Qaligrafia
Séries, livros, games, filmes e eteceteras 🧙‍♂️

The Librarians, os bibliotecários em aventuras do barulho

The Librarians (2013-2018)

The Librarians (2013-2018)

Bibliotecários são estereotipados como seres sérios e entediantes, sempre chiando pra você fazer silêncio e não dados a aventuras. Não na série The Librarians (2013-2018), onde um grupo de bibliotecários se aventura em todo tipo de missão, usando de conhecimentos gerais de cultura clássica e moderna, bem como magia e habilidades diversas. 

Rebecca Romijn; The Librarians (2013-2018)
Rebecca Romjin, também conhecida como a primeira (e melhor) Mística dos X-Men.

Tudo começou com a trilogia de filmes The Librarian (2004, 2005, 2008), em que o protagonista Flynn Carsen é uma mistura de Indiana Jones com Harry Potter. Na série ele reúne uma equipe com habilidades especiais para lidar com vilões míticos, viajar no tempo, viver realidades alternativas e se deparar até com deuses e demônios de diversas mitologias. Ufa! 

É uma série bem Sessão da Tarde e bastante educativa para crianças, já que é cheia de referências culturais, especialmente de história e mitologia.

Lindy Booth; The Librarians (2013-2018)
A fofinha Lindy Booth.

O fenômeno GTA RP e o nascimento da matrix

GTA RP

O roleplay é a arte de simular personagens, cenas, histórias, enfim, basicamente é teatro. É algo tão antigo quanto a humanidade.

De fato, já na infância temos nossas primeiras experiências de simulação. Ao brincar com bonecos, carros e casinhas, as crianças criam uma versão imaginária do mundo real, onde podem se tornar o que elas quiserem, podem simular profissões ou personagens fantásticos, versões alternativas da vida, etc. 

Isto acontece também sem o uso de bonecos, como na clássica brincadeira de "polícia e ladrão" em que as crianças se tornam elas próprias as personagens da encenação. O teatro nada mais é do que um desenvolvimento da brincadeira das crianças. 

No caso das crianças, a encenação costuma ser espontânea, sem roteiro, improvisada a cada momento. No teatro o improviso tem espaço, mas o que o torna uma arte e uma profissão é o fato de ser uma brincadeira elaborada, planejada, com roteiro pelo menos, de modo que pode ser repetida perpetuamente ao longo de eras.

Na religião também é muito comum a prática do roleplay por meio de rituais, da liturgia, quando o sacerdote, guru, xaman, etc. performa uma cerimônia, um encantamento, uma dança ritualística... É o que há em comum entre a brincadeira da infância, o teatro e a religião: a mente tem acesso a uma realidade alternativa ou imaginária.

Não pretendo entrar no mérito da "veracidade" dos fenômenos religiosos. Quando um fiel diz que conversou com um anjo, um espírito, uma entidade, uma fada ou qualquer outro ser místico, ele de fato teve contato com tal criatura ou criou uma realidade imaginária? 

Esta questão aqui não importa. Importa constatar que, quer a experiência mística seja concreta ou subjetiva, é inegável que a pessoa que passa por tal experiência precisa usar da imaginação, seja como um portal para acessar tal mundo paralelo, seja como um instrumento para criá-lo.

A literatura é outra forma bastante antiga (não tanto quanto o teatro e a religião, que já existiam muito antes da invenção da escrita) de criação de mundos imaginários. Quantas cidades, nações, planetas, mundos mágicos, futuristas, ancestrais, apocalípticos e alienígenas já foram criados e imortalizados na literatura. Quantos personagens se tornaram nossos amigos, inimigos e amores fictícios...

Por fim, além do teatro (o que inclui sua forma moderna no cinema e TV), da literatura e da religião, também temos o roleplay já bastante tradicional em certos jogos praticados também por adultos. De uma maneira bem simplificada, jogos de tabuleiro são uma espécie de roleplay. No xadrex, por exemplo, as peças são como bonecos representando pessoas ou equipamentos bélicos. Ao movê-las, você está simulando uma batalha campal.

Enfim chegamos ao jogo que leva roleplay no nome: o RPG (Role Playing Game). Na sua forma original, consiste em um tabuleiro que simula um mapa e pode ser preenchido com bonecos e outros tipos de peças. Há uma complexa jogabilidade que mistura o lançar de dados para calcular probabilidades, o roteiro projetado pelo mestre do jogo e complementado por cada um dos participantes e a encenação propriamente dita, praticada por todos, de modo a aumentar a imersão.

Há jogadores de RPG que comparecem aos encontros até mesmo trajados como seus personagens, ou seja, o cosplay se torna um recurso para aumentar o detalhismo da encenação. 

Por fim, chegamos aos jogos eletrônicos, o video game. Existem games que são classificados como RPGs, pois adotam diversas características do RPG de mesa, mas todo game, independente do gênero, é basicamente uma realidade simulada. 

Os jogos eletrônicos nos entregam um mundo imaginário na forma de áudio e/ou vídeo. Por meio dos controles podemos interagir com este mundo imaginário, tomar decisões e alterar esta realidade, dentro dos limites que o jogo impõe.

Sendo assim, parece bem claro que viver em mundos alternativos é algo que faz parte da experiência humana desde tempos imemoriais. Aprendemos a imaginar e encenar vidas paralelas já na infância, nas brincadeiras, e depois de adultos continuamos a encenar ou a assistir a encenações e imergir em mundos paralelos por meio da arte e dos jogos.

É curioso, então, que mesmo assim haja uma tênue linha separando a normalidade da loucura, quando se trata de viver realidades imaginárias. É aceitável que um amante da literatura expresse seu apego emocional por personagens fictícios ou que as pessoas criem sentimentos de amor ou ódio por personagens de novelas da TV como se fossem gente real. Todavia, há um sutil limite entre estes sentimentos serem considerados normais ou patológicos. 

No caso da religião, isso é ainda mais complicado. Para o adepto da religião X, as entidades espirituais em que ele acredita são reais, de modo que é normal e são ter algum tipo de contato com elas. Orar, por exemplo, é conversar com alguma ou algumas entidades. Esta pessoa, porém, pode achar que são loucos os adeptos da religião Y porque elas conversam com entidades que não existem na religião X. Para o ateu, tanto os adeptos de X quanto de Y estão falando com algo que não existe.

Ter um amigo imaginário é considerado pelo senso comum como um sinal de loucura ou, no mínimo, esquisitice. Até mesmo na infância isso é tido como um estereótipo de criança antissocial ou problemática, vivendo em seu mundo paralelo e conversando com vozes na sua cabeça.

Se pensarmos bem, porém, todos nós temos nossos amigos imaginários e posso citar um exemplo bem concreto: os pets

Tá certo que nossos cãezinhos, gatinhos e passarinhos são seres reais, feitos de carne, osso e átomos, mas a forma como os tratamos muitas vezes se assemelha a uma relação imaginária. Nós consideramos normal conversar com os pets e as pessoas inconscientemente se veem "dialogando" com seus bixinhos como se eles fossem mesmo capazes de entender as frases. 

Isto é diferente de treinar um animal para responder a comandos como "senta", "vem aqui", "não faça isso". Os comandos podem ser qualquer coisa. Você pode ensinar seu cão a não fazer determinada coisa dizendo "não" ou "don't" ou "nein" ou "sorvete" ou qualquer palavra sem sentido ou um som como um "pst"; pode até rosnar ou assoviar e o animal entenderá o comando se foi treinado a associar o som a determinada ordem.

Na prática o que acontece é que, no desenvolvimento da relação com o pet, as pessoas geralmente vão alémm dos comandos e começam de fato a conversar com os animais, de modo que aí já se configura uma relação com um amigo imaginário encarnado na figura do bichinho.

O próprio sentimento que nutrimos por determinado animal pode fazer parte de uma relação imaginária. Existem animais que concretamente entendem os sentimentos de um humano e retribuem. Cães e gatos são um exemplo comum. Cães mais que gatos. Eles desenvolvem uma real relação afetiva, embora não tão complexa e cheia de nuances quanto a dos humanos entre si.

Há casos em que uma pessoa cria algum tipo de animal que é quase que completamente indiferente aos sentimentos humanos. Se você adota uma tartaruga como pet, por exemplo, pode até conversar com ela e nutrir sentimentos de carinho pelo bicho, mas a tartaruga não vai querer deitar no seu colo como um gato e pouco vai se importar com o tom de voz com que você "converse" com ela. 

Não que a tartaruga não vá desenvolver sentimentos a seu respeito. Uma vez que ela esteja acostumada a te ver e receber alimento, vai associar sua presença como algo inofensivo e desejável. Ela vai até você, inclusive, mas não vai demonstrar sentimentos como um cão. É um nível bem mais simples de relacionamento.

Mas estou divagando. Voltemos ao roleplay. Existe algo nos jogos eletrônicos que leva o roleplay a um nível de "realidade" que não é possível no cinema ou na literatura. Isto acontece nos jogos multiplayer

A cada dia se torna um hábito mais comum brincarmos em jogos que permitem a interação online com outras pessoas. Um bom exemplo são os FPS competitivos, como um Overwatch ou um battle royale da vida. Nestes jogos, nós somos representados por avatares, os "bonecos" do jogo, e por meio deles interagimos com outras pessoas em seus avatares.

E nem precisa ser um avatar muito realista para nos levar à imersão. O clássico Tibia é um exemplo fantástico disso, pois neste jogo 2D de bonequinhos minúsculos há histórias de longas amizades e até casamentos que se desenvolveram dentro daquele mundo fictício.

O realismo audiovisual, obviamente, facilita e aumenta a imersão e aqui chegamos ao exemplo do GTA. O GTA é um jogo de mundo aberto e com muitos recursos de customização. Desta forma, se tornou comum a criação de servidores com mapas e regras próprios, simulando cidades reais e estilos de vida reais.

A prática do roleplay (RP) usando o GTA como plataforma se tornou ainda mais comum com a popularização do streaming, de modo que agora as pessoas não apenas encenam personagens neste mundo virtual como transmitem tudo como uma novela para o público assistir e até interagir por meio do chat.

O fato é que, por mais que os participantes desta brincadeira saibam que estão representando papéis, estas pessoas desenvolvem sentimentos reais, fazem amigos, se apaixonam, o que cria uma curiosa intersecção entre mundo real e virtual, concreto e imaginário. 

Você interage com avatares, bonequinhos virtuais, que são personagens com nomes e características diferentes da pessoa que está no outro lado computador. Uma personagem feminina, por exemplo, pode estar sendo performada por um homem. 

A aparência do boneco não necessariamente é igual e na maioria das vezes é diferente da aparência da pessoa. Mesmo assim, há uma pessoa ali, ao mesmo tempo em que há um boneco virtual e um personagem imaginário. É uma complexa relação.

E a normalização deste tipo de brincadeira é o arauto de algo já previsto na ficção e que parece se tornar cada vez mais próximo: a vida virtual, a matrix. Jogos como o GTA RP, onde se pratica o roleplay de uma vida em um mundo virtual, são como a fase alfa de uma futura realidade virtual que será absolutamente normal. 

Chegará então o dia em que, conectados à internet por meio de lentes, fones de ouvido ou até chips cerebrais, vamos enxergar e interagir em um mundo híbrido, misturando a realidade concreta em que você pisa e esse mundo virtual misturado a ela. Veremos pessoas em seus avatares, bem como NPCs com uma inteligência artificial tão complexa que mal saberemos se estamos falando com uma pessoa ou um robô. 

O quão próximo isso estará da loucura? É complicado saber. Pois parece ser a evolução natural de algo que já vivenciamos há milênios, o próximo passo da existência humana.

Besteirol, bullying e bundas em Baywatch

Baywatch (2017)

A série Baywatch (1989-2011) foi um sucesso gigantesco, tendo nada menos que 11 temporadas. Era a série favorita de Joey e Chandler, em Friends, obviamente devido ao apelo erótico, pois era recheada de gostosonas e gostosões seminus correndo na praia. 

Em 2017 um filme foi feito em homenagem ao clássico, contando inclusive com o cameo dos dois atores que mais se destacaram na série: Pamela Anderson e David Hasselhoff. 

Hasselhoff é praticamente um símbolo dos anos 90, se tornando parte da cultura pop. Até hoje é convidado para interpretar a si mesmo em filmes, como em Guardiões da Galáxia 2 (2017), e foi frequente até nos toscos filmes Sharknado. Ele sabe brincar e zoar com a própria imagem de ex-superastro. 

The Rock and Zac Efron; Baywatch (2017)

Baywatch (2017)

Sua presença no remake de Baywatch, porém, é breve, e quem brilha mesmo é a dupla The Rock e Zac Efron. A graça do filme é o bullying constante com que o personagem do The Rock, Mitch (que na série clássica era interpretado por Hasselhoff), fica zoando o salva-vidas novato Matt, interpretado pelo Zac Efron. 

David Hasselhoff; Baywatch (2017)

Pamela Anderson; Baywatch (2017)

É até ousado que um filme tenha coragem de transformar em piada a maneira tóxica com que Mitch trata seu subordinado. Tem até uma inesperada cena de nu frontal masculino em que eles examinam um cadáver e Mitch convence Matt a tocar nos testículos do morto (e essa cena não tem cortes nem ângulo de câmera pra esconder os testículos, eles estão lá na tela), tirando uma foto com intenção de ridicularizá-lo nas redes sociais. 

 A relação dos dois evolui de bullying para bromance, afinal quem não quer ser amigo do The Rock? O filme enfim mistura comédia com aventura policial (outro tema bem comum nos filmes Sessão da Tarde dos anos 90) e um leve erotismo, potencializado por muitos peitos e bundas balançantes e a beleza da Alexandra Daddario, Kelly Rohrbach, entre outras, bem como o musculoso The Rock e o Zac Efrom também na sua melhor forma, trincadaço

Alexandra Daddario; Baywatch (2017)
Ai meu coração!

Zac Efron; Baywatch (2017)
Sheipaaado!

George Clooney é o Papai Noel em O Céu da Meia Noite

George Clooney; The Midnight Sky (2020)

O premiado filme Gravity (2013) foi um sci-fi de astronauta em que George Clooney atuou como figura paterna da personagem da Sandra Bullock. Eis que agora em The Midnight Sky (2020) ele volta ao gênero de astronauta e também a assumir uma figura paterna.

De fato, Clooney está com um visual de Papai Noel: barba branca, uma jaqueta de cor quente e um cenário de muita neve, já que ele se encontra no Polo Norte. Ele até mesmo anda de trenó (não com renas, mas motorizado), o que me faz pensar que o objetivo desse filme era ser algo natalino.

É mais um filme apocalíptico de 2020 (o que já é em si um grande clichê) e é fraco como sci-fi, mas pode agradar a quem se interessar mais pelo drama paternal do protagonista. É a estreia da atriz Caoilinn Springall, de 7 anos, na carreira cinematográfica, e já encarou um desafio de atuação, pois sua personagem é muda e toda a sua comunicação depende apenas de expressões faciais.

George Clooney and Caoilinn Springall; The Midnight Sky (2020)

O Livro de Eli, um neo-western bíblico pós-apocalíptico

Denzel Washington; The Book of Eli (2010)

A estética western é bastante versátil e vai bem com tudo. Foi usada como comédia em The Ridiculous 6 (2015), misturou-se ao gênero de super-heróis em Logan (2017) e teve sua versão tarantinesca em The Hateful Eight (2015). Há western até no terror, como em Amores Canibais (2016).

O western clássico ficou no século passado, e estes filmes mais recentes que recorrem à estética de terras áridas, tiroteios e cavaleiros errantes são mais especificamente chamados de neo-western. É o caso de O Livro de Eli (2010), que mistura o gênero com pós-apocalipse, uma combinação relativamente comum, como acontece nos filmes Mad Max desde a década de 80. 

Vemos um mundo arrasado, com cenários desérticos e muito sol, o que lembra as clássicas planícies do velho oeste onde índios e cowboys cavalgavam. No futurismo pós-apocalíptico, os cavalos são substituídos por carros, motos e caminhões, mas sempre tem um cavaleiro errante, como é o caso de Eli, interpretado por Denzel Washington.

O grande diferencial desse filme é a mistura inesperada com um tema raro no cinema mainstream: a Bíblia. Denzel Washington é um cristão convicto e praticante, de modo que pôde interpretar um protagonista cristão com sinceridade. Eli é um andarilho que tem uma missão divina de levar a Bíblia até um lugar onde ela possa ser bem utilizada, uma ferramenta para restaurar a sabedoria antiga neste mundo devastado.

Vendo deste modo, O Livro de Eli é um filme gospel, mas sem forçar muito a linguagem religiosa ou a evangelização. Nem mesmo é mencionado o nome de Jesus, mas algumas passagens bíblicas são recitadas por Eli, além disso ele ensina a garota Solara (Mila Kunis) a orar antes das refeições.

O papel do vilão coube ao caricato Gary Oldman (Carnegie), que sempre cai bem como um vilão clichê. Ele serve como um contraponto à visão pura e heroica que Eli tem da Bíblia. De fato, em vez de simplesmente expor uma visão positiva e cristã da Bíblia, o filme aborda pelo menos três maneiras de enxergar este livro.

Para Carnegie, a Bíblia é a ferramenta perfeita de controle social. Ele contrata mercenários para encontrar ao menos uma cópia do Livro Sagrado para usá-la na organização de uma civilização com pessoas submissas. Ele tem em mente criar algum tipo de estado teocrático medievalesco. E ele não está errado. A Bíblia, bem como qualquer material religioso, pode, foi e é usada com fins totalitários por pessoas mal intencionadas.

Eli, porém, mostra que existe o lado bom da história. Ele é um devoto simples e puro, que guarda a Bíblia em sua memória e seu coração, e em certos momentos parece ser genuinamente guiado e protegido por uma força milagrosa, como quando ele é perseguido pelo bando de Carnegie e parece que as balas desviam dele. 

A dedicação de Eli em levar a mensagem e garantir sua preservação é digna de um santo. Todavia, ele é santo, mas não é trouxa. Eli é um badass da luta com facão e cabeças e braços voam na tela, dando ao filme uma pitada de ação e aventura. O fato dele ser cego o torna ainda mais badass.

Tá, tá, isso foi um spoiler. No começo do filme, essa informação nos é escondida e simplesmente achamos que ele é um cara com visão normal, afinal ele encara as pessoas e tal. Mas há certos detalhes que vão dando pistas, como quando ele está vasculhando uma casa abandonada e esbarra em um móvel. 

De toda forma, convenhamos, a essa altura todo mundo assiste ao longa de 2010 já sabendo que Eli é cego. O fato é que, sabendo que Eli é cego, só ficamos mais certos de quão fodão o cara é, pois ele luta com uma destreza de super-herói.

Por fim, Eli entrega seu livro para uma espécie de biblioteca do fim do mundo, uma fortaleza dedicada a coletar o acervo cultural perdido da humanidade, a fim de reconstruir a civilização. Neste aspecto, portanto, a Bíblia não é somente um livro religioso (para o bem ou para o mal), mas também um patrimônio cultural. Para o bibliotecário, a Bíblia é tão importante quanto Shakespeare e outras obras da humanidade. É a sabedoria acumulada das civilizações.

A moral da história é: a civilização precisa de livros para avançar. Precisa do letramento e do acúmulo de conhecimento. A salvação para aquela terra inóspita destruída numa grande guerra é a redescoberta desse conhecimento. 

No caso da Bíblia, ela é um exemplo de que o conhecimento não se trata apenas da fria informação científica, mas também é preciso alma, emoção e experiência humana, a vivência subjetiva da fé e da esperança que ficou registrada no livro para motivar as futuras gerações.

Denzel Washington; The Book of Eli (2010)

O terror lisérgico de Mandy

Mandy (2018)
O "véu" em torno de Mandy neste poster a assemelha à Virgem Maria.

Mandy (2018)

Mandy (2018)

Todo mundo sabe que Nicolas Cage é um dos atores mais versáteis e esquisitos de Hollywood. Ele pode ser um policial, um gangster, um anjo, um super herói ou um cara bem comum. Já foi do drama, terror e comédia a romances e filmes natalinos. 

O fato é que, embora possa atuar como um personagem normal e trivial, Nicolas Cage criou sua assinatura como um ator de bizarrices, de trejeitos estranhos e comportamentos inesperados em seus personagens. É o que ele entrega novamente em Mandy (2018).

Mandy é de autoria de um tal Panos Cosmatos, um cara que só dirigiu e roteirizou dois filmes em sua vida, o primeiro em 2010 (Beyond the Black Rainbow) e Mandy em 2018. Dando uma fuçada mais a fundo, vi que ele é filho de George Cosmatos, um italiano que, entre outras coisas, dirigiu Rambo II (1985) e Stallone Cobra (1986).

Val Kilmer, Bill Paxton, Sam Elliott and Kurt Russel; Tombstone (1993)

O velho também dirigiu Tombstone (1993), um neo-western reunindo Val Kilmer, Bill Paxton, Sam Elliott e Kurt Russel. E eis que Panos consta como membro do departamento de câmera e elétrico de Tombstone, ou seja, o filho estava começando no cinema como aprendiz do pai, trabalhando por trás das câmeras aos 19-20 anos, mas foi só por volta dos 35 anos que ele realizou seu primeiro filme autoral e por volta dos 44 o segundo.

Panos Cosmatos
Não, não é o Hagrid de Harry Potter, é o Panos Cosmatos.

É, Panos parece que é um cineasta lento, paciente, e essa paciência se nota em Mandy. A narração da história é lenta, muuuito lenta, com música lenta e cenas degustadas sem pressa. O maior exemplo disso é no momento mais dramático, quando o personagem do Nicolas Cage (Red Miller) vê sua amada Mandy (Andrea Riseborough) ser brutalmente morta diante dele. 

Nicolas Cage; Mandy (2018)
Uma das cenas mais dramáticas e pesadas da carreira do Nicolas Cage.

Calma que isso não chega a ser um spoiler, afinal trata-se de um filme de vingança. A gente sabe que o protagonista vai perder a mulher para então buscar vingança, mas, mesmo sabendo disso, você ficará chocado com a forma com que isso acontece. É um momento lento, sadicamente lento, uma tortura psicológica.

Nicolas Cage; Mandy (2018)

Nicolas Cage; Mandy (2018)

A partir daí Nicolas Cage ganha o pretexto ideal para ser Nicolas Cage. Seu personagem quebra, pira diante do trauma, e se torna um vingador maluco enfrentando uns hippies demoníacos. A primeira hora do filme, antes de acontecer a tragédia, é bem estranha e você fica se perguntando o que diabos é isso que está assistindo, mas quando vem a crise e a saga de vingança, somos recompensados por termos chegado até ali.

Um detalhe que contribui para o filme ter um ar peculiar é o fato da história se passar em 1983, portanto vemos um mundo que já não existe, um mundo sem smartphone, sem redes sociais. Frequentemente vemos Red assistindo TV na sala, a principal forma de entretenimento desse mundo antigo. O personagem de Cage é um lenhador. Coincidência ou não, ele já foi lenhador antes no filme Joe (2013).

Andrea Riseborough; Mandy (2018)
Como a Sophia grega, Mandy busca conhecimento. No filme ela é uma moça culta, interessada em astronomia.

A personagem da Andrea Riseborough, cujo nome intitula o filme, é como uma figura mítica religiosa. No primeiro poster no início desta resenha, pode-se notar como em torno dela se desenha uma espécie de véu que a assemelha à figura da Virgem Maria. 

A virgindade ou pureza espiritual dela é testada pela figura demoníaca do guru Jeremiah, que ela rejeita sem hesitar. Mandy é sacrificada no fogo como as antigas vítimas de rituais bárbaros, como as do culto a Baal ou Moloque, enquanto Red irá percorrer o caminho da busca pela justiça divina, que ele assume nas próprias mãos.

O fato é que há uma grande mistura de simbologia mística, tanto cristã quanto pagã e new age. A saga de Mandy e Red pode se assemelhar à de Logos e Sophia, Adão e Eva, etc. Ao mesmo tempo ela também representa uma bruxa sendo queimada por inquisidores. Não há uma referência religiosa uniforme. Panos Cosmatos cria sua própria mitologia.

Andrea Riseborough; Mandy (2018)
A camisa com referências pagãs, como o sabbath, identifica Mandy como uma bruxa.

A psicodélica e melancólica trilha sonora foi de autoria de Jóhann Jóhannsson, que compôs músicas para diversos filmes, como Os Suspeitos (2013), A Teoria de Tudo (2014), A Chegada (2016). A trilha para Mandy foi seu último trabalho, pois em fevereiro de 2018 ele faleceu por overdose de cocaína.

A fotografia do filme é estranha, com um clima lisérgico de cores saturadas e visão embaçada. Para completar essa estranheza, ocasionalmente algumas cenas são representadas na forma de animação, o que dá a impressão que estamos assistindo a um bizarro clipe de alguma banda de rock dos anos 70. 

Mandy (2018)
Rola até uma briga de motosserras.

Não só Cage, mas também sua parceira Andrea Riseborough e o resto do elenco transmitem uma aura pesada no rosto, no olhar. O olhar vidrado de Cage e Andrea no final do filme é uma cena que fica na memória, como uma assombração.

Mandy foi produzido com um orçamento de 6 milhões de dólares e até teve uma boa recepção no lançamento, hypado pelo fato de ser um filme de terror com o Nicolas Cage, mas no fim das contas só arrecadou 1,5 milhão em todo o mundo. É um daqueles indies incompreendidos. Não é um terror comercial, mas uma pérola escondida a ser garimpada por curiosos como eu e você que está lendo essa resenha.

Nicolas Cage; Mandy (2018)
Bons sonhos.

Zohan, o puro creme do Adam Sandler

Adan Sandler; You Don't Mess with the Zohan (2008)

Adam Sandler é daqueles caras que dividem opiniões. Tem quem o ache insuportável e sem graça e tem quem o considere um dos melhores humoristas do cinema. Um fato, porém, ninguém pode negar: ele trabalha muito. 

Sua filmografia é imensa. Ele está nessa desde o final dos anos 80 como ator, diretor, roteirista e produtor. Escreveu para filmes e séries, foi dublador em animações (ele foi o Drácula de Hotel Transilvânia, por exemplo), faz stand-up e é um dos artistas mais entrevistados da TV americana. 

Conhecido mais pela comédia, ele também já atuou em dramas, como Reign Over Me (2007), e romances, como 50 First Dates (2004) e não foi nada mal. Em Uncut Gems (2019), ele encarou um thriller de crime e ganhou muitos elogios.

Adan Sandler; You Don't Mess with the Zohan (2008)

Quanto a Zohan (2008), é o puro Adam Sandler clássico em seu auge. Ele estava no auge físico, inclusive, e fez questão de explorar isso aparecendo constantemente nu ou seminu (se bem que na certa usou um dublê de bunda). Mas o auge a que me refiro é do estilo de humor, um humor besteirol e sem medo de ser errado.

O chamado "humor judeu", que é peculiar de muitos humoristas americanos de origem judia, como Seinfeld, Ben Stiller, Sacha Baron e o próprio Sandler, é conhecido por ultrapassar os limites do politicamente correto e brincar com temas que podem ser considerados ofensivos. Adam Sandler faz isso pendendo muitas vezes para o sexismo e zoando com estereótipos raciais ou étnicos.

Adan Sandler; You Don't Mess with the Zohan (2008)

Em Zohan, ele brinca com a histórica animosidade entre palestinos e israelenses. Zohan é um agente israelense claramente com super poderes e uma super libido. Ele se aposenta da vida de guerra para virar cabeleireiro e literalmente transforma um salão em puteiro, pois, após cortar o cabelo das senhorinhas idosas da vizinhança, ele transa loucamente com elas.

Adan Sandler; You Don't Mess with the Zohan (2008)

Muito do que Zohan faz poderia, no mundo real, ser considerado assédio e conduta indecente em público, mas a verdade é que é engraçado. É engraçado justamente pelo absurdo da situação e este é um dos motivos por que há pessoas que amam e outras que odeiam o humor do Sandler. 

Para curtir o seu humor é preciso desligar o julgamento moral. Sim, seus personagens são errados mesmo. São pessoas que na vida real você teria até nojo de ter por perto. Mas, cara, é uma fucking comédia. Deixe-se seduzir pela besteira.

Ah, e mais uma coisa. Na fórmula Adam Sandler, ele sempre fez questão de trazer belas e carismáticas atrizes para serem seu par romântico e compensar a sua feiura. Ele formou uma parceria de sucesso com a Jennifer Aniston, por exemplo, e agora em Zohan temos a Emmanuelle Chriqui, que é uma das atrizes mais belas que já vi na minha vida.

Emmanuelle Chriqui; You Don't Mess with the Zohan (2008)

O bromance de Spock e Kirk

Kirk and Spock; Star Trek III: The Search for Spock (1984)

A galera que curte fanfics gosta de imaginar um romance entre Kirk e Spock e não há problema nisso, mas o fato é que a relação entre os dois personagens nos filmes e séries da franquia é propriamente classificada como um bromance, uma grande amizade entre dois homens que se tornam como verdadeiros irmãos.

Esta é provavelmente a amizade mais famosa de todo o gênero de sci-fi espacial. Spock e Kirk formam uma dupla bastante emblemática, pois são opostos que se complementam. Kirk é sanguíneo, extrovertido, impulsivo e age guiado pelo coração; Spock é fleumático, introvertido, calculista e age guiado pela lógica. Também a relação celebra a convivência amistosa entre um humano e um alienígena. Uma amizade interplanetária.

Ambos passaram por muitas aventuras juntos, mas o momento mais marcante¹ aconteceu no filme A Ira de Khan (1982), quando Spock se sacrifica, expondo-se à radiação, para salvar a tripulação da Enterprise. Kirk fala com ele através de um vidro e, à beira da morte, Spock, que sempre foi tão racional e pouco dado a declarações de afeto, soltou a memorável fala: "I have been, and always shall be, your friend".

Curiosamente, no Star Trek Into Darkness (2013), o J. J. Abrams faz uma homenagem a essa cena clássica. Como o filme se passa em uma realidade alternativa, os papéis se invertem e é Kirk que se sacrifica, a ponto de levar Spock às lágrimas, enquanto declara sua amizade.

Kirk and Spock; Star Trek II: The Wrath of Khan (1982), Star Trek Into Darkness (2013)

Notas: 

1: Uia, uma aliteraçãozinha acidental.

My Life, a saga pessoal do perdão

Michael Keaton and Nicole Kidman; My Life (1993)

Assisti esse filme nos anos 90, ainda na época da fita k-7 (lembranças de um véio). Lembro que chorei copiosamente e o filme ficou marcado em mim para sempre. Agora, muitos anos depois, pude revê-lo e conferir se continuava tão impactante.

Protagonizado por Michael Keaton e Nicole Kidman no auge de suas carreiras, My Life (1993) conta a história de Bob, um homem amargo e que descobre ter uma doença terminal. Ele resolve gravar um vídeo sobre a própria vida para deixar de legado ao filho que ainda irá nascer. Neste processo de coletar memórias, ele acaba fazendo uma jornada pelo passado que havia esquecido, descobrindo as causas de antigas mágoas.

Existe um personagem que tem grande importância nessa jornada de autoconhecimento, o terapeuta holístico Mr. Ho. Como Bob já esgotou todas as opções de tratamentos médicos convencionais, ele aceita recorrer a um terapeuta holístico, mesmo que continue cético. Em um rápido exame Mr. Ho consegue tocar em algo que perturbou bastante Bob. Ele diz: “Você tem uma raiva muito profunda e antiga no coração… Seu coração está clamando: Perdoe!”.

Só então Bob começa a se lembrar de momentos da infância que ele havia reprimido. Quando criança, ele queria muito ir ao circo, mas os pais estavam sempre ocupados trabalhando, o que gerou uma mágoa para a vida toda. Bom, foi só esse detalhe que me decepcionou nessa segunda vez que assisti.

Eu lembrava que o personagem guardava uma mágoa muito grande gerada na infância, mas não lembrava que era algo tão banal como “ah meus pais nunca me levaram ao circo”. Eles não eram pais agressivos, ao contrário, eram afetuosos, mas de toda forma esse foi um trauma que o fez se tornar um adulto amargo ao ponto de adoecer mortalmente. 

Mas ok, de toda forma o filme desenvolve uma bela saga de libertação pessoal que se dá em duas vias. Primeiro Bob aprende a perdoar, um gesto que o liberta de seu constante sentimento de raiva, mas também aprende a aceitar a morte. À medida que a doença avança, ele vai se tornando mais resignado, até que entrega-se à morte com serenidade.

Isto é simbolizado em uma cena marcante. Logo no começo do filme, ele visita um parque para andar em uma montanha russa, algo que não fazia desde criança. Fazia parte do seu processo de revisitar o passado. Tenso e com medo, ele mantém as mãos firmes no carrinho, enquanto as outras pessoas estão se divertido sem receio, soltando os braços no ar.

Na cena final, quando ele está perdendo a consciência, tem uma visão em que está subindo em uma montanha russa, uma fascinante luz o espera adiante. Desta vez ele não tem mais medo e levanta os braços, sorrindo e se deixando levar. Sua experiência de aceitação da morte é a libertação final.

Então sim, após tantos anos, ao rever o filme continuei encantado com ele. Os anos 90 produziram uma bela safra de dramas com histórias de vida, coisas simples até, e com uma forte mensagem. De bônus, a trilha sonora da dupla John Barry e Jeff Barry é igualmente marcante.

Michael Keaton; My Life (1993)

Michael Keaton; My Life (1993)