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O Livro de Eli, um neo-western bíblico pós-apocalíptico

Denzel Washington; The Book of Eli (2010)

A estética western é bastante versátil e vai bem com tudo. Foi usada como comédia em The Ridiculous 6 (2015), misturou-se ao gênero de super-heróis em Logan (2017) e teve sua versão tarantinesca em The Hateful Eight (2015). Há western até no terror, como em Amores Canibais (2016).

O western clássico ficou no século passado, e estes filmes mais recentes que recorrem à estética de terras áridas, tiroteios e cavaleiros errantes são mais especificamente chamados de neo-western. É o caso de O Livro de Eli (2010), que mistura o gênero com pós-apocalipse, uma combinação relativamente comum, como acontece nos filmes Mad Max desde a década de 80. 

Vemos um mundo arrasado, com cenários desérticos e muito sol, o que lembra as clássicas planícies do velho oeste onde índios e cowboys cavalgavam. No futurismo pós-apocalíptico, os cavalos são substituídos por carros, motos e caminhões, mas sempre tem um cavaleiro errante, como é o caso de Eli, interpretado por Denzel Washington.

O grande diferencial desse filme é a mistura inesperada com um tema raro no cinema mainstream: a Bíblia. Denzel Washington é um cristão convicto e praticante, de modo que pôde interpretar um protagonista cristão com sinceridade. Eli é um andarilho que tem uma missão divina de levar a Bíblia até um lugar onde ela possa ser bem utilizada, uma ferramenta para restaurar a sabedoria antiga neste mundo devastado.

Vendo deste modo, O Livro de Eli é um filme gospel, mas sem forçar muito a linguagem religiosa ou a evangelização. Nem mesmo é mencionado o nome de Jesus, mas algumas passagens bíblicas são recitadas por Eli, além disso ele ensina a garota Solara (Mila Kunis) a orar antes das refeições.

O papel do vilão coube ao caricato Gary Oldman (Carnegie), que sempre cai bem como um vilão clichê. Ele serve como um contraponto à visão pura e heroica que Eli tem da Bíblia. De fato, em vez de simplesmente expor uma visão positiva e cristã da Bíblia, o filme aborda pelo menos três maneiras de enxergar este livro.

Para Carnegie, a Bíblia é a ferramenta perfeita de controle social. Ele contrata mercenários para encontrar ao menos uma cópia do Livro Sagrado para usá-la na organização de uma civilização com pessoas submissas. Ele tem em mente criar algum tipo de estado teocrático medievalesco. E ele não está errado. A Bíblia, bem como qualquer material religioso, pode, foi e é usada com fins totalitários por pessoas mal intencionadas.

Eli, porém, mostra que existe o lado bom da história. Ele é um devoto simples e puro, que guarda a Bíblia em sua memória e seu coração, e em certos momentos parece ser genuinamente guiado e protegido por uma força milagrosa, como quando ele é perseguido pelo bando de Carnegie e parece que as balas desviam dele. 

A dedicação de Eli em levar a mensagem e garantir sua preservação é digna de um santo. Todavia, ele é santo, mas não é trouxa. Eli é um badass da luta com facão e cabeças e braços voam na tela, dando ao filme uma pitada de ação e aventura. O fato dele ser cego o torna ainda mais badass.

Tá, tá, isso foi um spoiler. No começo do filme, essa informação nos é escondida e simplesmente achamos que ele é um cara com visão normal, afinal ele encara as pessoas e tal. Mas há certos detalhes que vão dando pistas, como quando ele está vasculhando uma casa abandonada e esbarra em um móvel. 

De toda forma, convenhamos, a essa altura todo mundo assiste ao longa de 2010 já sabendo que Eli é cego. O fato é que, sabendo que Eli é cego, só ficamos mais certos de quão fodão o cara é, pois ele luta com uma destreza de super-herói.

Por fim, Eli entrega seu livro para uma espécie de biblioteca do fim do mundo, uma fortaleza dedicada a coletar o acervo cultural perdido da humanidade, a fim de reconstruir a civilização. Neste aspecto, portanto, a Bíblia não é somente um livro religioso (para o bem ou para o mal), mas também um patrimônio cultural. Para o bibliotecário, a Bíblia é tão importante quanto Shakespeare e outras obras da humanidade. É a sabedoria acumulada das civilizações.

A moral da história é: a civilização precisa de livros para avançar. Precisa do letramento e do acúmulo de conhecimento. A salvação para aquela terra inóspita destruída numa grande guerra é a redescoberta desse conhecimento. 

No caso da Bíblia, ela é um exemplo de que o conhecimento não se trata apenas da fria informação científica, mas também é preciso alma, emoção e experiência humana, a vivência subjetiva da fé e da esperança que ficou registrada no livro para motivar as futuras gerações.

Denzel Washington; The Book of Eli (2010)

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