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O fenômeno GTA RP e o nascimento da matrix

GTA RP

O roleplay é a arte de simular personagens, cenas, histórias, enfim, basicamente é teatro. É algo tão antigo quanto a humanidade.

De fato, já na infância temos nossas primeiras experiências de simulação. Ao brincar com bonecos, carros e casinhas, as crianças criam uma versão imaginária do mundo real, onde podem se tornar o que elas quiserem, podem simular profissões ou personagens fantásticos, versões alternativas da vida, etc. 

Isto acontece também sem o uso de bonecos, como na clássica brincadeira de "polícia e ladrão" em que as crianças se tornam elas próprias as personagens da encenação. O teatro nada mais é do que um desenvolvimento da brincadeira das crianças. 

No caso das crianças, a encenação costuma ser espontânea, sem roteiro, improvisada a cada momento. No teatro o improviso tem espaço, mas o que o torna uma arte e uma profissão é o fato de ser uma brincadeira elaborada, planejada, com roteiro pelo menos, de modo que pode ser repetida perpetuamente ao longo de eras.

Na religião também é muito comum a prática do roleplay por meio de rituais, da liturgia, quando o sacerdote, guru, xaman, etc. performa uma cerimônia, um encantamento, uma dança ritualística... É o que há em comum entre a brincadeira da infância, o teatro e a religião: a mente tem acesso a uma realidade alternativa ou imaginária.

Não pretendo entrar no mérito da "veracidade" dos fenômenos religiosos. Quando um fiel diz que conversou com um anjo, um espírito, uma entidade, uma fada ou qualquer outro ser místico, ele de fato teve contato com tal criatura ou criou uma realidade imaginária? 

Esta questão aqui não importa. Importa constatar que, quer a experiência mística seja concreta ou subjetiva, é inegável que a pessoa que passa por tal experiência precisa usar da imaginação, seja como um portal para acessar tal mundo paralelo, seja como um instrumento para criá-lo.

A literatura é outra forma bastante antiga (não tanto quanto o teatro e a religião, que já existiam muito antes da invenção da escrita) de criação de mundos imaginários. Quantas cidades, nações, planetas, mundos mágicos, futuristas, ancestrais, apocalípticos e alienígenas já foram criados e imortalizados na literatura. Quantos personagens se tornaram nossos amigos, inimigos e amores fictícios...

Por fim, além do teatro (o que inclui sua forma moderna no cinema e TV), da literatura e da religião, também temos o roleplay já bastante tradicional em certos jogos praticados também por adultos. De uma maneira bem simplificada, jogos de tabuleiro são uma espécie de roleplay. No xadrex, por exemplo, as peças são como bonecos representando pessoas ou equipamentos bélicos. Ao movê-las, você está simulando uma batalha campal.

Enfim chegamos ao jogo que leva roleplay no nome: o RPG (Role Playing Game). Na sua forma original, consiste em um tabuleiro que simula um mapa e pode ser preenchido com bonecos e outros tipos de peças. Há uma complexa jogabilidade que mistura o lançar de dados para calcular probabilidades, o roteiro projetado pelo mestre do jogo e complementado por cada um dos participantes e a encenação propriamente dita, praticada por todos, de modo a aumentar a imersão.

Há jogadores de RPG que comparecem aos encontros até mesmo trajados como seus personagens, ou seja, o cosplay se torna um recurso para aumentar o detalhismo da encenação. 

Por fim, chegamos aos jogos eletrônicos, o video game. Existem games que são classificados como RPGs, pois adotam diversas características do RPG de mesa, mas todo game, independente do gênero, é basicamente uma realidade simulada. 

Os jogos eletrônicos nos entregam um mundo imaginário na forma de áudio e/ou vídeo. Por meio dos controles podemos interagir com este mundo imaginário, tomar decisões e alterar esta realidade, dentro dos limites que o jogo impõe.

Sendo assim, parece bem claro que viver em mundos alternativos é algo que faz parte da experiência humana desde tempos imemoriais. Aprendemos a imaginar e encenar vidas paralelas já na infância, nas brincadeiras, e depois de adultos continuamos a encenar ou a assistir a encenações e imergir em mundos paralelos por meio da arte e dos jogos.

É curioso, então, que mesmo assim haja uma tênue linha separando a normalidade da loucura, quando se trata de viver realidades imaginárias. É aceitável que um amante da literatura expresse seu apego emocional por personagens fictícios ou que as pessoas criem sentimentos de amor ou ódio por personagens de novelas da TV como se fossem gente real. Todavia, há um sutil limite entre estes sentimentos serem considerados normais ou patológicos. 

No caso da religião, isso é ainda mais complicado. Para o adepto da religião X, as entidades espirituais em que ele acredita são reais, de modo que é normal e são ter algum tipo de contato com elas. Orar, por exemplo, é conversar com alguma ou algumas entidades. Esta pessoa, porém, pode achar que são loucos os adeptos da religião Y porque elas conversam com entidades que não existem na religião X. Para o ateu, tanto os adeptos de X quanto de Y estão falando com algo que não existe.

Ter um amigo imaginário é considerado pelo senso comum como um sinal de loucura ou, no mínimo, esquisitice. Até mesmo na infância isso é tido como um estereótipo de criança antissocial ou problemática, vivendo em seu mundo paralelo e conversando com vozes na sua cabeça.

Se pensarmos bem, porém, todos nós temos nossos amigos imaginários e posso citar um exemplo bem concreto: os pets

Tá certo que nossos cãezinhos, gatinhos e passarinhos são seres reais, feitos de carne, osso e átomos, mas a forma como os tratamos muitas vezes se assemelha a uma relação imaginária. Nós consideramos normal conversar com os pets e as pessoas inconscientemente se veem "dialogando" com seus bixinhos como se eles fossem mesmo capazes de entender as frases. 

Isto é diferente de treinar um animal para responder a comandos como "senta", "vem aqui", "não faça isso". Os comandos podem ser qualquer coisa. Você pode ensinar seu cão a não fazer determinada coisa dizendo "não" ou "don't" ou "nein" ou "sorvete" ou qualquer palavra sem sentido ou um som como um "pst"; pode até rosnar ou assoviar e o animal entenderá o comando se foi treinado a associar o som a determinada ordem.

Na prática o que acontece é que, no desenvolvimento da relação com o pet, as pessoas geralmente vão alémm dos comandos e começam de fato a conversar com os animais, de modo que aí já se configura uma relação com um amigo imaginário encarnado na figura do bichinho.

O próprio sentimento que nutrimos por determinado animal pode fazer parte de uma relação imaginária. Existem animais que concretamente entendem os sentimentos de um humano e retribuem. Cães e gatos são um exemplo comum. Cães mais que gatos. Eles desenvolvem uma real relação afetiva, embora não tão complexa e cheia de nuances quanto a dos humanos entre si.

Há casos em que uma pessoa cria algum tipo de animal que é quase que completamente indiferente aos sentimentos humanos. Se você adota uma tartaruga como pet, por exemplo, pode até conversar com ela e nutrir sentimentos de carinho pelo bicho, mas a tartaruga não vai querer deitar no seu colo como um gato e pouco vai se importar com o tom de voz com que você "converse" com ela. 

Não que a tartaruga não vá desenvolver sentimentos a seu respeito. Uma vez que ela esteja acostumada a te ver e receber alimento, vai associar sua presença como algo inofensivo e desejável. Ela vai até você, inclusive, mas não vai demonstrar sentimentos como um cão. É um nível bem mais simples de relacionamento.

Mas estou divagando. Voltemos ao roleplay. Existe algo nos jogos eletrônicos que leva o roleplay a um nível de "realidade" que não é possível no cinema ou na literatura. Isto acontece nos jogos multiplayer

A cada dia se torna um hábito mais comum brincarmos em jogos que permitem a interação online com outras pessoas. Um bom exemplo são os FPS competitivos, como um Overwatch ou um battle royale da vida. Nestes jogos, nós somos representados por avatares, os "bonecos" do jogo, e por meio deles interagimos com outras pessoas em seus avatares.

E nem precisa ser um avatar muito realista para nos levar à imersão. O clássico Tibia é um exemplo fantástico disso, pois neste jogo 2D de bonequinhos minúsculos há histórias de longas amizades e até casamentos que se desenvolveram dentro daquele mundo fictício.

O realismo audiovisual, obviamente, facilita e aumenta a imersão e aqui chegamos ao exemplo do GTA. O GTA é um jogo de mundo aberto e com muitos recursos de customização. Desta forma, se tornou comum a criação de servidores com mapas e regras próprios, simulando cidades reais e estilos de vida reais.

A prática do roleplay (RP) usando o GTA como plataforma se tornou ainda mais comum com a popularização do streaming, de modo que agora as pessoas não apenas encenam personagens neste mundo virtual como transmitem tudo como uma novela para o público assistir e até interagir por meio do chat.

O fato é que, por mais que os participantes desta brincadeira saibam que estão representando papéis, estas pessoas desenvolvem sentimentos reais, fazem amigos, se apaixonam, o que cria uma curiosa intersecção entre mundo real e virtual, concreto e imaginário. 

Você interage com avatares, bonequinhos virtuais, que são personagens com nomes e características diferentes da pessoa que está no outro lado computador. Uma personagem feminina, por exemplo, pode estar sendo performada por um homem. 

A aparência do boneco não necessariamente é igual e na maioria das vezes é diferente da aparência da pessoa. Mesmo assim, há uma pessoa ali, ao mesmo tempo em que há um boneco virtual e um personagem imaginário. É uma complexa relação.

E a normalização deste tipo de brincadeira é o arauto de algo já previsto na ficção e que parece se tornar cada vez mais próximo: a vida virtual, a matrix. Jogos como o GTA RP, onde se pratica o roleplay de uma vida em um mundo virtual, são como a fase alfa de uma futura realidade virtual que será absolutamente normal. 

Chegará então o dia em que, conectados à internet por meio de lentes, fones de ouvido ou até chips cerebrais, vamos enxergar e interagir em um mundo híbrido, misturando a realidade concreta em que você pisa e esse mundo virtual misturado a ela. Veremos pessoas em seus avatares, bem como NPCs com uma inteligência artificial tão complexa que mal saberemos se estamos falando com uma pessoa ou um robô. 

O quão próximo isso estará da loucura? É complicado saber. Pois parece ser a evolução natural de algo que já vivenciamos há milênios, o próximo passo da existência humana.

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