O dinamarquês Nicolas Winding Refn tem um estilo bem peculiar de contar histórias. Seus filmes têm um ritmo lento, poucos diálogos, explorando bastante o silêncio dos personagens e com cenas de violência explícita que expõem o lado perturbado e sinistro dos personagens.
Talvez o filme mais perturbado dele seja The Neon Demon (2016), mas seu grande sucesso foi Drive (2011)¹, estrelado pelo Ryan Gosling. Depois ele repetiu a parceria com o Gosling em Only God Forgives (2013).
Julian (Ryan Gosling) é um criminoso expatriado dos EUA que toca um negócio de luta de muay thai na Tailândia, junto de seu irmão mais velho Billy. Além disso eles estão envolvidos no tráfico de drogas e se divertem com a prostuição. Enfim, uma vida bandida.
Julian é focado em apenas um fetiche: ele gosta de assistir uma prostituta se masturbando na sua frente, enquanto ele fica com as mãos atadas e nunca a toca. Billy é mais devasso e em uma ocasião ele ataca uma prostituta menor de idade e a mata, o que acaba atraindo a atenção do policial Chang que também atua como vigilante, fazendo justiça com as próprias mãos. Chang pune Billy fazendo que o pai da garota morta o espanque até a morte.
Julian vai tirar satisfação com o pai da menina, Choi, mas resolve poupá-lo ao saber que ele matou Billy para vingar a filha. Então entra em cena outra personagem, Crystal, a mãe de Julian e Billy. Ela veio para Bangkok a fim de sepultar o filho, mas também vingá-lo. Crystal se mostra uma megera fria e autoritária e, mais ainda, uma mãe narcisista e pervertida.
Ela arquiteta a morte de Choi, a fim de vingar seu filho, e também ordena um atentado contra o vigilante Chang, mas este sobrevive e agora se torna um verdadeiro anjo vingador imparável. Chang sai caçando todos os envolvidos, torturando e matando, até chegar na própria Crystal. Além disso, ele se envolve em uma luta de boxe contra Julian, dando nele uma bela surra, mas deixando-o vivo, pois, em seu julgamento, Julian não estava envolvido nos crimes cometidos por Billy.
De certa forma, Chang é o herói da história, pois ele é o vingador. Ele não ataca inocentes e seu papel é fazer justiça, ainda que de uma forma brutal e clandestina. Crystal é a grande vilã, inclusive porque acompanhamos seu relacionamento com Julian e vemos como ela o trata de forma desumana, como o humilha e manipula, além de dar indícios de que ela abusou sexualmente dele provavelmente desde a infância e o trata como se não tivesse vida própria, como se devesse viver à mercê dela. Enfim, uma autêntica e cruel mãe narcisista.
A monstruosa mãe narcisista. |
Foi ela quem fez Julian ser o que era, um homem apagado, emasculado, o que explica seu fetiche de nunca tocar na prostituta. Ela criou o primogênito Billy como o "filho dourado" (um termo bem conhecido na psicologia para descrever a hierarquia dos filhos que a mãe narcisista determina a fim de manipulá-los, criando uma rivalidade ao superestimar um filho, enquanto subestima o outro), de modo que Billy virou este sujeito pervertido a ponto de matar uma garota.
Em certo diálogo com Julian, ela literalmente fala do tamanho do pênis dos dois irmãos, elogiando o pênis enorme do Billy em detrimento de Julian. Por fim, a vilania de Crystal fica evidente quando ela comanda a matança para se vingar da morte do Billy. Mesmo sendo da vida do crime, Julian reconhece que a morte de Billy foi justa, visto que ele matou uma garota, e por isso poupou o pai da menina, mas Crystal estava pouco se importando com isto e passou pano para o crime do filho.
A cena mais bizarra e curiosa (e atenção para o spoiler) é quando Crystal foi morta por Chang e, quando Julian encontra o corpo dela, ele abre uma fenda na barriga dela e enfia a mão. O que ele pretendia com isto?
Foi um gesto simbólico bem peculiar e que faz sentido levando em conta a relação disfuncional dos dois. Como cria de uma mãe narcisista abusiva, Julian tinha um sentimento perturbado por ela. Provavelmente no fundo ele nutria um ódio ou rejeição, mas na superfície ele tinha o apego da Síndrome de Estocolmo, o que se nota na cena em que ele fica bravo com a prostituta porque ela criticou a forma que Crystal tratava ele.
O anjo vingador. |
Ele não se libertou da prisão psicológica imposta pela mãe. Em relações saudáveis, o afeto dos filhos pelos pais é uma consequência do afeto e cuidado que estes têm pelos filhos. Quem planta afeto, colhe afeto. Já em famílias abusivas, não é raro que os filhos desenvolvam um afeto ou apego aos pais por causa de um sentimento de dever, de ligação quase sagrada com seus genitores, ainda que eles tenham sido cruéis a vida toda. É uma prisão psicológica que também pode ser observada em alguns animais que, mesmo espancados e maltratados, continuam apegados a seus criadores.
Pois bem, Julian vivia nesta prisão. Desta forma, o gesto de enfiar a mão dentro da barriga dela pode ter sido um esforço de unir-se a ela da forma mais profunda, como que retornando ao útero. Por outro lado, é possível interpretar uma ideia oposta nessa cena. Talvez ali ele finalmente se libertou e o ato de enfiar a mão foi um gesto de afronta, de vingança contra aquela que o dominou a vida toda.
No fim, Julian ainda voluntariamente se entrega a Chang para ter os braços cortados, assim pagando a sua parte da dívida nessa confusão toda. Ele reconheceu a justiça do justiceiro. O filme termina com Chang cantando docemente em um karaoke, o que mais uma vez mostra que ele foi o herói da história e saiu como vitorioso no final.
O papel de Chang na história também explica o título Só Deus Perdoa. Para Chang, não existe perdão debaixo do céu, só vingança.
Notas:
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