Qaligrafia
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Livre-arbítrio

Se não temos livre-arbítrio,
por que queremos saber se temos livre-arbítrio?
A vontade de pensar livre já não é o início do livre-pensar?
Ou fomos programados para achar que pensamos livre?
Neste caso, nossos programadores foram um tanto sádicos,
ou cômicos.

(26,11,2020)

Freud, física quântica e misticismo em Evangelion

Neon Genesis Evangelion (1995-1996)

Evangelion é um clássico cult da cultura otaku. Lançado como um mangá em 1994, no ano seguinte foi adaptado como anime, apresentando ao mundo uma animação de mecha inovador e intrigante.

Não se tratava apenas de uma série de robôs gigantes lutando. Vamos descobrindo ao longo dos episódios que a coisa é bem mais surreal, envolvendo criaturas alienígenas chamadas Anjos que são combatidas pelos Evas humanos. Os Evas não são robôs, mas misteriosas criaturas revestidas por armadura e pilotadas por crianças.

E essa trama vai ficando mais e mais psicodélica, a ponto de você não entender mais nada, quando a realidade se distorce, mente e matéria se confundem. Evangelion aborda até o nível quântico da realidade, e isso nos anos 90, quando pouco se entendia sobre isso.

Positron rifle; Evangelion
O rifle de positrons se tornou uma icônica arma do universo Evangelion.

Uma mistura de surrealismo e verossimilhança

Evangelion tem uns momentos bastante surreais, mas também investe em detalhes que dão verossimilhança e um ar de "realismo", embora futurista. Na batalha contra o quinto Anjo, por exemplo, eles decidem equipar o Eva com um gigantesco rifle. Armas gigantes são comuns no gênero mecha, mas aqui se deram ao trabalho de elaborar toda uma logística para seu funcionamento. Sendo basicamente um enorme canhão, foi preciso direcionar a distribuição de energia de todo o Japão para carregar a arma. 

A série se dedica a mostrar que estas tecnologias não são fáceis e requerem todo um trabalho humano para que funcionem. Isto também faz com que os combates não se tornem mera luta trivial de mechas e kaijus. Cada combate tem um custo, causa dano ambiental, exige um enorme esforço logístico. 

Um dos charmes da série é o seu caráter incompreensível, pois mistura ficção científica com simbologia cristã, budista, da cabala, ontologia, etc. É uma experiência de deslubramento com o icognoscível.

Neon Genesis Evangelion (1995-1996)
Freud explica.

Neon Genesis Evangelion (1995-1996)
Ikari, um verdadeiro shitty dad.

A psicologia e os tipos de personalidade

Há também uma interessante presença de elementos freudianos. Os protagonistas demonstram várias tendências edipianas, a necessidade um tanto patológica de receber atenção de uma figura paterna ou materna.

As três principais crianças são hoje ícones clássicos de certos estereótipos otakus. O insosso Shinji é o garoto protagonista de uma história com elementos de harém (o garoto não tem nada de interessante, mas vive cercado de mulheres como um sultão).

A introvertida Rei é um dos maiores exemplos de personagem kuudere (calada, reservada, mas com o tempo mostra certo laço afetivo com os demais), inclusive na sua cor temática azul celeste. Na antiga psicologia grega, ela seria classificada como fleumática, enquanto Shinji é melancólico.

Neon Genesis Evangelion (1995-1996)
Oops!

Asuka, caracterizada pela cor vermelha, é uma personagem colérica (na classificação grega) e no estereótipo japonês é uma tsundere (enérgica, agressiva, mas com um lado carente que às vezes se expõe).

Evangelion tem um toque de harem, o gênero de anime em que um personagem homem vive rodeado por mulheres, de modo que o público fica shippando uma relação dele com esta ou aquela personagem. No caso, as garotas em volta de Shinji são Rei, Asuka e Mari, mas também teve um garoto, Kaworu, de modo a alimentar um shipp yaoi.

O curioso é que, mesmo o protagonista sendo um garoto e ele viver neste ambiente de harem, ele está longe de ser o fodão da história. Ao contrário, Shinji é pouco heróico. Apático e ressentido com o pai ausente, ele vive a se lamentar e hesitar quanto à sua missão. Se não fosse a compatibilidade entre ele e o Eva, nem pra piloto ele servia. 

Evangelion 2.0 You Can (Not) Advance (2009)

Já as garotas, são todas badasses. A Rei é ainda mais apática que o Shinji, sendo um dos maiores exemplos de personagem kuudere, mas sua apatia emocional não a impede de ter muita atitude e determinação. Ela parte nas missões sem hesitar e costuma voltar toda machucada. Já chegou a pilotar em estado grave de saúde. A valentia também está presente na Asuka e a Mari encara o perigo como se estivesse brincando. Enfim, é difícil encontrar uma personagem feminina que seja fraca ou carente de heroísmo. 

Evangelion 3.0 You Can (Not) Redo (2012)

Mari é a mais esporádica das personagens que pilotam um Eva. Enquanto Shinji, Rei e Asuka formam um trio que está constantemente interagindo e que recebe bastante tempo para desenvolver seus dramas e profundidade emocional, a Mari só costuma aparecer em certos combates. Na verdade, ela é a mais badass ao pilotar um Eva. Destemida e ousada, pilota como quem se diverte. Na tipologia grega, ela tem um temperamento sanguíneo, que é cheio de disposição e bom humor.

Curiosamente, no fim de toda a saga, no quarto filme lançado em 2021, Mari e Shinji acavam ficando juntos, o que decepcionou a galera que shippava ele com a Rei ou a Asuka.

Neon Genesis Evangelion (1995-1996)
A Árvore da Vida, um símbolo da cabala, na abertura da série.

Evangelion 1.0 You Are (Not) Alone (2007)

A tecnologia

Evangelion se passa em um futuro relativamente recente. A série original é de 1995 (o mangá de 1994) e começa sua história no ano de 2015. O mundo de 2015 imaginado em Evangelion é em certos aspectos mais tecnológico que o nosso, porém a tecnologia parece mais focada na necessidade de defender o planeta contra os Anjos. 

As cidades têm um sistema de mobilidade que permite que os edifícios se recolham no interior da terra e voltem à superfície a qualquer momento. Na computação, a tecnologia mais avançada está presente na inteligência artificial chamada Magi.

Existe um sistema operacional capaz de replicar a personalidade de uma pessoa em um computador orgânico (é literalmente um cérebro, porém funcionando como um computador). Foi Naoko Akagi, a mãe da Ritsuko (a loirinha com uma pinta perto do olho) quem criou o Magi com um upload de sua própria personalidade. 

Este sistema foi dividido em três computadores interligados, cada qual baseado em um aspecto da Naoko: ela como cientista foi replicada no computador Melchior, ela como mãe, no Balthasar e ela como mulher, no Casper. Os três nomes foram baseados nos três reis magos bíblicos, daí o sistema ser chamado  de Magi.

Neon Genesis Evangelion (1995-1996)

A outra tecnologia super avançada do mundo de Evangelion são os Evas. A princípio, um Eva parece um mecha como qualquer outro, um robô gigante. Logo descobrimos que estes gigantes na verdade são criaturas orgânicas, bestas colossais que estão envoltar em uma armadura. Estes seres precisam de um piloto humano para agir de forma tática, do contrário se comportam como feras. 

Para pilotar um eva, é preciso que se estabeleça uma sincronização neurológica entre o humano e a criatura, de modo que o controle não requer botões ou coisa do tipo, pois se dá de forma telepática. É como se o corpo do Eva se tornasse uma extenção do corpo do piloto. Existem apenas dois manches que eles seguram, mas a verdade é que o controle é mental.

O curioso é que a armadura do Eva não existe meramente para proteger seu corpo, mas para conter a criatura. Livre da armadura, o Eva desperta um poder assustador, praticamente divino, que pode causar um grande cataclismo. 

Em combate, os Evas recorrem a luta corporal, mas também usam armas gigantes, como o enorme rifle de positrons. Estas armas são a mais avançada tecnologia bélica deste mundo. Além disto, os Evas usam um campo AT como escudo, mas aí já não se trata de um recurso tecnológico e sim psíquico.

Cyberpunk?

Evangelion não se encaixa exatamente no gênero cyberpunk. É sci-fi e futurista, mas carece de outros elementos básicos do cyberpunk. A ambientação das cidades, por exemplo, não tem o teor noir ou o neon a iluminar os edifícios à noite. Tirando os recursos de emergência durante um ataque, as cidades parecem bem pacatas e comuns.

Os governos também parecem relativamente funcionais. Não vemos governos oprimindo o povo, nem um nível de vida sucateado, como é comum no cyberpunk. As pessoas vivem suas vidas normalmente, a não ser pelo risco do ataque dos Anjos, mas aí trata-se de uma ameaça extraterrestre.

O elemento mais cyberpunk de Evangelion são os Evas, uma vez que a integração entre estes "robôs" e seus pilotos envolve algum tipo de alteração nanotecnológica em seus corpos, mas nada muito visível. 

Um resumo da franquia

O anime original de Evangelion foi lançado entre 1995 e 1996, com 26 episódios. Em 1997 vieram dois filmes: Death & Rebirth e The End of Evangelion. Esta duologia foi chamada Revival of Evangelion.

Uma década depois, começa uma nova série de filmes, chamada Rebuild of Evangelion, uma quadrilogia: 

1.0 You Are (Not) Alone (2007)
2.0 You Can (Not) Advance (2009)
3.0 You Can (Not) Redo (2012)
3.0+1.0 Thrice Upon a Time (2021)

Pois é, Evangelion gosta de complicar até nos títulos, pois o último filme, em vez de simplesmente ser numerado com um 4, é numerado como 3.0 + 1.0. 

Aqui parece que a história realmente chegou a uma conclusão. A saga escala para um nível divino, em que a realidade inteira é destruída e recriada, de modo que no fim o mundo é restaurado para uma normalidade em que não existem Evas nem ameaças cósmicas. 

Além disso, Shinji finalmente tem seu grande momento de catarse freudiana, travando uma luta sobrenatural contra seu pai, resolvendo de vez as suas daddy issues.

Evangelion 3.0 + 1.4 (2021)

Este último filme tem um desenho extremamente detalhista, os cenários são caprichadíssimos, tanto nos elementos presentes quanto nas cores e texturas. A animação também tem momentos bem vertiginosos, com giros de câmera impressionantes. Em termos de animação, realmente não economizaram no trabalho.

Evangelion 3.0 + 1.4 (2021)

Os detalhes também chegam no nível dos pequenos gestos dos personagens. Por exemplo, tem uma cena, que mal deve durar um segundo, em que uma personagem pluga um cabo USB no computador e curiosamente vemos ela tocar o conector no plug uma vez, ele não entra, ela gira o conector e finalmente consegue plugar. Veja como os animadores se deram ao trabalho de representar uma cena tão trivial de uma pessoa tendo aquele problema tão comum de errar o lado do USB. Estes detalhes dão uma sensação de realidade e verossimilhança à animação.

Abaixo, algumas cenas que mostram o esmero dos desenhistas.

Evangelion 3.0 + 1.4 (2021)

Evangelion 3.0 + 1.4 (2021)

Evangelion 3.0 + 1.4 (2021)

Evangelion 3.0 + 1.4 (2021)

Evangelion 3.0 + 1.4 (2021)

Evangelion 3.0 + 1.4 (2021)

Evangelion 3.0 + 1.4 (2021)

Uma mistura de épico e trivial

A tetralogia Rebuild of Evangelion foi produzida ao longo de quinze anos, mas possui uma narrativa bem coesa, com começo, meio e fim. Estes filmes focam bastante nas batalhas, de modo que nem chegam aos pés da série original em termos de construção de mundo e personagens. 

A série de 1995 dedica muito mais tempo a momentos triviais, explorando a convivência entre os protagonistas, seus temperamentos e a evolução do relacionamento. Há muitos momentos de humor, de modo que a série tem esse caráter híbrido, ora parecendo um típico anime mecha, com combates de robôs gigantes contra kaijus, ora parecendo uma light novel, com momentos descontraídos. 

A forma como o dia a dia dos personagens é retratado na série é de um detalhismo bem no nível de uma light novel. Vemos os personagens dormindo, tomando banho, fazendo as refeições, levando as roupas pra lavanderia, fazendo compras, pegando metrô, tendo momentos bobos de diversão.

Neon Genesis Evangelion (1995-1996)

Neon Genesis Evangelion (1995-1996)

A camada dramática

Evangelion tem uma fórmula dramática parecida com Star Wars: o drama familiar. O protagonista é um garoto a princípio insignificante (Luke/ Shinji) que teve um pai ausente que se tornou vilão por sua ambição de poder (Darth Vader/ Ikari), tem uma relação de afeto e proteção com sua irmã (Leia/ Rei) e ele salva o mundo depois que luta contra seu pai.

A diferença é que Luke era um verdadeiro herói, que se esforçava, se sacrificava e tinha humildade para buscar orientação em um mestre experiente (Yoda), enquanto Shinji só toma decisões egocêntricas e de tal forma imprudentes que não uma, mas duas vezes ele destruiu o mundo por causa de suas decisões erradas. É um dos protagonistas mais detestáveis da história dos animes.

The End of Evangelion (1997)

No filme The End of Evangelion (1997), temos provavelmente a cena mais desprezível do Shinji, quando ele vê Asuka inconsciente e ferida numa cama de hospital e, por ela estar seminua, ele se masturba na frente dela, o que não é explicitamente mostrado, mas inferido por seus gemidos e porque vemos sua mão toda melecada. 

Pois é, o Hideaki Anno teve seus momentos hentai naquela época. Em outra cena, a adulta Misato beija o garoto Shinji na boca no que era pra ser uma cena dramática de despedida, já que ela estava morrendo, mas o beijo foi desnecessário e apenas mais um surto de hentaismo do autor.

The End of Evangelion (1997)

A Rei é exatamento o oposto do Shinji. Ela é o altruísmo por excelência. Ela está sempre interessada em servir, em ser útil, em se sacrificar, e, mesmo tendo uma personalidade robótica e apática, ela nutre fortes sentimentos afetivos por todos com quem se relaciona. Rei, na simbologia bíblica de Evangelion, poderia ser um arquétipo da Virgem Maria. 

Do ponto de vista de dimensão de personagem, Rei é bem plana, pois ela só tem um aspecto, a sua pureza e altruísmo. Outra personagem plana é a Mari. Acho Mari muito legal. É estilosa e badass, mas ela não reage com verossimilhança às circunstâncias. Em todas as situações sua reação é a mesma, a euforia de sempre.

Asuka é a personagem mais complexa. Ela tem a camada superior, cheia de arrogância e orgulho, mas também ocasionalmente manifesta as camadas mais reprimidas, a carência, a compaixão, etc.

Não acho, porém, que um personagem ser plano signifique necessariamente ser inferior a uma construção mais complexa. O importante é que um personagem funcione e conquiste e convença o público. Rei, por exemplo, funciona muito bem e se tornou uma das personagens mais memoráveis e homenageadas em cosplays no mundo. Mari também funciona e é bastante carismática.

A verdade é que Evangelion não tem personagem ruim. Todos são bem construídos. Até o Shinji é um bom personagem, no sentido em que ele é bom em ser detestável.

Neon Genesis Evangelion (1995-1996)

A camada filosófica

A linguagem bíblica foi uma forte inspiração para a obra, mas não necessariamente é usada com alguma relação com a teologia cristã. Os conceitos deste universo recebem diversos termos bíblicos como Gólgota, lança de Longinus, pecado original, Adão, Eva, Lilith, Maria Iscariotes, Gênesis, etc. 

Numa das cenas mais marcantes da série clássica, vemos uma criatura gigantesca e disforme (Adão, o primeiro Anjo) presa em uma cruz, o que obviamente tem ums inspiração cristã, mas na maioria dos casos todos estes elementos religiosos são usados mais para fins estéticos e para dar nomes peculiares às coisas do que guardar algum tipo de alegoria cristã. Não é como se Evangelion tivesse uma proposta do tipo das Crônicas de Nárnia (obra escrita por um teólogo e com evidente intenção de ser uma alegoria bíblica).

É interessante como a realidade do mundo de Evangelion tem um fundamento filosófico, mais específicamente ontológico, bem definido. Inclusive a grande ameaça da série consiste em um processo chamado Instrumentalização Humana que mexe com esta ontologia.

Todos os seres vivos têm uma espécie de barreira chamado "campo AT". Esta barreira pode ser considerada uma extensão ou projeção da alma e é ela que garante a individualidade. Sem um campo AT, não há distinção entre você e o restante do mundo. Criaturas mais poderosas, como os Anjos e os Evas, conseguem produzir um campo AT extremamente forte, de modo que é usado como escudo nas batalhas.

A tal Instrumentalização Humana destruiria o campo AT de todas as pessoas, de modo que elas se tornariam inseparáveis, fundindo-se numa grande e única criatura. Para o sinistro Ikari, este processo seria a solução utópica para todos os problemas, pois a individualidade é a causa de discordâncias e conflitos, guerras e sofrimento. Uma vez que todos se fundirem em uma só alma, acabam as diferenças e divergências.

Pois é, parece um plano de vilão que se acha messias, tipo um Thanos da vida, e que na verdade é um péssimo plano, pois a destruição da individualidade, além de provocar a morte de todos os seres do planeta, também é uma grande violação do livre-arbítrio ou do direito de escolha que é o mais básico dos direitos, depois do direito à vida. Um típico plano de um ditador.

Logo, Evangelion é uma saga em que os heróis lutam pelo direito à sua individualidade e liberdade para existir. Do ponto de vista filosófico, a missão dos personagens é bastante profunda.

A metalinguagem em The Cabin in the Woods

The Cabin in the Woods (2011)

O filme quebra o código do gênero terror, expondo sua fórmula, o papel simbólico de cada personagem, ao mesmo tempo em que preenche a história com uma mistura de criaturas diversas da mitologia do terror, a ponto de se tornar uma espécie de comédia de humor negro. É a desconstrução e metalinguagem do gênero.

Também há um elemento místico. O objetivo dos personagens é sofrer em uma trama intencionamente criada para agradar deuses obscuros. Em um aspecto eles simbolizam a audiência, eu e você que assistimos a um filme, mas em outro aspecto mais mitológico tais seres são como os deuses imperfeitos ou malignos de diversas religiões antigas ou o demiurgo gnóstico. 

Histórias de terror basicamente são a repetição do ritual de sacrifício humano para agradar tais deuses.

O neo-western apocalíptico em Amores Canibais

The Bad Batch (2016)

O western foi o primeiro gênero de "super-heróis" do cinema e literatura pulp no começo do século XX e reinou por várias décadas. Por volta da década de 60, o gênero já estava desgastado, sendo substituído por histórias de ação mais modernas com espiões ou aventuras espaciais. Surgiu então o western revisionista ou post-western, que pretendia desconstruir, brincar, fazer uma homenagem aos clássicos.

Eis então que o clássico renasceu no mundo moderno na forma do neo-western, por volta dos anos 90. Um bom exemplo é Os Imperdoáveis (1992), dirigido por Clint Eastwood, que foi ninguém menos que um dos mais famosos atores dos filmes clássicos de velho-oeste. Ninguém melhor do que ele para ressuscitar o gênero.

The Bad Batch (2016)

O chamado neo-western se desenvolveu com liberdade e adquiriu várias formas. O Kill Bill (2003-2004) de Tarantino é um bom exemplo e ele ousa em substituir o típico protagonista masculino por uma mulher, e o revólver é trocado por uma katana.

Para citar outros exemplos dessa nova safra inspirada nos clássicos, temos O Regresso (2015), Os Oito Odiados (2015) e até a versão X-Men do neo-western em Logan (2017).

Amores Canibais (The Bad Batch, 2016) é um filme indie da iraniana Ana Lily Amirpour, a mesma autora do esquisito Garota Sombria Caminha pela Noite (2014). Em Amores Canibais ela faz uma experimentação misturando gêneros.

A história se passa em um mundo pós-apocalíptico com um ar quase Mad Max, mas sem os carros e a busca por gasolina. É um ambiente bem mais miserável. Subentende-se que a civilização ainda existe, mas as pessoas indignas dela por diversos motivos são expurgadas, os "bad batch". Assim começa a história com a protagonista Arlen (Suki Waterhouse) sendo abandonada numa terra de ninguém, expulsa da civilização.

De cara ela já se depara com a barbárie desse mundo desértico, sendo raptada por canibais que cortam-lhe um braço e uma perna. Agora o filme migra para o terror gore, mas isto não dura muito. Arlen consegue escapar e encontra um vilarejo razoavelmente civilizado. 

Suki Waterhouse and Jason Momoa in The Bad Batch (2016)
Ma man!

Conhecemos três mundos distintos nesse cenário. Os mais selvagens se agrupam numa vila de canibais. São grandes, musculosos, passam o dia malhando; é uma verdadeira sátira da tribo urbana dos marombeiros. Provavelmente se tornaram canibais porque é a única forma de suprirem sua necessidade de muita proteína, já que neste fim de mundo não existe whey. É aí que se encontra o personagem do Jason Momoa, Miami Man.

Por outro lado, tem a pequena cidade chamada Conforto que, diferente da vila dos canibais, parece ser mais civilizada, próspera, para os padrões do apocalipse. As pessoas vivem pacatamente e consomem muitas drogas. O responsável pelo funcionamento deste lugar é o personagem do Keanu Reeves, The Dream, que é uma espécie de líder religioso e político que inspira as pessoas, proporciona raves e lazer, engravida as mulheres e mantém a ordem.

Keanu Reeves in The Bad Batch (2016)

São dois mundos opostos. Em um reina a anarquia e o cada um por si, em outro há bastante ordem e uma sociedade baseada na submissão a um governo centralizado. Em cada um você paga um preço. Você será "livre" nas terras selvagens, mas terá de ser durão; ou será uma ovelhinha em Conforto, mas terá o que o nome sugere, conforto.

Há ainda um terceiro cenário, o mundo dos eremitas. Ele é representado pelo personagem do Jim Carrey, The Hermit. Carrey, aliás, está de parabéns pela forma como encarnou um velho solitário e mudo, com um brilho melancólico no olhar. Ele optou pelo caminho do meio. Nem está com os bárbaros, nem com os pacatos cidadões. Ele é, de fato, o mais livre de todos, e o preço que paga pela sua liberdade é a solitude. Não que isso seja um fardo para ele, ao contrário, parece estar confortável com isso.

Jim Carrey in The Bad Batch (2016)

Quanto a Arlen, ela começa como uma protagonista de western que, em uma terra hostil, irá buscar vingança por ter sido canibalizada. A história, porém, acaba mudando de rumo e amenizando quando Arlen se compromete em encontrar e devolver a filha do brucutu Miami, e entre os dois rola um romance meio forçado, daí em português terem inventado o título sem sentido Amores Canibais.

O final me decepcionou, pois o filme perdeu a oportunidade de ser uma saga de vingança bem ao estilo western, e se tornou um pseudo-romance. De toda forma, valeu a pena na primeira parte e também pela presença de um surpreendente elenco para um filme indie.

Suki Waterhouse in The Bad Batch (2016)