mecanismo de segurança a tempo e queimam. Outros não chegam a queimar, mas também não entram em reboot, ficando presos em um estado de stress perpétuo, como zumbis que já não funcionam com a devida saúde. Em tempos de guerra, é comum o crescimento de um estado de histeria na sociedade humana. Esta histeria é provocada pelo medo que superaquece o sistema e o prende neste loop de pane. Em algumas pessoas, este superaquecimento extrapola os limites e quebra a psiquê, levando à loucura, stress traumático ou suicídio. Outras, após algum tempo, começam a entrar no modo de reboot, retomando a consciência, o equilíbrio necessário para uma vida não dominada pelo medo. Há também aquelas que ficam travadas no perpétuo estado de histeria. Não chegam a surtar, mas também não ativam o mecanismo de defesa do reboot. Uma mente assim dominada torna-se como um computador que foi feito de zumbi por um vírus que invadiu a memória mediante o stress e o superaquecimento. Ela agirá conforme a vontade do software invasor, que então ditará as tarefas para o sistema operacional. É assim que nas guerras os tiranos manipulam o povo, aproveitando o medo que superaquece o sistema para instalar seu controle sobre aqueles que estão travados em estado de pane.

(17,09,2021)

O porquê da democracia

A democracia não é um sistema perfeito ou mesmo ideal, mas é algo realizável, funcional. Sistemas ideais, como o próprio nome diz, existem no mundo das ideias, na imaginação dos utópicos e sonhadores. O ideal existe para contemplação, pois nunca se torna concreto; existe para inspirar e motivar, mas é por natureza algo irrealizável no mundo com toda sua complexidade, caos e imperfeição.

Entre os críticos da democracia, há quem diga que as coisas funcionariam de forma bem mais eficiente numa tecnocracia, onde todos os líderes e operadores de uma sociedade fossem escolhidos por critérios estritamente técnicos. Por exemplo, numa tecnocracia, políticos não seriam pessoas eleitas, mas gente academicamente formada em disciplinas ligadas à política e que ocupariam o cargo via concurso, como acontece com juízes e outros funcionários públicos.

À primeira vista parece uma boa ideia, mas acontece que a política tem camadas que os tecnocratas ignoram. Política é essencialmente a arte da negociação com as pessoas e esta arte não é algo que se aprende em livros. De toda forma, no fim das contas não se trata de escolher alguém pelo seu preparo técnico ou sua capacidade de negociação, trata-se do próprio direito à escolha.

Vejamos um exemplo para entender a lógica da democracia. Uma sociedade de pessoas, uma tribo, se forma pelo crescimento de sua população. Seguindo naturalmente o exemplo da família, a tribo se organiza com líderes, anciões, que, sem eleição, simplesmente se estabelecem por sua experiência, por serem os mais velhos e entendidos do grupo, recebendo tácitamente o reconhecimento dos demais.

Estes anciões ditam as regras e costumes, geralmente baseadas no senso comum, na tradição, no que aprenderam com os anciões do passado. À medida em que a tribo cresce, porém, cresce a diversidade de opiniões e pessoas começam a questionar os anciões, até mesmo no grupo dos anciões, cada vez maior, começam a surgir discordâncias. Surge aí a necessidade de uma centralização mais explícita da liderança. Começa a era dos monarcas.

Um monarca pode se estabelecer a príncípio por mérito. Uma pessoa que praticou atos heróicos, que exerceu liderança em situações de crise, que tem talentos especiais acaba se destacando, virando uma lenda, até um semideus, e com a ajuda dos anciões, organiza um governo centralizado em sua liderança, de modo que os anciões se tornam seus conselheiros, mas é dele que sempre vem a palavra final, evitando assim o caos do conflito de opiniões.

A comunidade continua crescendo e nem mesmo o monarca consegue manter a harmonia. Em alguns casos ele tenta fazer isto pela força, principalmente quando o reino começa a se expandir e entrar em choque com outros reinos e comunidades bárbaras. Surge o imperador, um monarca que se impõe pela força do sistema que já está bem robusto, rico e armado.

A manutenção de um império é cara e complexa, tanto em termos materiais quanto sociais. Se uma sociedade entra em crise e decadência e isto se soma a crises políticas, econômicas e conspirações, um império cai e se estabelece o caos.

Agora a sociedade está desnorteada. Em meio ao caos, diversos grupos combatem para tentar estabelecer a sua ideia de governo. Revolucionários e reacionários se enforcam mutuamente. A guerra civil põe a harmonia da sociedade em crise. Uma maneira desta crise acabar é um dos grupos vencer a guerra e se impor, subjugando os vencidos. 

Acontece que esta não é uma solução pacífica nem duradoura, já que os vencidos sempre estarão insatisfeitos e planejando uma retomada do poder. Isto pode gerar um ciclo perpétuo de tomadas e retomadas do poder, numa sociedade sempre insatisfeita com a ordem estabelecida de forma tirânica.

É aí que entra a proposta da democracia. A democracia propõe: "Façamos o seguinte: que todos os cidadãos se organizem conforme suas afinidades políticas e escolham representantes para cada grupo de interesse. Estes representantes vão disputar uns com os outros por meio da eleição, do voto de todos os cidadãos. O voto da maioria elegerá determinados representantes. O cargo destes tem um prazo limitado, de modo a haver um perpétuo ciclo de eleições que pode facilitar a troca de representantes e alternância de grupos de interesse no poder".

Ou seja, no sistema democrático, o mitológico embate de grupos, que no passado acontecia de maneira concreta por meio de intermináveis guerras e enforcamentos, é transformado em uma disputa simbólica, feita no papel por meio do voto. Toda eleição é uma guerra, mas uma guerra virtual, poupando a sociedade da barbárie pura.

Cansada de guerra e de tragédia, uma sociedade pode com alívio aceitar essa trégua histórica. Todos os lados da disputa (com exceção dos mais extremistas) aceitam a proposta da democracia como um acordo e uma maneira segura de continuarem a travar sua disputa de interesses sem levar a sociedade a um estado de contínuo terror.

Esta é, portanto, a filosofia por trás da democracia. O voto da maioria não existe porque a maioria necessariamente está certa ou tem a melhor ideia, mas existe para pacificar a sociedade. A existência de eleições periódicas existe para oferecer uma oportunidade de troca, de alternância, de mudança de governo sem a necessidade de toda vez se travar uma guerra real. 

Na democracia, portanto, a sociedade não vai necessariamente funcionar da melhor maneira por meio de suas escolhas, mas ela vai evitar que o stress do conflito de interesses suba até o nível de despertar novamente a barbárie humana. 

A democracia é uma ferramenta da civilização, e civilização é um estado de adormecimento da fera humana da barbárie que nunca terá fim, que está sempre ali, latente, escondida em sua caverna, e que não deve ser despertada.

É isto que os tecnocratas não entendem na política e na sociedade: o seu aspecto psíquico. Enxergam apenas o pragmatismo, aquilo que deve ser feito, mas não enxergam os sentimentos humanos. A política real é a arte de negociar com os interesses e também os sentimentos. Não à toa o fato de uma pessoa gostar ou não gostar de um político chega a níveis passionais. Pelo menos a pessoa descarrega estas energias no voto, na liberdade de expressão e nas instituições organizadas.

Este estado de civilidade está sempre andando na corda bamba. O risco de pessoas recorrerem à barbárie está sempre presente. O sistema, sendo imperfeito, também irá passar dos limites e semear insatisfações. 

O importante é que o acordo da sociedade continue de pé, o acordo de seguirem disputando, guerreando, no campo virtual da política, deixando a guerra real e a revolução apenas como uma hipotética carta na manga para o caso da democracia ser tomada por outra coisa pior, como um estado de cruel tirania.

Habemus Matrix 4

Keanu Reeves; Matrix 4 (2021)
John Wick 4, digo, Matrix 4.

Tenho uma relação de amor e decepção com as Wachowski. Matrix (que tem até uma tag dedicada no blog - Matrix) com certeza está na lista dos meus dez filmes preferidos de todos os tempos, mas as diretoras também fizeram um Jupiter Ascending da vida (2015)¹, que tem um conceito interessante em termos de sci-fi (a ideia de um império alienígena que cultiva as civilizações nos planetas como gado), mas a execução do filme é insossa. Cloud Atlas (2012) tem um roteiro brilhante, mas o filme é sonolento e eu não assistiria novamente. Sense8 (2015-2018)² tenta inovar no gênero de super-heróis, mas também não é uma história que dê vontade de rever.

Matrix segue sendo a grande obra da dupla, uma ficção imortal, atemporal. No próximo século, mesmo que já se torne antiquada nos efeitos especiais e no futurismo, será ainda uma obra influente e memorável, como ainda é hoje o secular Metropolis (1927).

Logo, é óbvio que fiquei empolgado quando soube que viria Matrix 4 (agora dirigido apenas por uma Wachowski, a Lana) e eis que veio um trailer. O curioso detalhe que chama atenção logo de cara é o fato do Keanu Reeves estar com seu cabelo de Jesus que ficou consagrado na série John Wick, diferente do clássico Neo que tinha o cabelo curtinho que lhe dava um ar mais robótico (aquele visual do Neo era proposital para gerar esta dúvida se ele era mesmo humano ou um software), mas tudo bem, o importante é que o Keanu Reeves está de volta à franquia.

O trailer não entrega muito, o que é bom. Além da história, que na época e ainda hoje tem um conceito mindblowing, Matrix marcou uma geração por sua estética, os efeitos visuais, a ambientação futurista daquele mundo. Hoje já estamos tão acostumados com efeitos de CGI que talvez este filme nem consiga nos surpreender neste aspecto, apenas entregando o esperado, algo nível Marvel, mas a criatividade Wachowski pode fazer diferença na maneira de usar estes recursos visuais, algo que o Nolan também sabe fazer.

O importante é que finalmente a franquia ressuscitou após 20 anos e mal posso esperar pra ver.

Matrix 4 (2021)
Alice e o coelho, um dos símbolos mais peculiares de Matrix.

Notas:


New World, primeiras impressões do pré-lançamento

New World

New World é um MMORPG promissor ou no mínimo corajoso, pois é o projeto de um studio novo de games, da Amazon, entrando em um mercado já velho e relativamente nichado. 

MMOs já reinaram na década passada, até perderem o trono para o MOBA, o FPS competitivo e os joguinhos de celular. Houve um tempo em que era moda jogar algum RPG multiplayer e hoje a coisa se tornou meio nostálgica. A verdade é que o gênero nunca morreu e Runescape, Tibia, WoW e afins continuam aí vivos e fazendo grana, mas parece um gênero que não aceitaria novidades. Aí veio o New World.

A Amazon parece que tem tratado com atenção este projeto e é certo que está fazendo uma mineração de dados gigantesca para entender o público e oferecer um jogo que o fidelize. Eis o motivo de tantos atrasos no lançamento. Já teve alguns betas e neste final de semana veio mais um, agora aberto, gratuito na Steam para quem quiser testar.

O lançamento definitivo, que seria 31 de Agosto, agora foi adiado para 28 de Setembro, mas acho que dessa vez vai. Pela primeira vez experimentei o jogo e tirei minhas próprias impressões, pois até então eu só conhecia de assistir algumas lives na Twitch.

Otimização

O primeiro aspecto que deve chamar atenção de todo mundo que joga pela primeira vez o NW é quanto à otimização, pois o comentário frequente é de que ele é pesado mesmo para quem tem PCs robustos, com placas de ponta, como a 3090. 

Bom, eu testei no meu modesto PC com um chip i5 (mas de 10a geração) e uma placa 1050 Ti. No primeiro carregamento do jogo, creio que ele escolheu a configuração ideal para meu sistema, de modo que a qualidade gráfica estava no médio. Neste caso, fiquei com uma taxa de 30-40 FPS, o que é aceitável para um jogo pesado num PC básico e não chega a incomodar, não teve lag nem saltos e teleportes ou objetos renderizando com atraso. 

A renderização, aliás, tem uma agilidade interessante. Geralmente em jogos com mapa grande, à medida em que você vai caminhando, chega em um ponto em que é preciso carregar outro pedaço do mapa, aí você é interrompido por um segundinho de loading, mas não vi isso acontecer em momento algum. De alguma forma conseguiram fazer um carregamento contínuo do mapa de uma forma fluida, smooth.

Provavelmente deve haver algum loading em PCs com HD ou mesmo SSD sata. Como estou usando um SSD NVMe, que é 3x mais rápido que um sata, o tráfego dos dados do mapa do SSD para a memória é mais fluido.

O jogo dá uma impressão ambígua quanto à otimização. Levando em conta o enorme volume de dados, o mapa detalhista e cheio de bichos e coletáveis, pode-se dizer que é um jogo otimizado, pois há relatos de gente jogando com uma CPU i3 ou uma placa de vídeo antiga. Por outro lado, ele exige bastante do hardware. O consumo de memória, por exemplo, ficou para mim na faixa dos 10-12 Gb com os gráficos no mínimo. No médio chegava a 14 Gb (e uso dois pentes de 8).

Consegui rodar no alto e no ultra, ficando com 20 FPS e levando ao limite as peças do hardware, mas dá até um medo de superaquecer. Então geralmente fiquei jogando no mínimo, mas dá pra jogar tranquilo no médio. Infelizmente não vou ter a satisfação de ficar apreciando a beleza e as cores do cenário, pois é um cenário lindíssimo, mas mesmo no mínimo ainda é apreciável e, quando ocasionalmente achar um lugar digno de um print, posso subir os gráficos por um momento pra tirar a fotinha. Sempre gostei de printar o mapa quando acho algo interessante.

Mapa

O mapa, mesmo no beta, já parece bem grande e há indícios que será maior no lançamento, talvez até o dobro do tamanho. Fiz uma experiência de caminhar na beira de uma praia por dez minutos e só consegui percorrer uma faixa minúscula do mapa. Num cálculo bem superficial, estimei que a volta completa levaria umas duas horas de corrida a pé, e isto só pra conhecer toda a praia do jogo. A área interna do mapa levaria umas dezenas de horas para percorrer inteira.

Uma das perguntas que mais vi nos chats foi quanto à montaria. Alguns MMOs têm montaria, outros não. Não é necessariamente algo essencial. Essencial são os pontos de viagem rápida, de teleporte. Isto o jogo tem e você vai desbloqueando à medida em que explora o mapa.

No Tibia, após muitos anos, lançaram as montarias que dão um bônus de velocidade, mas antes já havia a magia utani hur e as botas com bônus que fazem muita diferença. 

No Runescape, você tem o modo de caminhada lenta e de corrida, mas a corrida gasta energia e em certo ponto você vai ter que parar pra descansar. Só que as opções de viagem rápida e teleporte no Runescape são diversas.

No New World a corrida não cansa e tem um recurso de corrida automática, de modo que você pode deixar o boneco correndo sem parar e ele até escala e pula obstáculos por conta própria, mas a verdade é que tem que correr muito nesse mapa. Os players já o apelidaram de walking simulator. 

Só que toda essa caminhada parece proposital. No começo custa caro usar os pontos de teleporte, pois custam o material azoth. O jogador no começo tem que explorar o mapa pra desbloquear os pontos de teleporte e no caminho vai conhecendo as coisas. Há inclusive recompensas de pontos de reputação à medida em que você vai descobrindo áreas novas. O jogo recompensa quem se dedica a explorar.

O fato é que o NW tem um mapa grande e bonito, com bastante conteúdo pra quem gosta de explorar. 

Coleta e crafting

E, olha, o mapa é detalhadíssimo. Nos arquivos do jogo na pasta da Steam, existem uns três ou quatro arquivos só com a textura da grama, somando mais de 3 Gb de dados. A vegetação é rica, cheia de grama, flores, arbustos, árvores e outros tipos coletáveis como junco, cânhamo, nozes, cogumelos, etc. Para quem curte coleta, o mapa é um prato cheio.

Além disso, esta vegetação não é estática, mas animada. A grama e as árvores dançam com o vento, se você usa uma magia de fogo, a grama em volta é queimada. A animação da árvore quando você a derruba com machado de lenhador é belíssima. A árvore não desaparece simplesmente, ela desaba e pode até rolar um pouco se o chão for inclinado. 

O som do machado na madeira é um verdadeiro ASMR, de modo que é agradável e relaxante ficar cortando lenha. O mesmo acontece com o som da picareta na mineração. Se você está no meio da floresta, as batidas da picareta ou do machado ecoam pelas montanhas e têm um retorno, um efeito bem imersivo que faz você se sentir realmente dentro do cenário.

Para completar a experiência de coleta, existe o esfolamento de animais, como lobos, coelhos, cervos e aves. Até aqui, então, temos um aspecto do jogo que é bem no estilo de simuladores de selva, onde você caça e esfola animais, colhe a vegetação, derruba árvores e minera rochas. É possível se dedicar só a isso, se especializar como um coletor.

Comparando com Runescape, graficamente a experiência é mais avançada, pois Runescape tem um visual mais cartunesco, mas obviamente o velho MMO é bem mais complexo, tem várias skins e equipamentos para coletores, que dão mais vida à brincadeira. Tipo, no Runescape tem trajes de lenhador, de caçador, de pescador, etc. O New World ainda vai precisar de muitos anos para lançar mais trajes e skins.

O corte de lenha no Runescape também tem uma curva de progresso melhor, pois há vários tipos de árvore para cada nível, de modo que você é recompensado quando upa, podendo experimentar novas árvores. No NW você começa coletando arbustos, depois árvores jovens, aí tem uma grande lacuna e só no nível 50 você pode coletar árvore adulta e tem outros tipos mais raros que só bem mais adiante é possível cortar.

Árvore, pelo menos, tem em toda parte e é uma tarefa fácil de fazer. Já a mineração está bem chatinha, pois é preciso andar muito até achar filões de ferro, prata, etc. Pedra é fácil de achar, mas os metais, que são realmente o que importa no crafting, são difíceis, não tem nenhum ícone no mapa indicando o local dos filões e em alguns casos a mina é cheia de bichos que você tem que matar constantemente, de modo que a atividade de mineração não é focada, como a de lenhador. É preciso ficar alternando entre mineração e combate.

Por fim, no quesito coleta tem a pesca. Achei esta tarefa bem satisfatória e ASMR. O barulhinho da linha da corda, do peixe chapinhando na água, é tudo agradável. Diferente do Runescape, em que a pesca é mais automática, no NW cada peixe exige um trabalho de puxar a linha com cuidado para não arrebentar. É uma tarefa para quando você quer ficar parado, conversando no chat, usando apenas a mão do mouse. Enfim, é uma distração relaxante.

Apesar de ainda faltar muito aprimoramento, a coleta, para um jogo recém lançado, já oferece muito o que fazer. O jogo realmente se dedicou a oferecer algo para este tipo de player que gosta mais de atividades assim, simulando a vida rural. Depois do lançamento, creio que surgirá toda uma categoria de jogadores dedicados a coletar e fazer grana vendendo os itens no mercado. 

Diferente de muitos MMOs que recompensam mais quem se dedica a PvP ou PvE, no NW você ganha bastante experiência coletando e pode upar o nível do personagem só nestas tarefas.

Maaas a coleta é só uma parte da jogabilidade, é um nicho para os nerds desta categoria, assim como o crafting. Experimentei pouco o crafting, mais vi que tem muuuita coisa para se fazer e eis aí a segunda categoria de especialistas que o jogo vai ter, a galera que vai ficar a maior parte do tempo dentro das cidades, craftando itens nas estações. Os demais players vão depender bastante destes que fazem os itens e abastecem o mercado.

Combate

Por fim, tem a categoria do combate. Esta é claramente a preferida da maioria. Um comentário frequente dos jogadores é que os monstros são muito repetitivos. De fato, tem muitos bichos que repetem basicamente a mesma aparência (zumbis, fantasmas e piratas), só mudando a dificuldade. 

A IA é bem inteligente, os bichos sabem esquivar, dar charge, desviar de obstáculos para chegar em você e até têm ataques especiais, de modo que você deve aprender a mecânica de cada bicho para melhor enfrentá-lo.

Há quem diga que o PvE é Dark Souls-like, pois mesmo os monstros mais iniciantes, uns zumbis genéricos na saída das cidades, são difíceis para quem começa a jogar. Cada bicho é um pequeno duelo e às vezes alguns outros são lurados e aí a situação fica perigosa.

Tem os bosses, que são obviamente mais caprichados e com mecânicas especiais, mas só os vi em lives e ainda não enfrentei nenhum. Só sei que impressionam, são bichos gigantes e com uma sonoplastia interessante.

Há também vários minibosses que igualmente têm seu set de ataques especiais, geralmente charges e danos em área que dão stun. É até fácil se acostumar com o ritmo destes ataques de modo que basicamente o combate PvE consiste em ficar alternando ataque e esquiva, bater e recuar. 

Existe também o recurso de bloquear com escudo ou arma, mas a esquiva é sempre preferível, pois melhor que suportar um dano é não tomar dano algum. Por isso eu preferi bindar a esquiva no botão direito do mouse, que por padrão serve para bloqueio. 

Este recurso, aliás, é bem útil: você pode bindar, ou seja, reconfigurar as funções de todos os botões do teclado e mouse, de modo a montar uma configuração ideal para seu jeito de jogar.

Falando em stun, este é um dos debuffs mais frequentes no jogo, tanto no PvP quanto no PvE. A ideia é impedir mesmo que você saia correndo da briga, mas torna o combate bem tenso. Se você é cercado por bichos, eles vão ficar te espancando alternadamente, de modo que o seu personagem fica grogue, incapacitado de correr ou esquivar por alguns segundos e isto é bem irritante, para não dizer desesperador. Nestas circunstâncias, o ataque é a melhor defesa e existem habilidades voltadas a empurrar os inimigos para se livrar deste tipo de situação. 

O PvE vai precisar de tempo também para receber novidades e não se tornar enjoativo. Aí chegamos no PvP, que creio que é o que vai fidelizar a galera focada em combate. O PvP é justo. Quem quer brigar, é só ligar o PvP, quem não quer, pode ficar seguro e não sofrerá nenhum bullying de PKs. 

É o PvP opcional, que tem se tornado comum nos MMOs, mas antigamente era raro. No Tibia, por exemplo, ou você ficava em um mundo 100% pacífico, ou 100% PvP e, no segundo caso, você não tinha como controlar quando entrar em combate. A qualquer momento alguém, ou um bando inteiro, podia te pegar desprevenido, fuzilar e roubar seus itens.

O PvP casual nas ruas do NW acontece em geral só para treino ou "resenha", pois quem curte PvP vai poder satisfazer sua vontade nas guerras. É aí que a brincadeira fica realmente divertida. O mapa tem fortalezas projetadas para guerra e um sistema de dominação de cidades que dá sentido à existência das guildas. Você vai realmente ser recompensado ao participar de uma guilda e de guerras contra outras guildas, pois com isto pode ganhar o governo de uma cidade e alguns benefícios naquela região.

Assim, haverá uma perpétua luta entre guildas para tomar as cidades, de modo que o jogo oferece esta camada mais voltada à competição, o que se assemelha aos jogos mais na moda atualmente, como os MOBAs e battle royales, só que com o diferencial de não se resumir a partidas. Seu personagem tem uma vida naquele mundo e as batalhas fazem parte desta vida.

Assim como no Runescape, não existem classes fixas e você pode buildar sem limites, fazer combinações de armas e habilidades. Os pontos dos atributos, como força, inteligência, etc, podem ser constantemente reajustados, de modo que uma hora você pode tornar seu personagem um tank, aumentando a constituição, ou um mago, aumentando a inteligência, conforme convém.

Estamos na era da fluidez e assim é com as classes de personagens. Você não fica preso a ser sempre um tank ou mago ou arqueiro. Naturalmente, o jogador com o tempo vai se apegando mais a determinada build. Eu, por exemplo, já sei que vou seguir o caminho do mago e me interessar pouco pelo melee. Sempre preferi ataques à distância, de modo que o melee pouco me atrai.

Percebo, porém, que o melee é a classe de armas mais valorizada do jogo, o que é uma coisa boa, pois nos MMO os tanks costumam ser um saco de pancadas, enquanto no NW é possível ser tank e causar muito dano com armas de duas mãos, tipo um machado ou marreta.

Achei o arco bem divertido, principalmente pra caçar na floresta. O headshot tem dano crítico, o que é recompensador e dá mais gosto planejar cada disparo. Também tem o mosquete, que experimentei pouco e achei chato o fato de cada tiro ter um delay para recarga da bala, mas é uma mecânica realista para simular um mosquete medieval.

O PvE não favorece o ataque à distância. A maioria dos bichos avança na sua direção muito rápido e te cercam. Para um arqueiro, ser cercado de bichos é um terror e não há boas skills de arma pra lidar com essa situação. O jeito é o arqueiro andar com uma arma secundária que ajude no melee, como a rapieira. 

Nas dungeons, que é o PvE mais recompensador do jogo, o ataque à distância é ainda mais prejudicado, dado o espaço claustrofóbico. O esquema de time nas dungeons é sempre o mesmo: uma parte do time healer e outra melee. O mapa não favorece a presença de arqueiros.

Na verdade, nem o mapa aberto favorece, pois os bichos têm um limite muito curto de tolerância à distância dos players. Este limite é proposital, pois evita que bichos sejam lurados para longas distâncias, o que jogadores trolls poderiam usar para prejudicar outros, especialmente os mais fracos. É fácil fugir de um bicho porque basta correr alguns metros e ele desiste de você, entrando no modo de retirada.

Este modo de retirada é um mecanismo de proteção para jogadores que estão fugindo, mas é uma chateação para quem quer atacar à distância com arco ou mosquete. Quando o bicho entra no modo de retirada, a vida dele enche e ele se torna invulnerável, mas também inofensivo, voltando tranquilamente para seu lugar de respawn.

Ou seja, se você é um arqueiro e quer brincar de sniper no alto de uma montanha, não vai dar certo, pois mesmo que você acerte os bichos, eles vão entrar no modo de retirada devido ao fato de não conseguirem te alcançar.

Outro problema do ataque à distância é a manutenção da munição, as balas e flechas. É preciso muito minério pra ficar craftando a munição e, como eu disse, é difícil achar minério. Vai ser uma classe de combate cara e só viável depois que você já tiver bastante grana pra ficar comprando munição.

Por outro lado, nas guerras das fortalezas os arqueiros e mosqueteiros se divertem bastante. Enquanto os tanks e healers estão no campo sofrendo, os snipers ficam no alto das muralhas brincando de tiro ao alvo com a multidão. É aí que esta classe de armas vale a pena.

Os magos, por sua vez, são a classe mais versátil. Com os cajados você tem ataque à distância. É uma distância menor que a dos arcos e mosquetes, mas satisfatória e com um dano decente. Não precisa de munição, pois o ataque usa mana, de modo que é mais barato ser mago. Os magos podem usar um cajado de cura que também ataca, que cura indivíduos ou em área. São sempre requisitados em equipes de dungeon. 

E, caso seja cercado à curta distância, o mago tem como se virar, pois o cajado de fogo tem um modo lança-chamas e ataques em área e a manopla de gelo tem umas nevascas que aplicam lentidão aos inimigos. A melhor defesa do jogo é a da manopla de gelo, que permite se encapsular numa pedra de gelo e ficar invulnerável enquanto recupera mana e vida, tipo a Mei de Overwatch ou a Evie de Paladins.

Apesar das comparações com Dark Souls, o jogo pega leve na penalidade de morte. Não é como um Tibia em que na morte você perde níveis que custaram várias horas de dedicação, além de perder itens. No NW você não droga nada, o que já evita a humilhação de ser looteado por PKs ou a agonia de ter que correr de volta pro local de morte pra catar seu loot.

Você pode montar uma fogueira perto do local em que está lutando e, caso morra, vai respawnar ali perto. Não perde experiência nem itens, apenas é penalizado com um desgaste na armadura e armas, pois estes itens se desgastam e podem quebrar, exigindo reparo constante. Ou seja, o único prejuízo na morte é o que você vai gastar para reparar seus itens, o que nem é muita coisa.

Eu diria então que há um equilíbrio na relação entre combate e morte, pois por um lado você não precisa ter pavor de morrer, já que não sofrerá grandes prejuízos e por outro você não sente que está jogando fácil, já que o combate é desafiador. Voltando ao caso do Tibia, tem players que até choram ao morrer, pois perdem algum item caríssimo que exigiu muito tempo e dedicação para conseguir e é realmente cruel que um item que custou tão caro simplesmente desapareça em uma questão de minutos.

Lore

A lore é sempre o elemento menos explorado pela maioria dos jogadores e confesso que eu mesmo dei pouca atenção, mesmo porque agora é só um beta de 4 dias. À primeira vista, porém, é fácil notar que que este mundo medieval ainda não tem uma história muito elaborada, o que é normal em um MMO ainda no começo. O Runescape, com seus vinte anos, já tem uma lore gigantesca. O Tibia tem até lendas, histórias surgidas de teorias conspiratórias e boatos, mas que se canonizaram na comunidade. O NW tem um longo caminho a construir em termos de lore.

Embora ainda não seja possível ter uma noção mais profunda da lore, já que o jogo ainda não foi lançado, dá para perceber que há sim um planejamento dedicado e sólido. Recentemente o canal oficial do jogo lançou uma entrevista com os desenvolvedores comentando os aspectos culturais do fictício mundo de Aeternum. Há inspirações em civilizações clássicas, como gregos, ameríndios, asiáticos, etc, e isto tende a se expandir. 

Diferente, portanto, da maioria dos MMORPGs, que adotam a pura fantasia, New World tem uma ambientação mais no estilo realismo mágico e com inspiração na nossa real história medieval.

Sound Design

Os jogos cada vez mais tentam nos impressionar visualmente, usando as engines gráficas mais modernas, exigindo bastante dos processadores de vídeo para renderizar um mundo cheio de texturas ultra detalhistas. Uns poucos dão atenção especial a outro detalhe: o som do jogo.

New World é um MMO graficamente moderno. O visual é belo, realista e detalhista mesmo com a qualidade gráfica baixa. Na qualidade alta, somos inundados por uma rica texturização do ambiente. Só que a beleza do jogo vai além do visual e chega ao auditivo. O som é extremamente imersivo, além de agradável, um típico ASMR.

Os dois grandes exemplos do trabalho atencioso de sound design neste jogo são os sons do corte de lenha e da mineração. É o que de cara impressiona os jogadores assim que entram no mundo e prestam atenção nestes efeitos sonoros. Se tem uma pessoa cortando lenha na floresta, o som ecoa por vários metros, com variações de intensidade, de modo a dar uma sensação de vida ao cenário. Como no mundo real, ao caminhar pelo mapa você ouve sons à distância que indicam a presença de outras pessoas realizando atividades como cortar lenha, minerar ou disparar um mosquete.

No caso da mineração, se você está em um ambiente montanhoso, acontece um efeito de eco do som da picareta, de modo que você escuta um estalo lá longe, a reverberação do som das batidas na pedra. Alguns jogos de tiro já fazem isto com o som das balas (ao dar um tiro, você escuta primeiro o som da bala que saiu da sua arma, mas depois escuta o eco dela no horizonte do cenário), mas New World foi mais a fundo, adotando este efeito em uma atividade mais trivial.

Além destes sons produzidos pela atividade dos players, a própria natureza tem uma vívida sonoplastia. Basta caminhar pelo mapa, atravessar florestas, rios e pradarias, e os sons destes ambientes vão te cercando, os pássaros, grilos, sapos, o som da água, do matagal, as pisadas dos quadrúpedes. O som dá substância às coisas, dá presença. Tudo parece mais real. Às vezes dá vontade de simplesmente sentar em uma pedra e ficar ouvindo o ambiente.

Conclusão

Enfim, para um jogo que está começando, New World já oferece muito e promete se expandir constantemente, caso a Amazon adote a rotina de lançar updates sazonais, como um passe de temporada ou DLCs semestrais. Se fizerem isto, o jogo vai viver e crescer por anos e até décadas, repetindo o que aconteceu com os antigos MMORPGs que começaram lá na virada do milênio.

Já falei bastante de Runescape em outros posts, pois foi o MMO da minha vida, que joguei por uma década, e estou realmente sentindo que New World pode ser meu novo Runescape, que vou acompanhar por toda esta década. É até empolgante pensar que estou pegando a coisa bem no comecinho e vou experienciar cada update, cada evolução ao longo dos anos. 

New World

Palavras-chave:

Sobre Robocop, justiça sumária, barbárie e tecnologia

Robocop (1987)

A ficção tem alguns curiosos exemplos de personagens que ocupam uma função que mescla policial, juiz e executor. 

O Robocop, que teve início em um filme de 1987, é um dos mais famosos exemplos deste tipo de personagem. Um humano modificado, de modo a ser parcialmente um ciborgue, ele carrega em sua memória orgânico-digital um código criminal e tem autorização para julgar qualquer pessoa a qualquer momento com base neste código, bem como executar a pena no mesmo instante.

Em se tratando de ficção, é interessante um personagem assim. Robocop é badass, implacável. Personagens que fazem execução sumária nos encantam, esta é a verdade. Justiceiros nos encantam, pois eles encarnam o nosso anseio por justiça rápida e garantida, diferente da vida real, quando um crime pode passar até décadas sem ser punido, enrolado em burocracias sem fim.

Jiban
"Te dou um queijo, Jiban!"

Inspirado no Robocop, em 1989 surgiu o tokusatsu do policial ciborgue Jiban que igualmente tinha estes poderes acumulados e "heroicamente" julgava seus inimigos sem impedimentos.

Uma década antes do Robocop, surgiu nos quadrinhos o Juiz Dredd, em 1977. Melhor do que ninguém, ele ilustra o conceito de um "juiz ambulante", um juiz-carrasco. No mundo distópico do personagem, o aumento da criminalidade em cidades superpovoadas colapsou o sistema judicial tradicional, de modo que a solução radical foi dar poderes a uma elite de policiais para que façam todo o processo criminal de forma arbitrária e imediata.

Judge Dredd

Execuções sumárias são típicas de sociedades em estado de barbárie. Em épocas de guerra, convulsão social e grande crise e miséria este comportamento vai se estabelecendo e normalizando. A prática do linchamento é a versão coletiva do juiz-carrasco. Neste caso, é um grupo local que toma para si o poder de julgar e punir de forma imediata. É comum que linchamentos ocorram devido à fúria e insatisfação da população diante da morosidade da justiça oficial.

A justiça sumária é tentadora, mas muito perigosa. Não raro casos de justiça deste tipo se mostram na verdade uma grande injustiça. Uma população pode ser atiçada contra uma pessoa por causa de um boato, uma mentira, e executar um linchamento contra um pobre inocente vítima de calúnia. Isto acontece justamente porque a justiça sumária não se dá ao devido trabalho de investigar o crime.

À medida em que civilizações avançam, elas se tornam mais complexas e inevitavelmente mais burocráticas no seu sistema judicial. Hoje em dia a coisa é tão intrincada que um julgamento pode passar por várias instâncias, ser anulado, revisado, o réu pode não apenas recorrer e questionar a decisão judicial, como pode também mover um processo, caso considere que está sendo julgado por um crime que não cometeu. 

O problema não é a burocracia. Ao contrário. A burocracia e toda e complexidade deste processo é algo que previne a sociedade de punir injustamente alguém. Eis o princípio da presunção de inocência. A presunção de inocência dignifica o ser humano, reconhece que todos têm a chance de se defender de uma acusação. É uma das maiores conquistas da civilização em termos de valorização da vida humana. 

Por outro lado, a excessiva burocracia moderna pode criar situações bem kafkianas em que pessoas se veem envolvidas em intermináveis julgamentos, além disso os corruptos, incluindo pessoas que fazem parte do sistema judiciário, podem tirar proveito desta burocracia, encontrar brechas ou abusar de seus poderes para incriminar inocentes e livrar culpados. 

Este é um problema do sistema moderno, mas convenhamos que é um mal menor se comparado à lei de talião dos bárbaros. Pensando de forma otimista, estamos em uma fase de transição entre o péssimo e o ótimo. O péssimo é a justiça antiga da barbárie, o ótimo é a justiça futura melhorada pela tecnologia. Estamos no meio, numa justiça da papelada, das pilhas de processos que sobrecarregam o sistema.

A tecnologia trouxe terrores à humanidade, mas no balanço geral ela sempre fez mais bem do que mal. Os avanços tecnológicos melhoraram as condições de vida das populações, geraram riqueza, facilitaram o acesso a bens e serviços, ampliaram a comunicação e a difusão de informação, etc, etc.

Logo, gosto de pensar que os softwares vão cada vez mais ajudar policiais, juízes, promotores e advogados a agilizar seu trabalho, processando em dias ou horas uma quantidade de dados, analisando evidências e consultando leis em um volume que um ser humano levaria anos para processar. A papelada vai acabar um dia. Esta é a boa notícia.

A má notícia é que a tecnologia também aumentará a vigilância sobre todos, chegando a um nível invasivo (como já é) e contaminando a presunção de inocência com um estado de constante suspeita sobre tudo e todos. Eis o Big Brother, olhando todos, vigiando todos, o que pode criar um sentimento de que temos um vigia a nos olhar perpetuamente, o que é no mínimo desagradável, leva as pessoas a viver sob o medo do olho onipotente, uma espécie de tecno-teocracia.

A barbárie, então, pode existir também em uma sociedade tecnologicamente avançada. Uma barbárie que usa a tecnologia como ferramenta é um risco, é o que a ficção científica distópica constantemente nos alerta. Devemos ficar atentos sempre que a sociedade começe a flertar com o retorno da barbárie, ainda mais quando vem fortalecida pela tecnologia.